Introdução
A fábrica de cretinos digitais – o perigo das telas para nossas crianças. Este é o título do primeiro livro do neurocientista francês Michel Desmurget (2021), diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, em que apresenta, com dados objetivos e de forma conclusiva, como os dispositivos digitais estão afetando seriamente – e para o mal – o desenvolvimento neural de crianças e jovens. Pesquisas feitas em países europeus que sustentam, entre outros pontos, que os “nativos digitais” podem ser os primeiros filhos a ter QI inferior ao dos pais. Em seu segundo livro – Faça-os ler: para não criar cretinos digitais (2023) – o autor aprofunda muito os relatos de suas pesquisas. Os principais alicerces da nossa inteligência são afetados: linguagem, concentração, memória, cultura (definida como um corpo de conhecimentos que nos ajudam a organizar e compreender o mundo), estruturação do pensamento e capacidade de discernimento sobre a realidade.
Segundo o autor, ocorrem danos graves também no vocabulário, na estruturação do pensamento, na nutrição da memória e na apropriação de conhecimentos complexos. Tivemos o relato pessoal de um menino de dois anos, que tendo acesso ao uso livre de um tablet, parou de falar. Retirado o aparelho, no dia seguinte abriu a matraca. Além desse caso extremo de mutismo, a troca do livro pelo uso maciço de telas também estaria ligada a prejuízos no sono e na aquisição da linguagem, problemas de concentração e aumento da ansiedade e do risco de obesidade.
Em seus livros Desmurget não cita a psicanálise, o que abre terreno para que o façamos.
Teoria da leitura e psicanálise -conflitos e uma abordagem possível
A teoria e a prática da leitura há muito nos interessam profissionalmente. O doutoramento na UFRJ, em 1996, embora em filosofia, foi realizado sobre uma teoria da leitura: Estética e poesia: imagem, metamorfose e tempo trágico, publicado em livro no mesmo ano. A partir dele, ainda em 1996, fui convidado a trabalhar no Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), da Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura. Participando durante seis anos de mais de vinte encontros PROLER em dez estados, além de proferir palestras na Casa da Leitura, a sede do PROLER, no Rio de Janeiro. Ministrando tanto oficinas quanto palestras: Leitura e conhecimento, A imagem e a leitura literária na escola, Leitura e psicanálise – a imagem através da escrita e a formação do leitor; Leitura e imagem – conhecimento e cidadania, A questão da imagem para a formação da leitura literária.
Constituiu uma época de intenso aprendizado: aplicar os conceitos e a experiência psicanalítica, na tentativa de compreender e superar dificuldades, e até a impossibilidade do ato da leitura. O público-alvo era composto de professores de primeiro e segundo graus, embora dos encontros também participassem alguns alunos e professores universitários, bibliotecários e promotores locais da leitura. Além desta parte prática, houve uma teórica.
Durante os anos em que participei do PROLER (1996-2002), a entidade foi dirigida, primeiro, por uma parceria entre a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), com sede no Rio de Janeiro, e a Associação de Leitura do Brasil (ALB), sediada em Campinas e apoiada pela Faculdade de Educação da UNICAMP. Essas duas entidades possuíam filosofia e ideologia opostas. A Fundação tinha por base a promoção de textos literários, mas sem embasar, por meio de alguma teoria essa escolha, utilizava lemas como: “ler faz bem”, “ler faz subir na vida” e “ler melhora a pessoa”. A ALB, com uma sólida formação na pedagogia e com a influência do pensamento de Paulo Freire, era movida pela ideia de que a leitura é importante por permitir o acesso a informações indispensáveis ao exercício da cidadania e que leitura não se restringe apenas à literatura, mas que leitura é “leitura de mundo”.
Para a ALB os motes da Fundação revelavam o ápice de uma ideologia burguesa, que privilegiava ler textos literários porque é “de bom tom”. Foi-me confiada a tarefa de fornecer um melhor embasamento teórico aos princípios da Fundação. Ao mesmo tempo, a ALB abriu-me todas as portas. Tanto através dos Congressos de Leitura do Brasil (COLE), sediados pela UNICAMP, quanto através sua revista Leitura: Teoria e Prática (Lopes 1998, 2001, 2004), para que defendesse um trabalho teórico que, em parte, era o oposto de seus princípios. Em parte, porque sempre me foi imperioso conciliar este trabalho com a importância do ato da leitura para a construção da ética e da cidadania.
Além dessa trajetória de aplicação da psicanálise à pedagogia, o questionamento teórico-prático obrigou a repensar várias questões da própria psicanálise. Tendo concluído que a imagem é fundamental para a construção do ato da leitura, foi necessário resgatar aspectos de sua função, bem como a importância do imaginário. As funções da imagem e do imaginário tinham sido reduzidas por certos em estereótipos negativos na terminologia psicanalítica. Se, por um lado, houve um resgate da imagem e do imaginário, por outro, o trabalho na difusão da leitura colocou-me de frente com o antagonismo entre a imagem construtora da leitura literária e a imagem veiculada pelos meios de comunicação.
Toda forma de leitura literária produz por meio da linguagem imagens subjetivas e incompletas, que cada leitor constrói a seu modo. Imagens que também desencadeiam redes conscientes e inconscientes de associações. Um trabalho do inconsciente pelo que podemos denominar de simbólico, que tende a conduzir à sublimação e ampliar a subjetividade.
As imagens dos atuais meios de comunicação mais difundidos são curtas e predominantemente visuais. Quando se utilizam da palavra, são frases e textos curtos. O trabalho do inconsciente é precário. Nesse caso, a imagem e o funcionamento do imaginário tendem a atrofiar a subjetividade e levar ao ato. Possuem responsabilidade por serem alguns dos motivos da violência, tão cotidiana na sociedade do espetáculo, imposta pela globalização.
Como compreender que essa dupla face da imagem, ou diferentes formas de imagem, que em seu modo deletério pode modificar tanto a psique, a ponto de levar até mesmo a um quociente de inteligência mais baixo, como evidenciaram as pesquisas de Desmurget?
