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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

Restituição da metáfora: a condição de linguagem na análise*

 

The restitution of metaphor: the condition of language in analysis

 

 

Alan Victor Meyer**; Sandra Lorenzon Schaffa***

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do trabalho de supervisão de um material clínico, os autores discutem a intervenção do supervisor, que focaliza o caráter insuportável do psíquico para um paciente. O reconhecimento dessa condição se dá por meio da ambigüidade testemunhada pela analista no seu contato com a vida psíquica do analisando. Discutimos as implicações técnicas dessa intervenção, que nos permitiu refletir sobre “o problema da incidência técnica da violência do psíquico sobre a condição de linguagem na análise”, como poder metafórico de sustentação da situação analítica.

Palavras-chave: Fala. Linguagem. Metáfora. Sonho. Técnica psicanalítica.


ABSTRACT

In the present paper the authors discuss a supervision of an analysand, where the supervisor focuses on the unbearable character of psychic life for this patient. The recognition of this situation is made tangible by the ambiguity testified by the analyst. We discuss the technical implications of this intervention in order to reflect on the “problem of psychical violence in its incidence on the condition of language in analyses”, considered as metaphoric power that sustains the analytic situation.

Keywords: Discourse. Language.Metaphor. Dream. Psychoanalytical technic.


 

 

Participante A: E você não tem medo desse paciente?
Analista: É um paciente que me comove muito.
Às vezes eu me sinto intimidada.
Participante B: Você não acredita que ele vá te assassinar?
Analista: Não acredito que vá me assassinar: o que me parece
proibido para esse paciente é alguma coisa da ordem da ternura
.1

 

O que fazemos com as impressões que recebemos no contato com a palavra dos analisandos? O que nos permite alcançar uma condição de linguagem que reconheceríamos como própria à função analítica? O diálogo, transcrito na epígrafe, teve lugar em uma supervisão em grupo, após a apresentação de uma sessão.

Carlo não se deita. Mesmo assim, freqüentemente adormece durante as sessões e, quando isso acontece, ao despertar, as interrompe, retirando-se. A analista expõe ao grupo e ao supervisor a sua dificuldade em responder às falas “sexual-truculentas” do analisando e, mais agudamente, em permanecer em silêncio junto dele.

“Fico muito aborrecido com essa situação que aconteceu na última sessão.Você não consegue me convencer de que não seja um total desperdício dormir aqui durante a sessão. Será que não seria o caso de diminuir o número de sessões? Não vejo o sentido do sono, quando é que ele vem? Às vezes acho que é por não ter o que falar, como ontem. Hoje também não sei.”

Naquele momento, após essa manifestação, Carlo permanece em silêncio fitando a analista. Ela diz a ele: “Eu tive a impressão de que algo te pareceu estranho ao entrar aqui hoje”. “Não, apenas uma pontada no torcicolo”, responde Carlo, que torna a silenciar e continua olhando para a analista por algum tempo. Depois prossegue: “Ao contrário, hoje cheguei mais cedo porque queria relaxar um pouco ou talvez você me atendesse mais cedo, se estivesse disponível. Não havia nenhum carro na frente. A porta da sala de atendimento estava aberta e vi que você não estaestava, não espiei por nenhuma outra porta e entrei na sala de espera. Em vez de descansar, dei dezenas de telefonemas. Se você não viesse, iria embora”. O paciente silencia mais uma vez, observa a analista por mais algum tempo e diz: “Tenho estado obcecado novamente pela M. A vontade é de raptá-la, fazer amor com ela e matá-la. Se não fossem as conseqüências, contratava um gorila que executasse isso para mim. Sabe, é uma coisa muito perversa, não aceito moralmente a prostituição, o homicídio, mas adoraria ter prostitutas, muitas, à minha disposição, usá-las para manipular pessoas...”.

Carlo está em análise há seis meses.Mostrou “urgência” em ser atendido: queixava-se de viver tomado, invadido por pensamentos obsedantes de natureza sexual. Estes eram tão presentes que ele temia, ao vir para a sessão de análise, encontrar uma mulher e ser compelido a levála a um motel... Algumas vezes tais representações surgiam durante a sessão sob forma onírica ou alucinatória, quando, então, não raro, ele mergulhava num estado de sonolência. Há, no momento inicial da análise, uma angústia muito intensa no tocante à perda de controle sobre essas idéias, quadro que se modifica rapidamente. Persiste uma obsessão generalizada pelo contato sexual com mulheres, de modo indiscriminado, sem a mesma intensidade de angústia e menos pressão com relação à atuação quanto no começo.

