Construir um conceito, uma narrativa ou uma metáfora sobre o que é o tempo, pressupõe perguntar o que é o tempo. Pois, o que está pressuposto não necessariamente está posto. Então, de maneira mais restrita, o que é o inconsciente atemporal [zeitlos] freudiano? Note-se: dizer que algo é atemporal é comum e cotidiano, o que é palavra, o que é conceito? Observa-se que o tempo pode ser um logro, como na epígrafe de Borges.
Freud se apropria de palavras comuns em alemão e empresta-lhes um estatuto conceitual, por exemplo, ao dizer do infamiliar [Das Unheimliche], observa Iannini (2019, p. 7). Por outra forma, a atemporalidade recebe um conceito na psicanálise. As palavras de Freud no primeiro esboço teórico do aparelho psíquico - Carta 52, de 6 dez. 1896 - podem servir de rede epistemológica para nossa escrita. Pois, é de “tempos em tempos” que o material inconsciente sofre uma reorganização, uma reescrita, pois a experiência de uma análise ocorre em um processo variável no tempo, como afirmou Freud (1937/2017, p. 375) “ao longo dos acontecimentos” na “continuidade da análise”. Estará todo material sujeito a transformações e reescritas em épocas posteriores?
Então, algo atemporal é o que se mostra fora do campo de ação do tempo. Além disso, poderia ser uma operação subjetiva, mas isso não faz desaparecer o problema sobre o que é a atemporalidade para a psicanálise. Freud, por intermédio de uma palavra qualquer, subverte concepções familiares sobre o tempo e, assim, dispõe o tempo do inconsciente noutro lugar diverso do senso comum. Convidamos o leitor a ter em suspensão, temporariamente, os efeitos de sentidos já concedidos à perspectiva atemporal. O que exatamente isso significa? Não existem os tempos no inconsciente ou até que ponto coexistem todos os instantes de tempos?
Com efeito, aqui está o trecho da Carta 52:
Você sabe que trabalho com a suposição de que nosso mecanismo psíquico tenha surgido de uma sobreposição de camadas, na qual, de tempos em tempos, o material presente na forma de traços mnêmicos [Erinnerungsspuren] sofre uma reorganização, uma reescrita, a partir de novas relações. Portanto, o que há de fundamentalmente novo em minha teoria e a afirmação de que a memória não está disposta em apenas uma, mas em várias camadas, que é a escrita com vários tipos de signos (Freud, 1896/2021, p. 35).
Um dos impasses que surgem é que, quando Freud afirma que o tempo do inconsciente como atemporal, pois nada se acha que corresponda à ideia de tempo, podemos compreender na leitura do seu texto que o passado, o presente e o futuro estão proscritos dos processos temporais inconscientes. Entretanto, observou-se a presença dos tempos nas instâncias e nas operações de processos inconscientes. Inferimos sobre a possibilidade de uma coexistência dos tempos, na qual, ao demarcar o inconsciente como atemporal, Freud não abandona totalmente a possibilidade da existência de tempos. Para mais, destaca-se o problema da invariância, da imutabilidade, dos restos, dos resíduos e a permanência de materiais, e isso poderia diferir de eternidade.
Nesse sentido, é importante examinar as relações entre atemporalidade e a irrepresentabilidade da morte. Se a morte não pode ser representada no inconsciente, ou seja, para o inconsciente o que ocorre é a imortalidade, pergunta-se até que ponto este só pode ser atemporal.
Na parte II - Nossa relação com a morte, do artigo Considerações atuais sobre a guerra e a morte,Freud (1915/2020, p. 127) analisa como o inconsciente se conduz em relação ao problema da morte. Percebemos a morte apenas para aqueles que são estranhos e inimigos. Além disso, nos desejos inconscientes de morte, mata-se até por pequenas coisas. No inconsciente há sobrevivências de um desejo ávido por morte. Sobrevive o humano primevo, de fato, é como um sujeito no tempo pré-histórico que o inconsciente vai nortear os efeitos sobre a morte.