Freud, a prática psicanalítica e as imagens furo
Freud teve formação em medicina, trabalhou em laboratório de fisiologia, comparando cérebros e neurônios de diferentes espécies. Também era ateu e darwinista. Assim, configurara por base uma continuidade psicofísica nos seres humanos desde o neurônio até a consciência. Ao longo das décadas de sua obra, cria várias ideias e teorias sobre as linguagens consciente e inconsciente, assim como a criação de símbolos e imagens comunicando ambas. A escuta do analista é uma leitura pela escuta do verbal trazido pelo paciente. A partir dessa escuta, Freud, que era um leitor compulsivo de livros, escreveu dezenas deles e inúmeros artigos. Obra tão vasta e bem escrita que em 1930 rendeu-lhe o prêmio Goethe, com o qual, antes ou depois, também foram agraciados, entre muitos outros, o poeta Stefan George, os escritores Hermann Hesse e Thomas Mann, o diretor e escritor Ingmar Bergman.
Em sua própria origem, a prática psicanalítica está fundamentada na verbalização, que, além da narrativa, tem sua fonte ou complementa-se por imagens que são verbalizadas: os relatos de um sonho ou devaneio e de um sonhar acordado quando flui a livre associação. Sem a verbalização desse romance único e pessoal, cujo ideal é prosseguir também na ausência do analista, há o comprometimento da terapia. Mesmo fora da prática psicanalítica, o próprio ato de pensar não se desenvolveria em toda a sua plenitude. Dentro ou fora da terapia, há dificuldade ou impedimento da reflexão consciente ou inconsciente sobre si mesmo e o mundo que o cerca. Mas não podemos ser somente o desejo alheio, tal como impõem o consumismo e as redes sociais. Citando Arendt (1993, p. 163-164):
[...] sou não apenas para os outros, mas para mim mesmo; e neste último caso claramente não sou apenas um. Uma diferença instala-se em minha unicidade. [...] Pois esse ego, o eu-sou-eu, experimenta a diferença na identidade [...]. Sem essa cisão original [...] o pensamento como um diálogo sem som [...] de mim comigo mesmo [...] a harmonia comigo mesmo, não seria possível.
A palavra “reflexão” tem sua origem no latim reflexio, onis, derivada do verbo reflectere, e nos dicionários possui dezenas de definições, entre elas, “dobrar-se, entortar, vergar, amarrar ou dobrar para trás, lembrar com uma consideração cuidadosa, recordar, realizar ou considerar em um fluxo de pensamento” (Webster, 1961, p. 1908, tradução nossa). Em suma, um pensamento que se inicia a partir de imagem e se dobra, redobra e desdobra sobre si mesmo, cada vez mais se refletindo, o que em outro texto denominamos “imagem furo” (Lopes, 2007). Assim nomeada por ter sempre limites difusos, ser incompleta e, por isso, abrir mais o texto e o eu, consciente e inconsciente para outras imagens. Outra vertente da livre associação freudiana.
Através de um referencial pelo nó borromeano de Lacan, unido pelo objeto a, que é um vazio, uma falta absoluta sempre impulsiona e frustra o desejo. Pela imagem furo, por ser transmitida pela palavra falada ou escrita, a imagem poética também possui sua face voltada ao registro do simbólico. A poesia alcança a dimensão de determinar o sujeito em sua relação com o desejo, tanto de modo intrassubjetivo quanto de modo intersubjetivo. A imagem poética, em sua aceitação implícita da temporalidade, não tenta rejeitá-la, mas procura reconhecer e domesticar a falta e a finitude. Na medida em que é fundada na temporalidade, a própria imagem poética já é em si mesma falta. Assim, podemos conceituá-la como imagem-furo, imagem que conjuga o imaginário e o simbólico, que, além de aceitar a falta – castração e diferença –, tem em si o dom da inclusão: um e outro, que a fazem acolher a diferença e a cisão na identidade da qual Arendt escreve. Pode-se, então, criar o diálogo sem som de mim comigo mesmo, aprofundando, consciente ou inconscientemente, o eu.
Já imagem-muro funciona em antagonismo ao reconhecimento da falta, nega e combate qualquer ausência ou finitude, por mais inútil que seja, combate porque aquilo contra o qual luta sempre retorna. A imagem-muro também, negando a castração e a diferença, o comportamento por ela induzido é intrinsecamente perverso. A imagem-muro é traumática, não cria nem se associa a outra imagem, leva à necessidade da repetição de si mesma, frequentemente também à passagem ao ato. Comportamento em que sobressaem a violência e a negação da alteridade alheia. Concordamos com Maria Rita Kehl (2004) quando afirma haver um consenso sobre sociedades industriais contemporâneas serem sociedades muito violentas, violência que não pode ser explicada apenas pela exclusão social. Concordamos quando Kehl (2004, p. 88) escreve que sustentaria “a tese de que nas sociedades regidas pela cultura de massa [...] a tirania da imagem é avassaladora [...] – há sim, um tipo de violência própria do funcionamento do Imaginário em si” e a violência do imaginário independe dos conteúdos das imagens.
Mais adiante também prosseguiremos por outro caminho psicanalítico, diverso do referencial lacaniano. Mas seja qual leitura das muitas leituras psicanalíticas, todas associam a narrativa e a linguagem como imprescindíveis para o humano constituir-se como humano. Freud era rigoroso adepto da lei de Haeckel: ontogênese segue a filogênese. Portanto, é necessário que se pense a origem da linguagem no Homo sapiens sapiens.
Alguns especialistas defendem que a forma rudimentar de linguagem – protolinguagem – teria surgido no Homo habilis há cerca de 2 milhões de anos. Mas é questionado. Outros defendem que uma primitiva comunicação verbal simbólica só teria surgido bem mais tarde, 1,8 milhão de anos, em espécie bem mais documentada por fósseis e cuja existência é inquestionável: o Homo erectus. Já o Homo sapiens, a cuja família pertencem todos os seres humanos atuais, teria uns 300.000 anos. Da linguagem verbal, pouco ou quase nada se sabe de sua evolução, mas é suposto que tenha iniciado no sapiens há pelo menos 200 mil anos. Contudo, enfatiza Desmurget (2022, p. 90-91):
[...] a leitura surgiu há pouco mais de 5 mil anos, com o advento da escrita [...]. A maioria dos especialistas admite que os seres humanos não nasceram para ler e que é impossível que regiões do cérebro humano tenham evoluído especificamente para permitir a leitura. O que significa que as redes neurais que sustentam a leitura precisam ser abertas, a facão, dentro da estrutura existente.
