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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

O grotesco, o estranho e a feminilidade na obra de Cindy Sherman*

 

The grotesque, the uncanny and the femininity within the work of Cindy Sherman

 

 

Alessandra Monachesi Ribeiro**

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo traça um percurso, a partir das obras da artista plástica Cindy Sherman, no qual a feminilidade é repensada fora da dico tomia definidora dos campos masculino e feminino, em que os mesmos se articulam em torno da lógica fálico / castrado. Por meio do trajeto da artista, é possível aproximar o feminino do grotesco e, conseqüentemente, do estranho, conceito psicanalítico que aponta para uma região de fronteira, que escapa à possibilidade de circunscrição no âmbito do psíquico e do simbólico. Com isso, a feminilidade revela-se como outra via de subjetivação possível em nossos tempos, a ser perscrutada pelo campo psicanalítico.

Palavras-chave: Cindy Sherman, Estranho, Feminilidade, Grotesco, Psicanálise.


ABSTRACT

The present article traces a route, from visual artist Cindy Sherman’s work, in which femininity is reconsidered outside the dichotomy commonly used to define both masculine and feminine fields linked up with the phallic / castrated logic. Through the artist’s trajectory, it’s possible to approach feminine to grotesque and, therefore, to uncanny, a psychoanalytical concept that points out to a borderland that escapes from being confined within the psychic and simbolic spheres. Therewith, femininity reveals itself as another way to subjectivation in our present times, as well as a subject to be carefully examined by the psychoanalytical field.

Keywords: Cindy Sherman, Uncanny, Femininity, Grotesque, Psychoanalysis.


 

 

O feminino e a mulher pensados por uma lógica fálica

Quando a psicanálise se debruça sobre o feminino, é primeiramente em relação à castração que ela o faz. Feminino e masculino aparecem, a princípio em seu discurso, quase como sinônimos de mulher e homem respectivamente, ou seja, como equivalentes às distinções de gênero. Poderíamos entender essa aproximação como sendo, em verdade, um paradoxo, já que é também nesse momento inaugural da psicanálise que masculino e feminino serão entendidos como irredutíveis à anatomia, na medida em que o humano transcende sua condição orgânica ao se constituir enquanto um ser marcado pela sexualidade.

O sexual, para Freud (1905/1995j), não se confina às diferenças de gênero e nem mesmo ao puramente orgânico, ainda que parta e se apóie neles. O conceito de pulsão, que ele desenvolverá justamente ao propor o humano marcado por uma sexualidade infantil perverso polimorfa, trata exatamente disso: o que, no humano, escapa ao funcionamento instintivo, marcado pela necessidade e carrega consigo um além, uma demanda de trabalho, uma quota de esforço exigida por termos um corpo anatômico mapeado pelas injunções do que transborda a necessidade pura e simples: o outro, o desejo, o discurso, o simbólico. A pulsão, portanto, vem demolir a idéia de uma distinção entre masculino e feminino ancorada na anatomia, lembrando sempre do que dali escapa e exige que o psiquismo se construa e se articule para lidar com isso. Isso o que? Isso, precisamente. O isso, o id, o que nos rege e nos escapa, ou que nos rege na medida em que nos escapa, ainda que não escapemos dele.

E se Freud apresentou-nos o mundo pulsional que nos deslocou do puramente orgânico na tentativa de articulação daquilo que propriamente nos define e nos diferencia &– enquanto humanos e, também, enquanto diferentes subsumidos na mesma noção de humanidade &– foi ele também quem propôs que, para o que nos escapa, nos excede, nos governa e nos define, o rastro principal que isso deixa no psiquismo é organizado pelo complexo de Édipo. Através do Édipo &– porque é de um atravessamento que se trata, mesmo &– tudo o que é pulsão marcada, demanda de trabalho, movimento psíquico de se haver com isso... tudo se articula em torno da castração que, imperiosa, impõe contorno e constrange o caos pulsional a ser vivido segundo certos parâmetros. Esse movimento de delimitação organiza o psíquico, definindo o campo do realizável e o do excluído, os prazeres possíveis e os vetados, que se projetam para o futuro enquanto possibilidade disfarçada em ideal de eu.

O Édipo, em 1905 proposto por Freud como organizador do psíquico &– estruturante, a bem dizer &– é aquele do menino rebatido inteiramente para a menina que, destino ou condenação de sua anatomia, nem pode se contentar em, por meio dele, aceder à condição de uma renúncia que preserve sua integridade narcísica, já que o que haveria a preservar foi, em seu caso, perdido. A castração, circunscrita à presença ou ausência de pênis e à ameaça em relação ao mesmo, condena a menina à impossibilidade de sair de sua condição pulsional, de busca de prazer, de funcionamento predominantemente primário, ou seja, de organização marcada pela sexualidade infantil. Condenação ao narcisismo, quando muito: a possibilidade de investir toda libido apenas em si mesma e no que sirva à sua satisfação. Isso torna a mulher, para o Freud de 1914, frouxa em suas renúncias e na condição de investimento verdadeiramente objetal, em dificuldades para sustentar uma abertura para o mundo, para o outro e para a construção de um ideal, bem como em arcar com as restrições e limites que a circunscrição edípica impõe por meio da constituição de um superego.