Esse pequeno fragmento clínico, apresentado em supervisão, servirá de contexto a uma discussão clínica sobre o problema da condição de linguagem na análise. Na contracorrente das reações suscitadas no grupo de supervisão, que teve a sua atenção capturada pelo conteúdo sexual e agressivo da fala do paciente, ou ainda pelo tom quase caricatural de sua truculência verbal, a intervenção do supervisor focalizará o caráter insuportável da vida psíquica para o paciente, incidindo na dificuldade vivida pela analista na transferência. Examinaremos uma intervenção do supervisor que nos conduziu à questão sobre a qual queremos nos deter aqui: a da incidência técnica da violência do psíquico sobre a função e a linguagem do analista na sustentação da situação analítica.

“Quero compreender bem isso que diz a analista em torno do que representa a transferência: tenho a impressão de que a ligação transferencial é muito poderosa. Essa transferência é poderosa, intensa, e, para acalmar essa intensidade, ele é obrigado a mergulhar no sono, ou a se comunicar através dessas fantasias sexuais, que não são verdadeiras fantasias sexuais. Esse homem não pode viver a intensidade da vida psíquica! E o sono é o jeito mais simples de apaziguar essa intensidade desse modo, talvez esperando que a psicanalista, enquanto isso, tenha uma atividade psíquica que o mantenha em vida”, observa o supervisor.

A “visão” de que o paciente “não pode viver a intensidade de sua vida psíquica”, recorrendo ao sono e às fantasias sexuais (que, para o supervisor, não são “verdadeiras fantasias sexuais”) a fim de acalmar uma intolerável intensidade, provoca um choque de posições entre os participantes do grupo e leva o supervisor a insistir, voltando-se para a analista: “Como você reage a isso?”.

“Sei que parece caricatural, mas o que sinto é pena.Não sei como abordar certas insinuações que ele faz a mim. Penso numa situação dessas quando, ao descrever uma cena sexual, faz gestos designando a posição dos móveis do consultório. Sinto-me convocada a dizer algo, e, ao mesmo tempo, não parece fazer sentido dizer coisa alguma, tudo o que eu tento dizer se dilui”, responde a analista em supervisão.

O supervisor prossegue: “Ele precisa assustar a analista para poder começar a sentir, de modo mais positivo, a vida psíquica. Se a analista nunca tivesse medo, aí sim ficaria perigoso. Amedrontá-la, fazer com que tenha um pouco de medo, é absolutamente essencial. A fantasia de assassinar uma mulher é a fantasia de dar vida a uma mulher. Isto é, numa situação analítica como esta, é preciso ser neutro, mas é preciso também ter a capacidade de refletir essas emoções para permitir ao paciente perceber que ele produz vida própria. (...) Muitos de nossos pacientes, como esse, ensinamnos a descobrir que ter uma vida psíquica é extremamente angustiante (...). Eu tenho a impressão de que isso que ele exprime – ‘Eu temo perder o controle da situação mental’ – é extraordinário! Esse é o modo como ele nos comunica que está com a analista, que vem para que ela contenha tudo isso, sobretudo para que ele não desapareça, não exploda, não se torne louco ao se abandonar aos seus devaneios. Ele inicia, com a analista, a sonhar com mulheres, com o que pode fazer com as mulheres, matar mulheres. À primeira vista, isso é assustador, esse grande pequeno sádico que tem uma vida mental de videocassete, pois ele vê à sua frente, nessa analista,mulher, como ela reage e como ela recebe essa expressão de vida psíquica, totalmente simples, no fundo estereotipada, má pornografia. (...) Quero voltar ao início dessa análise, do trabalho com esse paciente. Quando a anaanalista começou a apresentar esse trabalho, fiquei sensibilizado pela grande angústia do paciente na situação analítica. Ele disse a ela: ‘Deixe-me às minhas fantasias de assassinar a mulher grávida, a todas as fantasias sexuais, eu me agarro a isso’, e, ao mesmo tempo, ele pode inventar de modo notável uma sonolência para se proteger da angústia intensa da situação e, ao mesmo tempo, apagar nele uma vida psíquica muito intensa provocada pela sessão. (...) Acredita ter sentido as modalidades de contato subterrâneas que a analista tem com ele, as modalidades de comunicação subterrâneas, pela maneira de recebê-lo, pelo olhar, pela presença em face dele, isso é, a maneira de trazer, através da sua própria presença, certas garantias de apaziguamento em que a vida psíquica poderia começar”.