Por outro lado, verifica-se que Freud extrai o homem primevo de um tempo contínuo pré-histórico, e de uma norma cronológica, para restituí-lo a uma dimensão de insurgência. Cabe lembrar que o recurso ao aspecto atemporal do inconsciente é um “fato polêmico”, como escreve Paul-Laurent Assoun (1978, p. 159). Note-se em Freud (1933/2010, p. 154) a radical particularidade de que o Isso é uma província sem leis, sem razão, um caldeirão de excitações fervilhantes: as leis do pensamento e os processos de contradição não valem, não se conhece juízo de valor, nem o bem, nem o mal, nem a moral. No Isso, impulsos opostos podem coexistir. Nada existe que se compare à negação.
Em nosso campo de pesquisas, os tempos não se reduzem a uma linha na qual o que opera é o que sucede, pois os tempos e os sujeitos são inadequados e desiguais em relação a si mesmos. Não temos a possibilidade de visitar exatamente os mesmos instantes de tempos do passado, nem temos notícias da chegada de um viajante do tempo proveniente do futuro. Lembremo-nos da invenção do cientista H. G. Wells (1895/2019, p. 45), isto é, uma “máquina do tempo” cuja possibilidade é se movimentar entre o passado, o presente e o futuro, e sob esse aspecto, trata-se de uma certa operação que desintegra a própria concepção de que o tempo poderia ser absoluto. Talvez as hipóteses do inconsciente e da máquina do tempo de Wells sejam as únicas máquinas capazes de atemporalidade. Dito de outro modo, o material de outro tempo é um sinal de que há qualquer coisa em nós, que é colonizada, ou seja, estruturada no e pelo discurso do Outro.
Freud construiu uma hipótese fundamental e subversiva para a psicanálise, e é sobre o tempo em exceção - a atemporalidade que ocorre nos processos inconscientes. Por outro lado, essa é uma maneira de dizer que a representação abstrata de tempo se constrói no Eu (consciente) e de distinguir o tempo inconsciente por características negativas. De que maneira o inconsciente não conhece o tempo? Qual o tempo que o inconsciente não tem?
Segundo Christian Dunker (2023, p. 237) em Pequeno glossário lacaniano, do livro O que é sexo?, de Alenka Zupančič, o sujeito se distingue do eu e da consciência, como função de descentramento, divisão e negatividade; o sujeito é para Lacan, um efeito de fala e de discurso que ocorre no tempo. E para inserir certa complexidade, o analista deve operar de modo tão atemporal quanto o próprio inconsciente. Com efeito, Freud (1918/2022, p. 635) coloca diante dos analistas esse dever para a psicanálise.
No ponto de partida desta escrita encontra-se o problema da permanência do passado anímico. Trata-se de uma pergunta que se extrai do texto freudiano: “podemos supor sobrevivências do mais antigo ao lado do que lhe é posterior e dele surgiu por transformação?” Isso interessa, pois o analista se ocupa com material vivo, e o único lugar em que o tempo passado e o futuro podem viver, e se intrometer é o tempo presente. Em uma análise, o ancestral não está morto, não se trata de um passado morto, um passado que passou, mas um passado do qual efeitos sobrevivem no presente.
Nesse ponto, elaboram-se as perguntas: de que maneira a metáfora de uma topologia arqueológica das camadas em sobreposição e lado a lado sinalizam efeitos de atemporalidade no inconsciente? Que metáforas Freud utiliza para construir uma teoria dos tempos? O que é o inconsciente atemporal, e como este se distingue do tempo do recalcado e do esquema a posteriori? Inferimos que uma teoria dos tempos presentes em Freud, encontra-se em redes fragmentadas e conexões laterais, e parece construir-se em confluência com o conceito de inconsciente.
No capítulo V do ensaio O inconsciente, ao afirmar as características especiais, Freud (1915/2010, p. 93-94) dirá que os processos inconscientes são atemporais, isto é, não são ordenados temporalmente, não são alterados pela passagem do tempo, não têm relação nenhuma com o tempo. É nesse sentido que a atemporalidade significa para Assoun (1978, p. 158) que os processos inconscientes não estão submetidos à ordenação temporal, à sucessividade do antes e do depois, portanto são não diacrônicos. E Freud, ao afirmar que o tempo em nada os modifica, quer dizer que de certa forma são eternos, entretanto, por eternidade compreende-se não uma infinitude de tempo, tampouco oposição a temporalidade, mas uma dimensão que é fora do tempo, é inacessível a uma modificação temporal. Por isso, é que o inconsciente não está sujeito às ações do tempo.