A mulher, a que ela renunciaria ao atravessar o Édipo, se já de antemão o traz perdido? Por isso, Freud nos textos de 1923, 1924 e 1925, se permitirá afirmar que, ao contrário do que acontece com o menino e do que uma suposta equivalência o permitira afirmar de início, aquilo que de mais importante ocorre para a constituição subjetiva de uma menina mora nos seus primórdios, naquilo tudo que, com sorte, pode culminar com sua chegada ao Édipo. Aqui, então, o complexo torna-se ponto de chegada e não de partida, posto que a menina, para aceder a ele, terá que mudar o investimento maciço depositado em sua mãe &– primeiro objeto de seu amor, tanto quanto do menino &– para seu pai a quem, com ainda mais sorte, chegará a eleger e a quem renunciará, frouxamente, na busca de uma restituição de sua perda ou de sua falha primordial calcada no desejo de ter um filho.

Da mãe ao pai, do pênis ao filho, tal seria o trajeto da menina/ mulher na construção de um lugar subjetivo marcado pela castração. O que a define é a falta e seu percurso é aquele de uma restituição, preferencialmente simbólica, do que lhe foi negado por seu destino anatômico. Impera, nessa leitura freudiana, exatamente aquilo que ele nomeia como uma lógica típica do infantil, a lógica fálica que faz com que exista apenas um órgão &– o falo/pênis masculino &– em oposição ao qual está o ser castrado. A mulher e o feminino se definem pela negatividade, pelo que fica de fora dessa oposição fálico/castrado em torno da qual se distinguem os humanos. Ela é o resto, o que sobra dessa possibilidade subjetiva em que a equiparação pênis &– falo &– masculino lhe destina uma posição de inexistência.

A mulher / o feminino olhados através da lógica fálica no lugar da castração. A leitura freudiana do Édipo e da distinção anatômica entre os sexos. Haveria alguma outra via para se pensá-los fora dessa lógica?

 

As obras de Cindy Sherman

Quando Cindy Sherman começa, na segunda metade da década de 70 e, principalmente, nos anos 80, a desenvolver seu percurso artístico em torno da fotografia como suporte das muitas figuras passíveis de serem retratadas a partir de sua própria pessoa, o que se entende de sua obra &– e aqui não vou nem considerar as interpretações apressadas que tomam Sherman como alguém que fala sempre de si mesma, de suas muitas faces, do narcisismo e outros clichês superficiais congêneres, psicanalíticos ou não &– é que a artista faz, por meio dela, uma denúncia dos lugares estereotipados destinados à mulher em nossa sociedade. Por nossa sociedade, quero dizer o campo mais abran gente de nossa cultura contemporânea no Ocidente, tendo em vista que se trata de uma artista norte-americana, que vive e produz em seu país de origem.

Mulvey (1991/2006), assim como outras críticas de arte “antenadas” e envolvidas com o movimento e o discurso feminista da época, vê na obra de Sherman a concretização dessa nova consciência feminista enquanto denúncia desses lugares de sujeição e dessubjetivação que as mulheres ocupam. Das divas hollywoodianas dos Untitled Film Stills, capturadas em um único frame de suas sagas heróicas ou nos momentos privativos descortinados a la paparazzi, passando pela vulnerabilidade das mulheres encurraladas das Centerfolds/Horizontals, submetidas a um movimento da câmera que as coloca nos ângulos e posições freqüentemente utilizados em revistas pornográficas, bem como pelo enlouquecimento progressivo das garotas de moda da série Fashion, até chegar ao horror e ao assustador dos monstros de contos de fada da série Fairy Tales e à completa dissolução da figura humana nos dejetos de Disasters, o que temos, seguindo a linha de interpretação oferecida predominantemente das obras da artista até a década de 90, é o desvelamento progressivo das muitas máscaras da mulher, que culminam na aproximação com o vazio entendido como castração. Ou seja, os lugares destinados à mulher, denunciados e desconstruídos, levariam a que se descobrisse a verdade última e o lugar essencialmente femi nino ao se revelar, quando todas as máscaras caem, a mulher enquanto castrada.

 

Figura 1 Cindy Sherman, Untitled #122, 1983. Color photograph 74
1/2 x 45 3/4 inches. Edition of 18. Cortesia da Artista e da Metro Pictures.

 

É Rosalind Krauss (1999) quem aponta que essa leitura da obra de Cindy Sherman resvala naquilo mesmo que critica &– a lógica fálica prevalente no entendimento do que seja a mulher &– quando atribui a verdade última do feminino como o lugar da castração. Na medida em que Mulvey entende o percurso de Sherman como o desmascaramento da mulher enquanto, em última instância, objeto fetiche, bem como manifestação da recusa em sê-lo, já que é de crítica que se trata o seu trabalho, e se considerarmos os apontamentos de Freud (1927/1995e), para quem o objeto fetiche serve para ocultar o corpo da mulher como castrada, o caminho a que nos conduzem as obras de Sherman seria justamente esse do desvelamento, da retirada dos objetos encobridores até que não restasse nada além da verdade: a mulher definida pela falta.