Também é obrigatório lembrar que até o século XV os livros tinham de ser copiados à mão. Desde a Antiguidade, eram objetos raros e caros, destinados a uma pequena elite. Foi Johannes Gutenberg que, ao desenvolver um sistema mecânico de tipos móveis, deu início à Revolução da Imprensa, o que é amplamente considerado o invento mais importante do segundo milênio. O barateamento e a produção em massa dos livros, sem dúvida, foi um dos maiores promotores da Renascença. A partir da citação acima de Desmurget sobre a criação de redes neurais, pode-se propor que a criação da imprensa também produziu uma revolução cerebral no Homo sapiens sapiens. E com duas qualidades que podem ser parcialmente traduzidas em conceitos freudianos: inconsciente e pulsão.
Há mais de 100 anos, dezenas de pesquisas provaram que as redes neurais da leitura não funcionam apenas inconscientemente; elas também operam contra a nossa vontade (Desmurget, 2022, p. 108).
As três formas de leitura: mais um olhar psicanalítico
Entretanto, Desmurget simplifica o termo “leitura”, quase sempre, em sua forma mais completa: a leitura literária. Mas existem vários tipos de leitura. Podemos postular diferentes classificações. Utilizemos provisoriamente a questão epistemológica da relação sujeito-objeto.
Há a leitura que rotulamos de instrumental simples, que jocosamente exemplificamos como sendo a leitura do “manual de geladeira”. Nesse tipo existe uma correlação absoluta sujeito-objeto, se a geladeira não funcionar, ou o manual estava errado, ou o aparelho estava com defeito. A partir da leitura instrumental simples, existem vários tipos de leitura didática. A leitura didática pode variar desde a exclusivamente instrumental – a apostila para “decoreba” – até o texto que transmite novos conteúdos, assim como o caderno de exercícios que, de fato, visa exercitar novas aptidões e criar novas soluções. O caderno de exercícios pode ser nomeado de leitura instrumental complexa.
Com uma leitura que permite a apreensão de novos conteúdos, passamos agora às leituras informativas. Neste último grupo há a leitura jornalística, cujo grau de fidedignidade deve ser julgado pelo leitor, leitura que se abre a interpretações, ainda que dentro de certos limites e juízos. E a correlação sujeito/ objeto torna-se fonte de juízos pelo leitor. Esse assunto me interessa o suficiente para nele gastar meu tempo? O jornal é confiável? O comentarista político é tendencioso? Que interesses há por detrás?
Mas quando se fala da importância da leitura, do ato de ler e dos livros, sempre se pensa em algo além das formas de leitura instrumental ou informativa. Pensa-se na leitura de textos literários, de qualquer tipo, para qualquer idade. Na leitura literária, a relação sujeito-objeto pende para o polo subjetivo. Isso implica também que, em vez de uma simples e instantânea adequação entre sujeito e objeto, ocorre um processo de reconstrução de sucessivas imagens pelo leitor. Não de imagens estáticas da leitura instrumental, o que nos levaria a pensar no imaginário lacaniano, mas imagens em uma sucessão, transformando letras e sinais gráficos em uma sequência narrativa. Metamorfose de uma folha de papel e seus sinais impressos em uma outra forma de linguagem, já no domínio do simbólico.
O texto é criado e recriado dentro do leitor, que, por sua vez, consciente ou inconscientemente, associa as imagens com suas próprias lembranças, vivências e afetos. Ocorre ao leitor o esquecimento de que se trata de simples papel impresso o que tem diante de si, e sim imagens de uma história passam a se desenrolar no interior do seu eu. Pode-se completar citando Desmurget (2022, p. 94-95):
[...] o texto escrito não é apenas uma alternativa às vias auditivas. Ele é quase uma segunda língua a ser adquirida: uma língua mais rica e sutil, potente, reflexiva e precisa [...], mas o cérebro só pode adquirir essa bagagem ao ser lenta e pacientemente confrontado com o mundo escrito.
Com a leitura do texto literário, entramos em um novo domínio, onde a classificação epistemológica segue adiante com o auxílio da psicanálise. A leitura do texto literário implica que se deve esquecer que tudo que há defronte de si é uma folha com sinais impressos. Ao contrário da leitura instrumental ou da leitura informativa, o objeto ao qual se dirige a atenção não é externo, mas recriado dentro do leitor. Seja um romance, a leitura de uma peça de teatro ou um poema, o leitor constrói dentro de seu eu uma imagem e um sentimento. Ou cria várias imagens e sentimentos, como nos casos do romance ou da peça de teatro, em que, além de se esquecer de que se trata de simples papel impresso o que tem diante de si, mas uma história passa a se desenrolar no próprio eu. Tudo se passa como se dentro de si o leitor possuísse um teatro ou uma tela de cinema. Adentramos o reino de um tipo de devaneio em que somos conduzidos pelo autor. Ao contrário do sonhar acordado diurno, passageiro e ancorado em alguma breve fantasia, comumente erótica e narcísica, o sonho acordado da leitura nos conduz a uma viagem mais longa e vasta. Sempre incompleta devido à imagem furo da qual cada leitor cria sua própria versão, ou versões. E um universo de associações conscientes e inconscientes.
Uma vez que Freud tenazmente defendia várias formas do mesmo contínuo - corpo/ mente, neurônio/pulsão, inconsciente/ consciente e pré-consciente – uma explicação neurocientífica também lhe cai bem. Embora nada adepto da psicanálise, escreve Desmurget (2022, p. 100) sobre o paralelismo do que classificamos como literário e seus efeitos (ou causas?):
[...] De fato, as informações não permanecem confinadas por muito tempo a suas redes específicas. Elas irrigam quase instantaneamente todo o cérebro, desde as áreas emocionais até as regiões da inteligência social, passando pelas áreas sensoriais e de controle motor; isso ocorre porque os livros, especialmente de ficção, mergulham o leitor na história, assim, permitem que ele experimente uma variedade de sentimentos (empatia, raiva, alegria etc.), estimulando áreas cerebrais que seriam ativadas se ele confrontando essas situações na “vida real”.