Nesse sentido, a atemporalidade, para Assoun, significa imutabilidade. Por fim, no dizer que não se pode aplicar à noção de tempo, é dizer que os processos psíquicos inconscientes exigem uma categorização particular. Trata-se, portanto, do sentido radical de Zeit-losigkeit. A atemporalidade é, assim, um conceito de tempo para o sistema inconsciente. Nesse sentido, é importante lembrar esta passagem da Conferência 31: A dissecção da personalidade psíquica, em que Freud (1933, p. 154-155) traz a imutabilidade do passado através dos tempos:
Nada existe no Isso que possamos equiparar à negação, e também constatamos, surpresos, uma exceção à tese filosófica de que tempo e espaço são formas necessárias de nossos atos psíquicos. Nada se acha que corresponda à ideia de tempo, não há reconhecimento de um transcurso temporal e, o que é muito notável e aguarda consideração no pensamento filosófico, não há alteração do evento psíquico pelo transcurso do tempo. Desejos que nunca foram além do Isso, mas também impressões que pela repressão afundaram no Isso, são virtualmente imortais, comportam-se, após décadas, como se tivessem acabado de surgir. Podem ser reconhecidos como passado, desvalorizados e privados de seu investimento de energia somente quando se tornam conscientes mediante o trabalho analítico, e é nisso que se baseia, em medida nada pequena, o efeito terapêutico do tratamento analítico. Sempre tive a impressão de que tiramos pouco proveito, para a nossa teoria, desse indubitável fato da imutabilidade do recalcado através do tempo. Isso parece permitir um acesso aos mais profundos vislumbres. Infelizmente, tampouco fiz maiores progressos nesse ponto.
O que se verifica ao examinar a Carta 52, de Freud a Fließ (1896/2021, p. 35), é que nessa/na construção conceitual do sistema de escrita, que é o aparelho psíquico, Freud utilizou metáforas e palavras retiradas da arqueologia, por exemplo, a demonstração de que o aparelho psíquico surgiu de uma “sobreposição de camadas”, de modo que a memória não se dispõe em apenas uma, mas em várias camadas sobrepostas de escritas. Na arqueologia, a estratigrafia é um método que estuda as camadas, estratos que aparecem sobrepostos no corte geológico temporal. São sobreposições que, de tempos em tempos, se reorganizam, sofrem uma reescrita, estão, assim, submetidas às subjetividades de cada época, ao anacronismo, às sobrevivências e às descontinuidades que ocorrem. E isso as relaciona com o fator tempo.
Para o pensamento freudiano, a questão era formular fundamentos sobre a memória e verificar hipóteses tópicas sobre o aparelho psíquico, assim como, nessa Carta ocorreu uma reflexão clínica e nosográfica ao identificar as estruturas clínicas freudianas: histeria, neurose obsessiva, paranoia e perversão. Por um lado, tratava-se de assegurar um aparelho de escrita, em que, no primeiro sistema, a superfície estaria sempre lisa, disponível e receptiva após receber o estímulo sem, contudo, escrever vestígios. Por outro lado, um outro sistema com possibilidades de escrever o que foi apagado no sistema perceptivo. Portanto, a novidade na teoria era demonstrar que a memória estava disposta em camadas, mas tal como um sistema de escrita. Então, Freud formulou um diagrama, uma espécie de esquema em que diferentes modos de escrita [Niederschriften] se apresentam separados conforme os respectivos neurônios portadores [Neuronträgern]. Em Notas do editor, os termos escolhidos por Freud contribuíram para afirmar o aparelho como sistema de escrita, literal, pois são processos da ordem de uma escrita. Vejamos, por exemplo, [ Eindruck] que são efeitos ou a impressão do mundo exterior assim disposto em uma escrita [Niederschriften] e posterior reescrita [Umschrift] do signo [Zeichen], que se modifica em traço de memória [Erinnerungsspur].