Durante o desenvolvimento das observações do supervisor, há um esforço do grupo em considerar hipóteses sobre o que “causa” medo na vida psíquica do paciente, o que o aterroriza, levando em conta dados de sua história pessoal que haviam sido introduzidos pela analista, na apresentação da supervisão, que agora resumiremos.

Carlo tem irmãos de outros casamentos do pai e um irmão “bastardo”, descoberto depois da morte de seu progenitor. Um dia, pequeno, numa reunião, o pai comunica a ele e aos irmãos que tem uma doença fatal e irá sobreviver por pouco tempo. Um ano mais tarde, morto o pai, o paciente relata ter assumido a direção da casa e dos negócios e, inclusive, ocupa a cabeceira da mesa às refeições. Além disso, passou a dirigir carro, sem nenhuma objeção.A mãe, após a perda do esposo, adoece e virá a morrer alguns anos depois. O analisando relata um apego intenso da mãe a ele, assim como obsessões eróticas em relação a amigas da mãe, com quem teria tido efetivamente experiências sexuais na infância. O pai é descrito como “um homem de caráter incólume”, e paciente chega a se emocionar numa sessão quando se vê confrontado com o exemplo paterno. Suas obsessões sexuais remontam, segundo se lembra, a uma cena em que, excitado, escuta através das paredes do consultório odontológico do pai, as consultas das pacientes mulheres. Sua fantasia recorrente era ouvir, através das paredes, o exame das pacientes.

Diante de uma interpretação, sugerida por um dos participantes, na direção de oferecer, ao paciente, indicações sobre o efeito “atual” da fala do analisando sobre a analista (“Essas histórias que você me conta, você quer me fazer medo, eu poderia sentir medo dessa situação” ou “Essas histórias podem estar gerando um clima excitante”), o supervisor objeta:“É muito cedo”. E insiste com firmeza:“Nós partimos geralmente da idéia de que o paciente vai descobrir na sua vida psíquica os traumatismos, os conflitos, não sei o que mais, mas precisamos ser mais modestos, mais simples, para perceber que nossos pacientes... estão extremamente angustiados de sentir neles a vida... não só a vida física, mas sentir a vida do psíquico como se fosse estar ameaçado pela morte e pela loucura”.

“É muito cedo!” Entendemos a importância de considerar uma problemática que diz respeito à condição temporal da abordagem do acontecimento psíquico pelo tratamento analítico, do seu reconhecimento e possibilidade de nomeação.Mas essa questão impõe uma consideração prévia sobre o valor que assume em psicanálise o “acontecimento”.

Em sua primeira teoria da sedução, Freud reconhece um erro: atribuir ao acontecimento (traumático) um estatuto de realidade. Esse reconhecimento por Freud, confessado na célebre carta a Fliess (1956), estabeleceria um marco na definição psicanalítica do acontecimento. Em sua obra Crise et contre-transfert (1992a), Fédida aborda a questão do valor do acontecimento traumático do ponto de vista de uma metapsicologia da técnica. Importa, desse ponto de vista, tomar o acontecimento no interior da narrativa (do paciente) “tal qual é – quer dizer, na sua força de convicção fantasmática – e assim escutá-lo nesse estado da fala no qual tem lugar o acontecimento traumático” (Fédida, 1992a, p. 52). A grande revolução freudiana advém da descoberta da função auto-erótica da fantasia, na insistência do infantil nesses restos diurnos (e de vida), na condição presente da fala. O traumático deixa-se então reconhecer, fora da referência à realidade (externa), a partir de um “estado” transferencial da fala: dá à luz ao infantil (sexual) junto com a atividade alucinatória da fantasia, na fala transferencial. O abandono da referência à realidade corresponde a uma desintencionalização da fala que libera o acontecimento da compreensão de uma causalidade do passado.