Leitura, sonho e metamorfose
Falando de sonho e de devaneio, retornemos à psicanálise. A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1978) contém em seu bojo, entre muitas outras coisas, uma teoria da linguagem. Todo sonho ou imagem de sonho pode ser traduzido por uma frase. Freud a denominou pensamento onírico. Há uma correlação direta entre imagem e linguagem. Mas a frase que se transforma em imagem, e vice-versa, não é uma frase do que chamamos de prosa, mas “forma uma frase poética de grande beleza e significado” http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372007000100003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt-8 (Freud, 1900/1978, p. 278, tradução nossa)
Pelas frases que deciframos no pensamento onírico, entre várias outras características, predomina uma linguagem condensada, com poucos conectivos, quase exclusivamente composta de substantivos, prenha de duplos sentidos, de usos novos e inusitados das palavras. Tanto no sonho quanto na linguagem poética, só o essencial é esboçado. A recriação da imagem pelo leitor deixa a cargo da sua própria imaginação inventar e preencher todas as lacunas. Preenchimento e invenção que involuntariamente o conduzem por infinitas associações, conscientes ou inconscientes. Assim, muito mais que no devaneio, podemos pensar no termo imaginação = imagem/ação.
Usando os princípios freudianos da interpretação dos sonhos, conceituamos (Lopes 1996) como sendo a essência da leitura literária um tipo de imagem, aquela que se constitui como o “espaço” intrassubjetivo recriado através da linguagem poética. Mas a relação entre o pensamento onírico e a imagem do sonho nos conduz a outros mistérios, que decifrados também podem nos explicar melhor, quando acordados, o fenômeno e o prazer da leitura literária.
A leitura instrumental simples, aquela do manual de geladeira, que não deixa margem a outras interpretações, é domínio da prosa. As leituras instrumentais complexas e as informativas utilizam-se quase todas da prosa. E de uma prosa de pura linearidade, de sentido único do ato de ler e único sentido de seu conteúdo. Embora já permitam mais liberdade ao leitor, que pode completar ou mesmo julgar o que é transmitido.
A leitura literária oscila entre trechos em prosa e trechos em poesia. Mas o que genericamente chamamos de poesia, possui outras semelhanças com o sonho além apenas da analogia com o pensamento onírico. A linguagem poética se utiliza de uma linguagem figurada, intensamente polissêmica. Com tantos sentidos, assim como o sonho, também, se desdobra em tantos personagens, cenários e temas? De onde vieram? Para que o teatro, o cinema, a televisão ou romance? Por que mesmo despertos buscamos outras histórias que não a nossa? Por que só um eu, não nos é suficiente?
Os seres humanos são por natureza criaturas que possuem prazer na mimese (conceito de Aristóteles em sua Poética, 1992), isto é, tanto na representação ou na imitação do real pela arte, quanto na imitação do gesto, voz e palavra de outrem. As imagens interiores provocadas pela leitura literária, que também podem ser evocadas pela contação oral, metamorfoseiam o leitor em diferentes personagens, transportam-no para épocas de culturas e crenças que já não mais existem, ou aonde nunca poderá ir, ou que são mera fantasia. A leitura literária torna possível viajar no tempo e no espaço, não como mero espectador de um documentário, mas como participante em uma experiência de “estar na pele de alguém”. Dessas viagens não se retorna impunemente. Definiu o Nobel de literatura Elias Canetti (1990, p. 281-282): o poeta-escritor é o guardião das metamorfoses. Cabe a cada leitor reativar esta herança, inventar seu roteiro de viagem e arriscar as transformações.
Num mundo onde importam a especialização e a produtividade, que nada vê senão ápices [...] em uma espécie de limitação linear [...] que multiplica irrefletidamente os meios para sua própria destruição [...] que poderia se caracterizar como o mais cego de todos os mundos, parece de fundamental importância da existência de alguns que, apesar dele, continuem a exercitar o dom da metamorfose.
Mas se falamos em mimese, seu complemento aristotélico na Poética é a catarse: descarga, purgação, purificação da alma por meio de uma descarga emocional. Descarga emocional necessária para aliviar o impacto da cena, seja do livro, cinema, teatro ou lembrança do próprio sonho. Não por menos catarse ser um termo que conecta a arte com a medicina, intersubjetividade e intrassubjetividade com redes neurais.
Leitura, cinema e psicanálise
“Da página à tela: quando um romance é interpretado no cinema, o que se perde na transferência?” A resposta é bastante simples: “O filme usa menos palavras polissilábicas [...]. O filme possui menos diversidade lexical [...]. O filme reduz a complexidade dos diálogos, da trama, dos personagens e do assunto”. Novamente, isso não significa que a imagem seja desprovida de riqueza e que o cinema seja uma arte secundária. Significa apenas que a transição da escrita para a tela empobrece consideravelmente a riqueza linguística das obras (Desmurget, 2022, p. 135).
Concordamos com o autor. E se trata de uma constatação muito comum de quem teve acesso ao livro e ao filme. Mas por que a tela empobrece linguisticamente a riqueza das obras literárias? A explicação do menor uso de palavras polissilábicas, de menor riqueza lexical e simplificação do enredo é correta, mas muito incompleta. Tentemos enriquecê-la pelo viés psicanalítico.
Como descreve o pesquisador francês, são necessários muitos anos de aprendizado das crianças para a leitura literária. É preciso que, ao mesmo tempo, se formem novas redes de vocabulário, com significados superpostos e novas conexões neurais, como acima defendemos, tendo a participação das frases poéticas e sua ligação com a linguagem onírica. A leitura literária, mesmo que aparente ser só de prosa, produz infinitas associações conscientes e inconscientes. Sem perceber, cada leitor cria suas próprias redes interpretativas. E não se lê um livro duas vezes, pois a segunda leitura já foi afetada pela primeira. E mesmo nesta surgem diferentes sentidos superpostos.
As grandes obras literárias, independentemente de seu número de páginas, produzem uma teia infinita. A leitura literária, construída pelas imagens intrassubjetivas, com sua oscilação entre prosa e poesia, criando no leitor infinitas associações, conscientes e inconscientes. Torna mais porosa a comunicação entre as duas grandes instâncias da primeira tópica freudiana (consciente/pré-consciente e inconsciente) e das três instâncias de sua continuadora, a segunda tópica (eu, isso e supereu). Assim, a psicanálise, em todas as suas leituras, levanta mais do que imagens e suas relações com a palavra. Mais que uma psique composta e subdividida em várias seções e com modos diferentes de funcionamento. Mesmo em nossas vias sinápticas, somos tão plurais quanto as obras que nos cercam.