Nessa rede conceitual, Freud procurou mostrar que o inconsciente, esse sistema de memória, tem como suporte a dimensão do escrito. Com efeito, vamos partilhar o diagrama1 pensado por Freud (1896/2021, p. 36). A propósito, P: neurônios nos quais se originam as percepções ligadas a consciência, porém não retém vestígios do que aconteceu. sP: signos de percepção trata-se do primeiro modo de escrita das percepções, incapaz de consciência e se organiza por simultaneidade. Ic: inconsciência [Unbewusstsein], mas neste ponto ainda não é o inconsciente [Das Unberwusste], trata-se do segundo modo de escrita a partir de outras relações. E, Pc: pré-consciência, terceiro modo de escrita, ligado à representação da palavra [Wortvorstellungen], corresponde ao Eu. Investimentos [Besetzungen] provenientes do Pc se fazem conscientes por regras determinadas, e essa consciência secundária do pensamento é algo da ordem da posterioridade [nachträgliches]. Outro aspecto, é que nesse trecho se observa que Freud introduziu novamente a questão do tempo e, em específico, o a posteriori [nachträgliches].
O diagrama foi assim estabelecido por Freud:
Freud (1896/2021, p. 37) demonstrou ainda na Carta 112 [52] que o trabalho psíquico é representado por formas de escritas em sobreposições, e sequências de épocas diferentes da vida. A tradução ou transposição [ Übersetzung] do material psíquico acontece nas fronteiras entre duas épocas. Para Freud, as subjetividades que se constatam nas neuroses se devem ao fato e às consequências de que a tradução não ocorreu para determinado material, pois a escrita sobreposta [Überschrift] posterior inibe a escrita anterior e desvia o processo excitatório. No entanto, se falta a escrita sobreposta posterior, a excitação segue os caminhos e as soluções vigentes no tempo anterior. Essa falha na tradução é o recalque, que acontece devido a uma liberação de desprazer consequente da tradução. Por efeito, no que falha a escrita sobreposta posterior, persiste o anacronismo, ou seja, em determinada província ainda vigoram os fueros2 (uma região e seus direitos), “sobrevivências acontecem”. Em outras palavras, o anacronismo é uma errância cronológica, intempestividade, que consiste em atribuir a uma época, ou a alguém, ou a uma província, ou a um acontecimento, efeitos que são de um outro tempo. De forma que, em algumas províncias ocorrem sobrevivências, pois estão em vigor os fueros, assegurou Freud. As sobrevivências, esse desvio que Freud assegurou, são apenas “lampejos” (Huberman (2011, p. 84) porque a destruição não é um absoluto, mesmo se fosse contínua. Não por acaso, Freud insistiu em afirmar em muitos escritos que algo se conserva - uma sobrevivência, mesmo que um trapo, um vestígio, um lampejo, um pedaço, um resto, uma ruína. Sobrevivências e é exatamente o resto, o que dispensa a salvação.
Onde quer que falte a escrita sobreposta posterior, a excitação é resolvida de acordo com as leis psicológicas vigentes no período psíquico anterior e segue pelos caminhos disponíveis naquela ocasião. Dessa maneira, subsiste um anacronismo: numa determinada província ainda vigoram os fueros, “sobrevivências” acontecem (Freud, 1896/2021, p. 37).
O que faz com que o contemporâneo não seja todo, nem o único tempo? A psicanálise não está aprisionada a um tempo de nascimento. O que faz com que a época de Freud possa coexistir com o tempo atual [com a contemporaneidade]? E se “o contemporâneo não é todo o tempo” em absoluto, até que ponto uma obra escrita no século XX, como um texto da obra de Freud, poderá ser um expoente do século XXI, isto é, operar de modo atemporal, tal como o inconsciente e o analista? Freud é tão inevitável agora quanto em outro tempo? O que faz uma época estar fora de adesão ao seu tempo e, assim, explodir em outro tempo ou outro mundo de modo que o antigo e o novo possam se interpenetrar? Não é porque está pressuposto um tempo sempre outro, que não se faz urgente situar que o tempo não é tão só um tempo que sucede ou prevalece - tal como percebido no Eu, mas muito mais pode ser descontinuidade e anacronismo. Que dificuldades e impasses teóricos se apresentam ao pensamento e à formalização, ao passo que a atemporalidade é um aspecto do inconsciente?