“É muito cedo!” A afirmação do supervisor evoca a dimensão temporal do acontecimento que corresponde à condição da nomeação. Fédida, em um dos capítulos de Crise et contre-transfert, recorre à concepção grega de aoristo para referir-se à complexa temporalidade do acontecimento. O aoristo é um tempo que não é nem passado, nem presente, nem futuro; é, por assim dizer, o fundo do tempo, ou um tempo fora do tempo. É uma noção importante para se pensar o tempo na psicanálise e que exige do analista deixar sua escuta regular-se pela insistência de uma questão presente numa fala que não sabe o que ela tem a dizer. Essa colocação implica caracterizar a psicanálise como anamnese e não como maiêutica (o método socrático do partejamento de idéias). Escreve Fédida: “A anamnese repousa sobre um relembrar que pertence à abertura da linguagem” (Fédida, 1992a, p. 53).

O reconhecimento das condições da associatividade da fala, por Freud, implicou uma renúncia das temporalidades genéticas da explicação.A análise freudiana do sonho e da transferência envolve um abandono do regime de intencionalidade da fala. O diálogo analítico funda-se na linguagem, que encontra no sonho o seu paradigma e a ele entrega o cuidado para com a palavra como interpretação: trabalho de desistência e de fragmentação das imagens que sustentam a fala comunicativa. É nessa desistência e nessa fragmentação das imagens das palavras que se constrói o acontecimento. A atividade de metáfora que preside essa construção fundamenta-se no abandono de uma concepção causal do acontecimento.

“Os psicanalistas têm dificuldade”, comenta Fédida, “em sustentar a idéia de que o sonho é Wunscherfüllung (realização de desejo) e renunciam com dificuldade às conotações afetivas dos acontecimentos do dia desde então pensados como restos diurnos diretamente transponíveis no sonho” (Fédida, 1992a, p. 54). Sua análise desse problema baseia-se no reconhecimento do estatuto da concepção de resto (diurno) na obra de Freud e de Ferenczi, em sua incidência técnica na definição da função analítica. A repetição do “erro pré-psicanalítico” (tomar a sedução como um fato) decorre da negligência do processo formador do sonho que se interpõe à associação dos afetos aos pensamentos pré-conscientes da vigília. A associação sem mediação de afetos e pensamentos pré-conscientes leva a atribuir aos acontecimentos vividos na vida do dia uma função causal determinante e, assim, dá valor de “explicação” ao sonho, ameaça à interpretação analítica de recair numa “simbólica”. Essa preocupação, que já fora admitida por Freud, continua com freqüência a ser ignorada, induzindo à repetição desse erro reconhecível nos efeitos de uma repsicossociologização moderna da clínica fundada em determinações lineares de uma causalidade temporal. O erro pré-psicanalítico desconhece, em suma, a renúncia da qual se originou a psicanálise – renúncia da teoria etiológica do acontecimento traumático.

Para Fédida, incorremos nesse erro ao abandonarmos a referência ao paradigma do sonho. É essa referência que faz do ato de ouvir em psicanálise um ato de linguagem, ato de dar palavras ao impronunciável do infantil, superando a evidência mascarada do presente de sua manifestação. Superá- la é abandonar as categorias representativas do tempo, a consciência intencional que sustenta a causalidade do acontecimento (que toma assim a proporção de fato). É abandonar essa vontade que não convém à psicanálise: vontade de compreender o presente pelo passado. É permitir que o acontecimento infantil seja reconstruído no interior da fala.

É nesse contexto que a noção de “resto diurno” terá, para Fédida, forte interesse elucidativo. A importância do resto diurno é a de situar o acontecimento pela necessária mediação do trabalho do sonho e pelas associações. É, portanto, renunciar ao convite da fala intencional a objetivar o acontecimento como externo à linguagem.

Pensar o acontecimento a partir do resto diurno é admitir a apercepção no limite do reconhecimento pelo sujeito, disso que ele não percebe e que só é um resto de dia – e de vida – que nos é restituído em sua “ambigüidade” (Zweideutig), essencial a partir da inteligência do sonho, que opera pela fragmentação de imagens sensoriais e pela colocação em palavras. “Toda vontade de significação unívoca do acontecimento do dia corresponde a uma formação de complacência da resistência: ela é feita para desestabilizar a atenção do analista e tornar sua interpretação sugestiva e tendenciosa” (Fédida, 1992a, p. 56). Dessa vontade resulta o que Fédida chama “análise atual”. A análise atual consiste precisamente na negação da referência paradigmática do sonho (do inatual infantil) e, ao fazê-lo, do resto diurno. A negligência da função do “sonhar”, do lugar da lembrança no sonho de seu relato, no tratamento, leva a fala à perda da sua capacidade metafórica.