O próprio Freud, cuja obra psicanalítica foi um crescente movimento que abrangeu mais de quarenta anos, também postulou que o eu (ego) não é uma instância muito coerente e compacta. Internamente possui uma ou mais cisões. Pontos de estreitamento que configuram dois ou mais eus. Autores posteriores postularam maior número de eus. Lendo um texto literário ou assistindo a um filme, com quantos personagens nos identificamos? Impossível saber, porque são muitos os nossos eus e personagens. E algumas identificações são conscientes, outras inconscientes. “O homem: um microcosmos”, fragmento do pré-socrático Demócrito (apudBornheim, 1999, p. 108). E que também pode justificar as metamorfoses de Canetti, autor.
Quanto transportado do livro para o filme, é necessário que haja uma interpretação do cineasta. Exceto quando composto por várias histórias completamente separadas, é inimaginável um filme com vários diretores. É necessário um único diretor e suas leituras do texto, que podem ser muito ricas, mas já limitam bastante a interpretação do espectador. E ainda há o dado objetivo de que um livro frequentemente engana. Apesar do pequeno tamanho, um bom autor pode nele colocar uma história principal e várias paralelas. Cabe ao roteirista e ao diretor a árdua tarefa de apresentar ao público na maioria das vezes uma versão resumida, passível de ser encaixada em umas duas horas na tela.
Mas não desprezemos roteiristas e diretores de cinema. Ao contrário, os mais criativos, além de superar as dificuldades da transformação dos textos originários para um meio de comunicação diverso, muitas vezes enriquecem o texto fonte suas próprias interpretações. Com frequência os mais famosos diretores também são os próprios criadores de toda a história do filme.
Leitura e liberdade
Contudo, algo ou alguém que seja intermediário entre o leitor e o livro, pode diminuir o acesso ao texto. Muitos, ou a maioria dos potenciais leitores, podem não ter acesso a livros por falta de meio para adquiri-los. Há muita propaganda de que os textos digitais são mais baratos. “Isso é verdade, mas [...] fornecem apenas um “direito de uso” e não pertencem realmente ao leitor” (Desmurget, 2022, p. 239).
É necessário que governos acreditem que a criação e o acesso às bibliotecas são algumas das principais formas de democracia. Seus livros não pertencem diretamente ao leitor, mas em uma democracia tudo que pertence ao poder público, também pertence aos cidadãos.
A diversidade dos livros, seus conteúdos e interpretações são infinitas. Personalidades autoritárias são prenhes de narcisismo de morte. Não toleram algo diverso do que pensam ou creem. E contra o diverso e o diferente, reagem com violência. Em realidade são personalidades fracas, que necessitam de repressão concreta, física, chegando à necessidade de extermínio do outro, para que não se sintam, eles mesmos, aniquilados diante da diferença. Ou pior, o que é reprimido fora precisa de violência, porque consciente ou inconscientemente o percebem e identificam dentro de si mesmos. Novamente podemos citar Desmurget (2022, p. 224-225):
[...] livros, poderíamos mencionar o ódio visceral que todos os tiranos do mundo sentem por eles. Por séculos fizeram a destruição de obras literárias uma prioridade constante e absoluta. [...] fundamentalistas de todos os tipos têm um instinto ardente de queimar livros. Os nazistas são um triste exemplo disso. Sozinhos, eles destruíram mais de 100 milhões de livros. [...] este é, aliás, o objetivo primordial de todos os grandes autos da fé: “Forçar uma amnésia histórica que facilite o controle de um indivíduo ou de uma sociedade”. Esse controle é estabelecido ainda mais facilmente quando a destruição das obras inevitavelmente em uma perda intelectual substancial, em particular na linguagem. Como vimos, é nos livros que se escondem as riquezas da língua, em termos tanto sintáticos como lexicais; quanto falta a leitura, a linguagem sofre.
E o pesquisador francês ilustra, melhor do que com exemplos da história ou da religião, com três clássicos da ficção científica: Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932; 1984, de George Orwell, publicado em 1949; e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado em 1953.
A obra de Huxley descreve um mundo opressor onde, entre outras características, há manipulação de todos pelo estado com o uso de condicionamento comportamental associado a uma droga denominada soma, fartamente distribuída para todos e facilita a intensa repressão da sexualidade. Mais interessante na violenta sátira de Huxley, é o discurso de Mustafá Mond, uma das dez Fordências (neologismo criado a partir do nome de Henry Ford, o grande propulsor das linhas de montagem nas fábricas e simpatizante do nazismo) que governam o mundo. Para Mond, a arte, a literatura e a liberdade científica têm de desaparecer. Demonstração por Huxley de como a verdadeira arte, englobando também a criatividade científica, é em si sempre subversiva, porque evoca algo novo e muito pessoal.
Especificamente no caso de livro, o espaço intrassubjetivo que pela linguagem cria a leitura literária é ilimitado em associações, conscientes e inconscientes, infinitamente aprofundando a subjetividade do leitor. E o que move e sempre desestabiliza a natureza humana é algo infinito e quase totalmente desconhecido, entre corpo e mente, a transformação de um no outro: a pulsão. Domesticar ou acabar com a pulsão é o desejo máximo de todas as pessoas e sociedades totalitárias.
Leitor de Huxley e Orwell, Bradbury radicaliza. Com sucesso. Fahrenheit 451 descreve uma sociedade em que os livros são proibidos e queimados. E quem tenta defendê-los também sofre o mesmo destino. Há muita semelhança com as obras predecessoras. Todos são saturados por telas, empanturrados de sedativos, repletos de solidão, dominada pelo imediatismo, exposta a um constante bombardeio midiático e, no fim, como esperado, povoada por zumbis sem cérebro, servis e conformistas.
Como não reconhecer nessas sinistras distopias os traços de um mundo para o qual estamos lentamente caminhando? O Ocidente não está reunindo, em um único e mesmo modelo, os piores de Ray Bradbury, George Orwell, e Aldous Huxley? Nossos filhos não leem mais, ou quase não leem; seus cérebros são entorpecidos por telas recreativas, suas vidas se desenrolam inconscientemente sob constante vigília digital, e seus sonhos estão diminuindo cada vez mais, aprisionados no enredo consumista de lazer e aparências. Isto constitui uma vida? (Desmurget, 2022, p. 226).