Observa-se esse ponto para sinalizar que, quando pensamos o tempo, esse pensamento se elabora no Eu. Mas não somente, pois se sabe estar advertido do determinismo psíquico. Foi a partir do determinismo psíquico que Freud (1901/2023, p. 331) demonstrou que efeitos inconscientes devem prevalecer sobre motivações conscientes. Nossas escolhas são, assim, inconscientemente determinadas, e não se trata de um mal funcionamento cerebral. Freud também nos adverte que, para a psicanálise, nada é arbitrário, pequeno ou casual, O psicanalista se distingue pela convicção de que os sujeitos são desse modo determinados. Mas isso não elimina a questão colocada. Pode-se inferir que os materiais serão identificados como “passado” em uma experiência de análise, pois o modo de tempo é atualizado no processo de análise, na presença de analista. Foi também a partir dos esquecimentos que Freud (1901/2023, p. 369-370, nota 110), afirmou que o aspecto atemporal é o mais importante e “assombroso” aspecto da experiência psíquica. O inconsciente é em absoluto atemporal, pois cada estado anterior poderia ser recuperado, mesmo que seus elementos tenham trocado, há muito tempo, todos os vínculos originários por outros novos.
O ensaio O mal-estar na cultura, de 1930, foi escrito num momento de conceitos já fundamentados. Não foi por acaso que Freud propôs como metáfora de sobrevivências do material psíquico, a Cidade Eterna de Roma. Podemos inferir as fronteiras porosas entre o aparelho psíquico, o mundo [a cultura] exterior/interior na metáfora da cidade. Tratase também de uma nova forma de escrever a clínica. A clínica nunca esteve desenraizada, a economia psíquica não é sem relação com a cultura e estruturas normativas da sociedade. Questões de cultura não são tratadas por Freud sem uma contrapartida clínica, mas de modo algum isso significa a supremacia do clínico. A hipótese metapsicológica de que o mecanismo psíquico advém da sobreposição de camadas, proposta feita por Freud na Carta 52 (1896/2021, p. 35) manifestará complexidades e expressão mais elaborada nas metáforas arqueológicas de O mal-estar na cultura. Ocorre, para Freud, que o esquecimento não é a destruição ou apagamento de traços, mas o contrário. Iniciaremos pela pergunta de Freud: até que ponto temos o direito de supor a sobrevivência daquilo que é originário ao lado do que é posterior e que dele se originou?
Freud recorreu ao desenvolvimento e transformações na cidade de Roma. Apresentou Roma como uma metáfora arqueológica do aparelho psíquico. A cidade foi reconstruída muitas vezes por cima das mesmas fundações e, em vez de morada humana, seria um ser psíquico. Nota-se que a metáfora incidirá sobre uma perspectiva temporal, na qual nada do que tenha uma vez acontecido - o tempo passado, pereceu, e a última fase de desenvolvimento ainda reflete fases anteriores desse tempo. O que se pode encontrar do passado na Roma atual? Apenas restos, rastros, vestígios e fantasmas? Das construções que não mais existem e que, algum dia, ocuparam esses antigos contornos, não se encontrará nada, ou apenas restos escassos. “O que agora ocupa esses lugares são ruínas, mas não são ruínas deles próprios, e sim de suas renovações de épocas posteriores, após incêndios e destruições” (Freud, 1930/2020, p. 312). Nesse sentido, parte do material antigo ainda está enterrado no solo da cidade, e é, de fato, um tipo de presença do passado. Lembremos que a ruína é consubstancial aos sujeitos como seres falantes, o quer dizer que tem a mesma substância. É um objeto falante, o objeto que fala, como pronunciou Freud em 1896, em conferência sobre a causa da histeria “as pedras falam” (saxa loquuntur!). A Freud as pedras se permitiam falar. Ou seja, as ruínas revelam sozinhas seu próprio sentido. Dizer que há ruínas falantes, significa dizer que há linguagem. E, de modo recíproco, dizer que há linguagem é anunciar a ruína nas palavras de Wajcman (2016, p. 58).
Diante do cenário de destruição em Roma, o que se pode encontrar do primitivo são ruínas de sua renovação de tempos posteriores, isto é, são as sobrevivências, são as permanências. Para Freud, no aparelho psíquico, preserva-se o que é primitivo ao lado do que dele surgiu por transformação, ou seja, é diferente de uma operação de justaposição ou sobreposição de camadas, que ocorre na perspectiva da cidade e Roma e na Carta 52. Os crocodilos ainda vivem entre nós. Freud nos apresentou um problema: o “irre-presentável” e o “absurdo” no inconsciente. Note-se que as cidades, Roma ou Londres, são “inapropriadas” - para comparar com passado anímico. “Inapropriada” é a palavra utilizada no texto freudiano, de forma discreta, por isso se faz necessária uma leitura em detalhes para não sucumbir à metáfora como puro ornamento. A disjunção que se observa é a dificuldade topológica de expor um tempo contínuo (linear, sucessão) de maneira espacial, pois o mesmo espaço não suporta duas formas de preenchimento. E, com efeito, as dificuldades de representar processos inconscientes residuais que permanecem de forma atemporal. Se o real é o impasse da formalização impossível de se inscrever, trata-se mesmo de escrever a discordância, e formalizar os impasses no ponto em que a literalização3 do real é o principal dispositivo de formalização científica da psicanálise.