Atravessar as camadas superficiais da fala “truculenta” do analisando é reconhecer o vazio do qual ela se constrói. A dimensão “pornográfica” dessa fala sustenta-se num estado de terror das palavras que perderam seu próprio eco e, em seu desespero, esperariam recuperá-lo por meio das reações provocadas na analista, na sua ambigüidade, na sua dificuldade em constituir palavra. Essa dificuldade implica, “tecnicamente”,2 suportar o não-saber e não avançar interpretações a partir de uma compreensão sobre o paciente além do que emerge pela sensibilidade contratransferencial. Sustentar essa ambigüidade é dar lugar à vida psíquica no tratamento. A dimensão do tempo de instauração dessa situação não poderia ser reduzida a uma questão de timing, como condição externa à linguagem, mas alimentada pela ambigüidade presente na fala da analista.

Ao expor sua dificuldade de suportar o silêncio, a analista diz que em certos momentos fala para se esquivar de um constrangimento. Esse dilema, entre suportar o silêncio e dele se esquivar, aponta para uma ambigüidade vivida por ela, que se encontra na difícil situação de negociar com esse insuportável presente na análise. Sustentar a verdade desses momentos de não-saber e de desconforto é encontrar neste lugar mesmo o próprio motor da análise: é dar lugar ao desastre psíquico, desvelar sua imensa presença na situação transferencial. É a ambigüidade vivida pela analista que faz a abertura pela qual é possível ao analisando aceder à vida psíquica da analista. Essa imbricação da analista com seu paciente, tão bem captada por Ferenczi, remete-nos aos restos não resolvidos da analista, o que retira da análise, em seu afazer, toda pretensão de objetividade, de exterioridade em relação ao domínio da linguagem.

É necessária uma “revolução” em nossa disposição intencional de linguagem para alcançar a condição própria do diálogo analítico, afastando-nos da intensidade que nos força à crença no conteúdo da fala. Os passos dessa revolução, instaurada por Freud e avançada por Ferenczi, são retomados por Fédida. Levam esse autor, a partir da clínica dos casos-limites, a reconhecer uma destruição do fundamento auto-erótico que tece a ligação entre coisa e palavra: “As coisas não alimentam mais sensorialmente as palavras e essas não dispõem assim de uma capacidade de metáfora” (Fédida, 1992b, p. 64).

O impacto transferencial da fala truculenta do analisando comunica subterraneamente à analista a sua constituição fragilizada pelo excesso de excitações internas, ao mesmo tempo: efração e anestesia. A situação impõe à analista uma luta para não se deixar levar por essa ação quase hipnótica exercida pelo paciente e para encontrar o tempo de perlaboração de restos de vida e de impressões formadas no encontro analítico.

A travessia da consciência “sexual-truculenta”do analisando só pode ser efetuada a partir de uma posição regressiva da escuta da analista de suas modalidades subterrâneas no contato com um terreno arruinado da linguagem pela perda de suas raízes auto-eróticas. Trata-se do abandono da dimensão intencional da fala e da atenção aos seus estratos subterrâneos: a ambigüidade permitindo abertura à fonte subterrânea da linguagem de onde se origina o potencial metafórico da fala.

A situação analítica engaja um sentido de travessia desse estado hipnótico da consciência. A surpreendente reação de ternura da analista para com o paciente, ao sentir- se constrangida em sua dificuldade de sustentar o silêncio (insuportável para ambos), coloca-nos diante da questão expressa por Fédida:

Então, em quais condições a percepção intra-subjetiva que o analista tem de si mesmo – tornada possível pelas rupturas no processo psíquico do paciente – pode se constituir em experiência própria e tornar inteligível a ambos o acontecimento psíquico? Responderíamos simplesmente: na condição de que este acontecimento seja reconhecido como um resto (de vida) e que ele venha a aceder à linguagem (Fédida, 1992a, p. 62).