Defensores dos meios digitais propagam que os meios digitais são mais baratos e não consomem espaço para serem guardados. O que é menos que uma meia verdade. Principalmente num país como o nosso, onde a maior parte da população sequer tem meios financeiros para periodicamente trocar seu telefone celular pelos modelos cada vez mais novos. Muitas coleções de livros possuíam edições de bolso. Livros baratos e pequenos. Inclusive com bancas que se especializavam nas trocas desses exemplares. Além da grave questão de a quem e por quanto tempo pertence ao leitor o livro digital. E retornamos à questão das bibliotecas públicas como fonte de cidadania.
Embora a procura de serviços de livros eletrônicos nas bibliotecas tenha crescido nas primeiras duas décadas do século XXI, as dificuldades impedem as bibliotecas de fornecer alguns livros eletrônicos aos clientes. Os editores venderão e-books às bibliotecas, mas na maioria dos casos apenas concederão às bibliotecas uma licença limitada para o título, o que significa que a biblioteca não possui o texto electrónico, mas está autorizada a circulá-lo durante um determinado período de tempo, ou um certo número de checkouts, ou ambos. Quando uma biblioteca adquire uma licença de e-book, o custo é pelo menos três vezes maior do que seria para um consumidor pessoal. As licenças de e-books são mais caras do que as edições em papel porque os editores temem que um e-book vendido possa, teoricamente, ser lido e/ou verificado por um grande número de usuários, potencialmente prejudicando as vendas (Wikipedia, 2023).
Mais perigosa ainda é a concentração de várias redes sociais e plataformas transnacionais com os mesmos proprietários. Um número de megamagnatas, que se conta nos dedos de uma mão, desenvolvem, fabricam, licenciam, apoiam e vendem softwares, produtos eletrônicos, computadores e serviços pessoais. Até mesmo produzem páginas iniciais para meios digitais com um simulacro de informações, como se fossem a primeira página de um jornal. Páginas muitas vezes com nítido viés político.
Admirável mundo novo, 1984 e Fahrenheit 451 estão ultrapassados. E “o poder enlouquece, o poder absoluto enlouquece absolutamente”, frase do jornalista e escritor francês conhecido como Alain (Emile Auguste Chartier).
Nascimento da linguagem: posições esquizoparanoide e depressiva, simbolização e reparação
Tal como as descobertas geológicas e arqueológicas, a psicanálise iniciou seus achados a partir das camadas mais superficiais em direção às mais profundas. Metáforas que Freud repetiu ao longo de sua obra. Apesar de uma vida bastante longa e criativa até o final, legou a seus sucessores a continuação de suas escavações psicoarqueológicas.
A partir de pacientes adultos, descobriu que a base de todos nós é a primeira infância, do nascimento aos cinco, seis anos. Vislumbrou-a no caso clínico conhecido como Pequeno Hans e em observações como a de um de seus netos, que pela ausência da mãe, que não tinha como controlar, a substituíra por um carretel que podia afastar e puxar de volta à vontade.
Contudo, foi ainda em vida que Freud, ao início dos anos 20 do século passado, mais de duas décadas após o início da psicanálise, viu surgir a primeira geração de analistas mulheres, questionando as descrições freudianas de que o feminino era um homem com defeito. Entre essa geração de novas analistas, Melanie Klein foi a principal. Dedicou-se à análise de crianças. Se Freud havia descoberto a criança no adulto, Klein descobrirá o bebê na criança.
Freud postulara as fases oral, anal e fálica na primeira infância. Klein as aprofundará e, para não conflituar com a sequência freudiana, nomeou de posições: esquizoparanoide e depressiva. Ambas na fase oral freudiana.
Nascemos muito incompletos. Um bebê recém-nascido e nas primeiras semanas de vida, pouco mais é do que uma boca. Que sequer consegue mamar. Tanto o bebê como sua mãe têm de aprender a amamentar. Assim como não há no bebê uma unidade psíquica ou corporal, não há uma percepção unificada das pessoas que o cercam e do meio ambiente. Só duas sensações básicas. O prazer da amamentação, com o cheiro, o olhar e a voz da mãe ou de quem o faz, associados à saciedade E vários desprazeres corporais: fome, gazes (todo o intestino e os orifícios corporais têm de ser povoados por bactérias simbiontes), frio ou calor, inevitáveis infecções, entre outros.
A primeira forma de dar uma ordenação nesse universo de sensações, a partir de um corpo e um ambiente vividos como pedaços, é separar o que é prazeroso do que é desprazeroso. Assim também para o bebê ainda não há a separação de um dentro ou fora de seu corpo ou de seu eu, o mecanismo mais simples é considerar seu tudo aquilo que é bom e ruim tudo o que vem de fora. Baseada nas primeiras experiências de um bebê, Klein denominou os dois grupos de sensações ordenados por um bebê nos primeiros meses de vida de seio bom e seio mau. De modo bastante simplista, podemos dizer que para o bebê o que é bom é dele, o que é ruim é de fora, estabelecendo, assim, os dois primeiros processos psíquicos: incorporação e projeção.
A partir de um termo do início da psiquiatria, também nascente ao final do século XIX, Freud já utilizara para adultos o termo “cisão” (squizo) do eu, cuja manutenção ou ressurgimento na adolescência ou vida adulta causará o gravíssimo quadro de uma cisão da mente (squizophrenos). Para um bebê, o mais saudável é incorporar para si o que é bom e projetar para fora o que é ruim. Independentemente do que tenha vindo de dentro ou de fora. O seio bom, mamilo ou mamadeira, objetivamente está fora, mas o bebê o incorpora dentro de si. Tudo que provoca mal-estar ou dor, grande parte das vezes vindo do próprio corpo do bebê – fome, gazes, dores, febre – é projetado para fora.