É por efeito de que protozoários não são imortais que o leitor pode ler a perplexidade de imutabilidade da morte. Quando se procura lembrar de algo que aconteceu, aquilo que se ouviu de outros, se confunde com experiências próprias. Para todas as vidas /existe a morte, e para os sobreviventes uma morte não representada dentro de si. O mais elevado grau do infamiliar [unheimlich] pode estar associado à morte, ao retorno dos mortos, espíritos e fantasmas, e aos cadáveres, demonstrou Freud (1919/2019, p. 87-89), na medida em que pensamentos persistem em não representar a morte. Goethe, dado como nascido “morto”, a ele somente com muitos cuidados foi possível sobreviver, e embora tenha vindo ao mundo para morrer, permaneceu vivo. Mas onde há a vida, há também a morte, essa é uma maneira de lembrar a tese de Freud (1920/2020, p. 137) em Além do princípio de prazer, na qual o conflito teórico opera frente ao problema da morte, para Freud a meta de toda vida é a morte, o inanimado esteve aqui antes do vivo. Com efeito, vejamos em Freud (1917/2021, p. 259) o fragmento clínico exposto no primeiro parágrafo de Uma lembrança de infância em poesia e verdade: “[...] por imperícia da parteira, vim ao mundo como morto e foram precisos grandes esforços para me trazer à vida”.
Tomaremos um breve fragmento de caso clínico, Júlia é também feita de fantasmas, e de mortes não representadas dentro de si. Então, na sessão clínica diz o seguinte: lembro-me do pequeno filhote de galinha, aqueles felpudos pintinhos amarelos, e ainda com poucos dias de vida, podem antecipar a nossa própria morte, pois sabemos que os outros morrem. Então, não sei por que resolvi enterrar a pequena ave recém-nascida. Cavei um buraco no quintal da casa, não tão profundo, coloquei o animal morto. Apenas duas camadas de terra sobrepostas. Marquei o lugar. O buraco foi raso o suficiente para que em pouco tempo, fosse possível escavar e verificar as ocorrências. A terra já se misturava ao corpo, tal como um quiasmo. Ao levantar o pedaço de pano, que embrulhava o que restou de corpo, vermes se mexiam, e estavam vivos, um horror para os sobreviventes. O infamiliar é exatamente o que recobre “sob uma fina coberta” a relação que cada sujeito vivo tem, com a angústia de morte, demonstrou Freud (1919/2019, p. 87-89).
Terminamos, sem a esses fragmentos clínicos acrescentar substâncias. Mas uma análise também exige não outorgar muito sentido. Por fim desta escrita, uma análise pode movimentar e produzir restos de materiais irrepresentáveis, crocodilos que existem de forma viscosa. O problema que Freud (1930/2010) analisou em O mal-estar na cultura sobre a irrepresentabilidade do elemento que sobrevive ao lado e deu prosseguimento em A análise finita e infinita. Nesse texto, Freud (1937/2017, p. 331) estava preocupado com a questão da duração do tratamento e dos fenômenos residuais. Para ele, uma transformação nunca ocorre de forma completa, ou seja, partes de uma organização anterior continuam a existir ao lado da mais recente, e mecanismos antigos podem permanecer intocados pela análise, de modo que sobrevivem os restos. Na experiência de uma análise, os crocodilos são os companheiros de viagem. Faltam as palavras, dirão apontando assim o sintoma do Real, mas convém acrescentar que algo também se diz sempre a mais, que não era pedido, escreve Jean-Claude Milner (2006, p. 24-25). Um real é, pois, o grão que resiste a qualquer jogo que pudesse afetá-lo, aparece sob as espécies enganosas da permanência e da impenetrabilidade, poderá se inscrever como cicatriz do que permanece e resiste. De fato, para Freud (1930/2020, p. 311), “os crocodilos ainda vivem entre nós”.