Em que tempo? O tempo da elaboração da fala analítica coloca a questão, no caso de Carlo, do reconhecimento de uma temporalidade do acontecimento. O acontecimento da sexualidade, propôs Fédida (1992b, pp. 93-106), é, de certo modo, o contrário de um acontecimento. Seu momento constitutivo auto-erótico, intervalo espacial e temporal entre corpos, faz-se virtualidade de linguagem. A ordem desse acontecimento não é redutível à de uma “relação transferencial” representável entre o analisando e a analista. O acontecimento que se presentifica “integralmente” na transferência – truculência vazia do falatório e letargia diante do terror do outro arcaico – toma corpo na situação vivida na sessão.

Na análise de Carlo, o trauma toma corpo da precariedade de sustentação simbólica que faz da analista, no intolerável intervalo entre a fala e a escuta, potência de aniquilamento. A truculência da fala, sua impotência em dizer, ao encontrar a capacidade de uma escuta que a desintencionaliza, libera o acontecimento da compreensão de uma causalidade passada, deixa ouvir o grito violento estrangulado pelo estado de depressão sem sonho. A fala truculenta não corresponde a verdadeiras fantasias sexuais, na medida em que seu estado corresponde ao de um pesadelo: mantida em estado de vigília, ela coagula-se sob um estado de terror sem representações. Da presença da analista, como um resto diurno formador das impressões de vida, espera- se a reconstituição de um sonho como recurso de recuperação das impressões que estão na fonte da linguagem. São elas vivências interiores (innere Erlebnis, na expressão de Freud), fundamentais para a constituição do psíquico. Entretanto, ao longo de uma análise, podem se constituir numa experiência enquanto Erfahrung, termo alemão derivado de fahren, “viajar”. Nesse sentido, a experiência implica um acúmulo da substância do vivido que se vai depositando ao longo de uma travessia, termo tão importante para João Guimarães Rosa, como muito bem salienta Davi Arrigucci em sua análise de Grande sertão: Veredas.

Grande sertão é a metáfora da vastidão dentro da qual se conduzem por caminhos perdidos (veredas), em sua errância, o desejo, a história individual como “perspectiva histórica de mudança”. Grande sertão: veredas é, segundo Arrigucci, o romance da modernização brasileira, a “educação sentimental” de um jagunço: travessia do mundo arcaico (animismo) até o mundo moderno, na qual se desvela a separação entre a consciência e o ser

De acordo com Davi Arrigucci,

O romance de formação que se acabará lendo junto com essa aventura de jagunços nada mais será do que uma tentativa de esclarecer esse enigma posto como tema na balada. Desse mythos primeiro, a canção cifrada, o romance desenvolve o processo de uma aprendizagem, uma tentativa de entendimento de um sentido secreto no desenrolar da ação. O sentido da “matéria vertente”, que se quer esclarecer (Arrigucci, 1995, p. 475).

No processo de educação sentimental do herói, por meio de sua errância ao longo do Grande sertão,

entende-se que Riobaldo, para ter acesso a esse mundo de alta política da jagunçagem, mundo de guerra e da coragem, mas também de alta traição e divisão do ser – de Hermógenes e do Demo –, para fazer-se Urutu Branco, obter a certeza que nunca teve, vingar-se do Judas – tudo para ganhar Diadorim, só pode buscar o caminho do pacto. Este é assim, entre tantos outros aspectos que pode assumir, um meio de participação numa esfera mais elevada e decerto mais arcaica, da qual poderá depois remir-se pelo “esclarecimento” (Arrigucci, 1995, p. 459).

O tempo é o elemento constitutivo entre o narrador (discurso) e o narrado (história); a poética rosiana encontra a linguagem não como um artifício – ela exprime a essência das coisas. “O tempo é o espaço tornado sensível ao coração”, lembrou, em aula, Arrigucci, citando Proust. O tempo é magnetização a partir do encontro em que a errância ganhará a dimensão de travessia: revelação do encontro. Erfahrung – “atravessar” – envolve essa condição temporal da experiência de “passar por dentro”, onde o vivido ganha substância.

Escreve ainda Arrigucci:

Como história do esclarecimento de um destino individual, o romance se vê obrigado a retomar o começo para tentar responder as perguntas sobre o sentido dessa travessia solitária e enigmática, que, no entanto, não podem ser respondidas. (...) O impossível que surge desde o primeiro contato com Diadorim só irá crescer à medida que o tempo passar. (...) Cada vez mais, Riobaldo se desgarrará da origem e do absoluto a que aspira (...). Travessia só, em aberto, do homem humano, esclarecido e reconciliado, na medida do possível, é a última palavra do grande livro. (Arrigucci, 1995, p. 476).