No entanto, cedo ou tarde, o que é projetado acaba retornando. E o que é bom, até como forma de proteção contra sua própria agressividade, também acaba sendo projetado. Esses movimentos mais e mais trazem substrato para a construção do eu. A ordenação em dois polos tão maniqueístas é necessária no início da vida para iniciar a ordenação mundo do bebê, apesar de altamente arbitrária. Para um bebê em um ambiente suficientemente bom, as experiências prazerosas predominam sobre as ruins, o que reforça o início de seu eu, ainda indiferenciado em psíquico e corporal. Há variantes e combinações do que Klein denominou projeção identificativa. Mas sem dúvida, na separação entre o prazer e a dor, entre o bom e o ruim, feita pelos bebês, predomina o arbitrário e o extremismo.
De modo bastante resumido, a esquizoparanoide corresponde aos primeiros meses de vida do bebê. Segue-se a depressiva, mas entre ambas há fenômenos de transição que Klein denominou de defesas maníacas. Mas assim como nas fases freudianas da primeira infância, as posições esquizoparanoide e depressiva permanecem pela vida inteira. Modificadas, mas fornecendo base para a psiquê adulta, ou até mesmo com o predomínio da cisão, a posição esquizoparanoide nos capacita com a fria objetividade da ação em momentos de grandes crises. Ou o oposto, quando da liberdade para da criação de sonhos, nos quais podemos retornar ao mais precoce de nossa infância, sem o risco de comprometer a vida adulta.
O desenvolvimento psíquico, motor e dos órgãos de um bebê no primeiro ano de vida é gigantesco. Gradualmente vai unificando o controle da musculatura, a percepção do meio ambiente e percebendo que o dualismo maniqueísta dos dois seios é uma fantasia sua. O controle do corpo o leva a sentar-se, depois engatinhar, finalmente a andar. Movimentos simultâneos conduzindo a um grau muito maior de unificação do eu corporal, do eu psíquico e do meio ambiente. Diminui a existência de tudo arbitrariamente classificado em dois mundos antagônicos.
Mas a constatação de que o seio tido como onipotentemente bom também é o que frustra e pode faltar, e que sensações ruins – fome, sede, gazes, dor – não são necessariamente vindas de fora, mas de dentro de si mesmo, produzem grandes limites ao narcisismo e à onipotência da posição esquizoparanoide. Ao mesmo tempo que integra seu eu e seu corpo, o bebê passa a unir o meio ambiente e as pessoas que o cercam. Como a percepção do espaço e tempo psíquicos são construções simultâneas, agora o bebê as unifica. E descobre que o seio bom cria o paraíso terrestre, e o seio ruim, quando demora a vir ou é privado, causa ondas violentas de ódio e pulsão de morte. Seja um seio humano, seja uma mamadeira, em realidade é um só. E que não é dotado do narcisismo extremo e antagônico dos seios mau e bom. E que ele, o bebê, não passa de uma pequena criatura à mercê de um mundo de gigantes. Usando um termo de Freud, uma enorme “ferida narcísica”. Por isso, Klein denominou de “posição depressiva” essa constelação física e psíquica, que sucede a posição esquizoparanoide.
Na posição depressiva, o bebê e a criança em se transforma descobrem que o objeto atacado era o mesmo que o amado. E que não há como retornar no tempo e desfazer as agressões. Mas as características do processo primário, modo primevo de funcionamento da mente, descrito por Freud, onde há muita mobilidade e energia livre, reina o deslocamento possibilitando que, por algum elo associativo comum, se translade pulsão de uma para outra representação. O que no passado foi agredido na realidade ou na fantasia, assim como o que não pode ser diretamente satisfeito na realidade, por medo de uma punição fantasiada ou real, pode agora usar da mobilidade do processo primário para indiretamente ser satisfeito.
A cisão entre identificações ou projeções maciças abranda. Surge a necessidade de um novo mecanismo: a reparação. Torna-se a mais forte função do eu para reconhecer uma realidade menos deturpada pelo narcisismo. Permite que impulsos construtivos e criativos que parcialmente recuperem o objeto amado, porque não há como voltar no tempo para um conserto completo dos objetos originais. Mas pelo deslocamento e pela condensação, objetos substitutivos podem tomar seu lugar e ser consertados. Mas esses objetos são herdeiros do objeto original, Como a reparação nunca pode ser completa em um objeto substituto, em breve outro terá de ser achado para reiniciar o processo.
O substituto também pode ser considerado como um símbolo. Na posição depressiva, ocorre o início da criação de símbolos. E deles vem o surgimento do protótipo para todas as linguagens verbais e não verbais. É a simbolização, a possibilidade da restauração parcial dos objetos primários. Para Klein e para os kleinianos, a simbolização tornada possível na posição depressiva, além de indissociável à linguagem, é que possibilita todo o mundo das ocupações e profissões, da arte e da sociedade.
Linguagem e leitura: um pouco de Darwin com Freud
O pesquisador francês apresenta uma ideia simples e até bastante óbvia. Justamente aquelas que sintetizam as descobertas mais difíceis. Escreve Desmurget (2022, p. 100):
[...] se aprender a ler é demorado e difícil, isso se deve em grande parte ao fato de que a evolução humana não teve tempo suficiente para incorporar a leitura ao núcleo duro das transmissões hereditárias. Para remodelar seus padrões neuronais e construir redes adaptadas, o cérebro precisa absorver quantidades industriais de dados.
Todas as referências de Desmurget sobre a prática da leitura iniciam-se na primeira infância, geralmente aos três anos e seu ápice no período de latência. Momentos máximos da plasticidade neuronal. Mera coincidência com as descobertas de Freud, 100 anos antes, sobre a importância básica da primeira infância para os seres humanos? Mas é certo que a duração da infância humana, e mesmo de nossos parentes mais próximos – chimpanzés e bonobos – foi muito prolongada em comparação com a média de vida da espécie. O que possuí o rótulo de neotenia. Ainda mais acentuada na espécie humana que em nossos primos mais próximos. Comparado com outros mamíferos mais afastados, basta observar os mais domesticados por nossa espécie, tal como cães e gatos, o bebê humano ainda é por longo período um feto quando expelido do corpo materno. E um terço do tamanho do bebê é composto apenas por sua cabeça.
Mas a neotenia também é a desaceleração ou atraso do desenvolvimento corporal até a vida adulta, resultando em características como cabeça grande, rosto achatado e braços relativamente curtos. Essas mudanças devem ter sido provocadas na evolução humana pela seleção sexual e adaptativa para a organização de sociedades mais complexas e mais facilmente capazes de se adaptar aos mais diversos meio ambientes. Também permitindo o desenvolvimento de dons humanos, como regras sociais e comunicação emocional muito mais complexas. Fundadas sobre uma base neuronal gigantesca, da qual só temos contato direto ou quase apenas com o que Freud denominou de consciente e pré-consciente. Neurológica ou psicanaliticamente, o resultado da lenta aquisição da leitura literária a partir da primeira infância tem o mesmo resultado: as informações não permanecem confinadas muito tempo em áreas específicas. Acima vimos como a leitura literária instantaneamente liga incontáveis regiões cerebrais, desde áreas emocionais, passando por regiões da inteligência social e cognitivas. Em tudo como se, para o córtex, não ocorresse apenas um algo subjetivo, mas situações da vida real. Outra função psíquica aprimora-se: distinguir o que é meu e o que é do mundo. Denominado por Freud de teste de realidade.
Conclusão: consequências do cretinismo digital -o regresso ao mundo dos extremos
A própria psicanálise em si mesma está colocada em xeque. Despreza-se a “cura pela fala”, em detrimento de novos e cada vez mais poderosos variantes do soma. Já existe um quase ideal: o crack. Quase, porque já há informações de outro mais potente, apelidado ‘droga zumbi’, uma substância 50 vezes mais forte que a heroína (O Globo, 2023).
A leitura de livros dos físicos tradicionais desde Gutemberg desaparece não apenas em função dos livros digitais, que com todos os déficits ainda são uma leitura, mas para o tempo gasto com mensagens, textos curtos e imagens on-line. As redes sociais ganham ápices vertiginosos. As consequências, além do surgimento da primeira geração dos cretinos digitais, de Desmurget, vai desde o crescimento dos extremismos políticos, que servem como ilustração social para os dois polos cindidos na posição esquizoparanoide, associados a regressões espantosas, como o retorno da crença na Terra plana e o negacionismo das conquistas da medicina e da saúde pública, como as vacinas. Ilustração da crescente dificuldade, desde crianças na primeira infância até adultos, em colocar a posição esquizoparanoide sob o predomínio da posição depressiva. E, assim, temos: expressão corporal direta, pensamento concreto, onipotência de pensamento, negação, idealização, não aceitação das diferenças, narcisismo das pequenas diferenças, inveja, sem reparação nem subjetividade.
Podemos ousar algumas outras interpretações. Pelo referencial lacaniano, uma infindável tentativa, que sempre houve e há em todos, mas foi maniacamente cada vez mais potencializada nas últimas décadas, de tamponar definitivamente o objeto a que une e mantém o nó borromeano. Isto é, o extremismo criado pelo predomínio da imagem muro. Potenciais novos leitores não adquirem a capacidade de ler textos literários e recriar imagens poéticas. Só de utilizar linguagens lineares, úteis para o lucro do mercado.
O narcisismo oriundo da percepção direta pelos sentidos soterra o conhecimento vindo de saberes abstratos que fundamentaram a criação de máquinas e técnicas sofisticadíssimas, que demonstram que o Universo não é só o que vemos pelos sentidos, mas principalmente o que dele podemos intelectualmente descobrir.
E voltemos à questão da leitura, agora retornando ao próprio Freud. A partir de três textos seus que, apesar de serem sobre o mesmo tema, foram escritos ao longo de quatro anos e jamais unificados: os três ensaios de Moisés e o monoteísmo. No terceiro ensaio, Freud (1939/1978, p. 112) discorre sobre o nascimento da linguagem humana, ainda prenhe de narcisismo.
Toda a magia das palavras [...] e a convicção do poder que está ligado ao conhecimento e à pronúncia de um nome. A “onipotência dos pensamentos” era, como supúnhamos, uma expressão do orgulho da humanidade no desenvolvimento da fala, que resultou num extraordinário avanço das atividades intelectuais (tradução nossa).
Entretanto, anos antes da citação acima, no primeiro ensaio, Freud defendera uma tese pouco comum na época, mas hoje defendida e, a partir de pesquisas muito mais profundas, aceita. Por muito tempo os gregos antigos, tendo criado as vogais, eram tidos como os pais do alfabeto, do qual surgiram o romano e todos os demais alfabetos ocidentais. Hoje se considera que os gregos assimilaram escritas semíticas, séculos antes de sua época clássica. Que já tinham abandonado registros, como os trabalhosos hieroglifos, em função de desenhos simples e rápidos de serem feitos, em número finito e pequeno signos, que em si mesmos nada representavam, mas cuja combinação podia ser infinita. Isto é, registros pictóricos foram completamente substituídos por uma nova criação: símbolos.
A história do rei David e do seu período é provavelmente obra de um contemporâneo. Se for um escrito histórico genuíno, quinhentos anos antes de Heródoto, “o pai da história”. Fica mais fácil entender essa conquista, nos moldes da nossa hipótese, pensamos na influência egípcia. Surge até mesmo a suspeita de que os israelitas daquele período inicial – isto é, os escribas de Moisés – possam ter tido alguma participação na invenção do primeiro alfabeto (Freud, 1939/1978, p. 42-43, tradução nossa).
Pode-se complementar as ideias de Freud a partir dos achados de Desmurget. O nascimento da linguagem humana foi uma grande conquista. Mais difícil foi a separação entre fala e a realidade. A palavra falada era, e ainda é, dotada de características muito narcísicas. Podemos constatá-las pela fala de crianças na primeira infância. Cada palavra deve se referir a um objeto específico. Não um conceito abstrato. Por exemplo, o caso dos sinônimos. É incompreensível para elas que haja várias palavras para nomear um mesmo objeto, por exemplo: tangerina, bergamota e mexerica. O investimento narcísico nunca é completamente abandonado na fala. Mas na palavra escrita, representada por símbolos, sua aquisição é mais completa e, por meio da leitura literária, necessita de anos de esforço para a criação de novas redes neurais. O processo de aquisição em si já constitui uma ferida narcísica.
Os livros nos levam a infinitos novos mundos. Mas descobrimos neles a diferença e a universalidade entre personagens, povos, épocas e histórias. Por meio da diferença, a leitura literária em si já constitui uma ferida narcísica. Construída sobre outra, que foi o esforço e a gratificação pela conquista de um mundo novo: a leitura literária.