O sentido temporal inerente ao processo analítico implica trânsito que vai do vivido à experiência é só pode se constituir sob a condição de aceder à linguagem. E a linguagem deve ser compreendida no seu sentido poético – a linguagem não como um artifício, e sim como aquela que exprime a essência das coisas –, como lugar em que é possível dar nome e assim permitir o desvelamento do que está em questão, a “matéria vertente” de que se trata. É a linguagem no sentido de legein – palavra grega que aparece em Heráclito e que encontra uma análise profunda em Heidegger e Binswanger.Nessa concepção, ela não se esgota em si mesma, mas está destinada ao recolher, a realizar a boa colheita. É o lócus onde se torna possível a constituição de mundo. Não há mundo sem linguagem, nem linguagem sem mundo. É esse também o sentido da metáfora da qual vimos falando, não como tropo, e sim como transporte, transferência original na travessia em que se constitui aquilo que somos.

Reencontrar o húmus do qual é possível deixar brotar a metáfora constituinte é difícil e penoso, tanto para o analista como para o analisando, mesmo que o seja de modos distintos. É reencontrar “as modalidades de contato subterrâneas que a analista tem com o seu paciente, pela maneira de recebê-lo, pelo olhar, pela presença em face dele”. Situar a posição da analista como presença que, ao dar linguagem, dá condição de vida; tal como concebe Pierre Fédida (1996),3 é “trazer através da sua própria presença certas garantias de apaziguamento em que a vida psíquica poderia começar”.

Quando a clínica nos põe diante desse limite, em que reconhecemos estados em que a própria destruição da condição de linguagem está em jogo, cabe-nos o esforço perlaborativo de sustentação para, eventualmente, deixar que surja uma nova possibilidade de ek-sistência.4

 

Referências

Arrigucci Jr., D. (1995). O mundo misturado: O romance e experiência em Guimarães Rosa. In A. Pizarro (Org.), América Latina: Palavra, literatura e cultura (pp. 449-477). São Paulo: Fundação Memorial da América Latina; Unicamp.        [ Links ]

Fédida, P. (1985). Technique psychanalytique et métapsychologie. In P. Fédida, Métapsychologie et Philosophie (pp. 45-79). Paris: Les Belles Lettres        [ Links ]

Fédida, P. (1992a). Crise et contre-transfert. Paris: PUF.        [ Links ]

Fédida, P. (1992b). A doença sexual, uma intolerável invasão. In P. Fédida, Nome, figura e memória. São Paulo: Escuta.        [ Links ]

Freud (1956). La naissance de la psychanalyse. Paris: PUF.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Alan Victor Meyer
Rua João Moura, 627/132 – Pinheiros
05412-040 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3062-9810
E-mail: avmeyer@uol.com.br

Sandra Lorenzon Schaffa
Rua Coronel Irlandino Sandoval, 122
Jardim Paulistano
01457-010 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3031-9215
E-mail: sandralorens@uol.com.br

 

 

* Este texto faz considerações a partir de supervisão de Pierre Fédida sobre material clínico de Sandra Lorenzon Schaffa, em 24 de outubro 1996, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, e destaca os momentos críticos de sustentação do diálogo analítico, o impacto das dificuldades sentidas pela analista, tal como se reflete por meio da reação dos participantes do grupo, bem como a intervenção do supervisor, que toma a situação como uma oportunidade para refletir sobre a condição de linguagem necessária à sustentação da situação analítica. Este trabalho foi originalmente apresentado no XX Congresso Brasileiro de Psicanálise (2005).
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
*** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Diálogo entre colegas num grupo de supervisão.
2 O sentido que cabe ao técnico inspira-se nas idéias de Fédida. Tomado do sentido grego de techne, exprime-se por um caráter negativo, isto é, não objetivável em “técnicas”, mas como “insistência de questionamento mantendo desperta a percepção das resistências” (Fédida, 1985, p. 48).
3 Fédida (1996). Trechos transcritos de supervisão realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (não publicado).
4 O sufixo ek, em ek-sistência, indica “para fora”, grafia utilizada por M.Heidegger para marcar a não-oposição do termo ao de “essência”, como em Sartre, para quem a “existência precede a essência”.

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