Mas, como bem aponta Krauss, as idéias do véu, do desvelamento e da verdade também se subsumem a essa lógica fálica, o que as torna mais um conjunto de máscaras, mais uma farsa de revelação da verdade acerca do feminino, sacralizada a partir da primazia do fálico em nossa constituição psíquica, bem como em nossa confor mação histórico-cultural. O próprio sistema do objeto fetiche converte-se, assim, em outro véu aliado à idéia da mulher como ferida. E haveria algo além disso?

 

O declínio do patriarcado

A lógica fálica, que define a mulher e o feminino por exclusão e a partir da castração, é tanto o que vigora na constituição subjetiva marcada pela sexualidade infantil quanto o que funciona, no campo social, como uma posição patriarcal de interpretação do mundo.

Joel Birman (2006) mostra como o patriarcado como forma de organização subjetiva e social, durante os últimos 2000 anos da história do Ocidente, entra em declínio após atingir seu auge, na modernidade, com o homem da razão como ponto de referência e de organização de todo o saber sobre o mundo. O poder do pai, o homem da razão, fundado no poder de Deus, entra em declínio na medida em que a ascensão desse homem racional ao seu trono colocará em questão a própria legitimidade de seu lugar de centro.

A morte de Deus, na modernidade, prenuncia a morte do pai como lugar de referência e de organização do dispo sitivo social. Que a isso se siga uma crise do pai como refe rência de estruturação do psiquismo, é apenas um dos efeitos esperados desse estremecimento da lógica fálica (a verdade última, o centro, a essência, a razão, o falo) e do qual nos traz notícia Lacan e sua desesperada tentativa de reaver a função estruturante do pai com sua ênfase no lugar central da metáfora paterna para a organização do campo psíquico. Segundo Birman, Lacan enuncia que a emergência da psicanálise como discurso se dá a partir, e como conseqüência, da humilhação e destruição da figura do pai no Ocidente. O discurso psicanalítico, portanto, não apenas traria notícias dessa falência, mas buscaria &– esse seria o intuito de Lacan &– restaurar a figura do pai em seu posto de importância no campo do psíquico.

Malograda a tentativa lacaniana, temos um esvaziamento da metáfora paterna na contemporaneidade e o surgimento de novas modalidades de dor e sofrimento &– bem como de novas formas de subjetivação &– impossíveis de serem totalmente circunscritas às formas que essa lógica patriarcal propõe para seu entendimento. O mal-estar da atualidade advém da fragilização da figura do pai e o que temos, como possibilidade subjetiva, terá que encontrar apoio em algo além disso. Ou seja, há algo que escapa à ordem patriarcal e aparece como sofrimento, ou dor, ou possibilidade de constituição subjetiva. E é por haver essa terceira forma de aparição, no que transborda dessa falência, que me parece necessário, então, perscrutar essa sobra que tem, por um de seus nomes, justamente o que ficou descartado no campo do pai, de Deus e do falo: o feminino.

Assim, no atual estado de coisas da contemporaneidade, vemo-nos instados a nos voltar para o que sobra, o que excede &– como exceção e como excesso &–, o que resta, o além, a fim de nos aproximarmos de algo que nos diga sobre nosso tempo e nossas condições de existir nesse tempo. Agora torno claro meu interesse pela obra de Cindy Sherman e por aquilo que, nela, me ajuda a pensar as condições para a subjetividade contemporânea a partir desse resto, excesso ou além, que é o campo fértil para qualquer investigação sobre o psíquico que leve em consideração as vicissitudes de estarmos inseridos em um tempo, uma história e uma cultura específicos e, conseqüentemente, marcados por tudo isso. Pois, se tomarmos a interpretação corrente de que Sherman fala sobre o feminino e olharmos para o conjunto de sua obra até os dias atuais, temos que ela desdiz a crítica e desmascara a mulher enquanto castrada, o que nos permite procurar &– juntamente com a artista, se assim o quisermos &– alhures o que seja da ordem do feminino e que nos diga sobre a feminilidade mas, também, sobre a subjetividade contemporânea. E na obra de Sherman há um alhures, afortunadamente.

 

As máscaras mascaram máscaras

Nas séries realizadas por Sherman nos finais dos 80 e inícios dos 90, após seu desvelamento último acabar, com o perdão do trocadilho, em desastre, temos uma produção que coloca em evidência, de forma cada vez mais contundente, a questão da farsa implicada na idéia do desmascaramento. É assim que vemos se intensificar o seu uso explícito dos artifícios nas History Portraits até o ponto em que a artista sai de cena, deixando em seu lugar apenas um amontoado de bonecos, próteses, manequins e máscaras. Civil War, Sex Pictures, Horror & Surrealist Pictures, Masks, Broken Dolls... Abre-se lugar para o inumano, o incômodo, o dejeto, o terrível, o abjeto, o inquietante, o perturbador... o grotesco. Suas máscaras deformadas se superpõem umas às outras. E o que encontramos em seu desmascaramento? Nada. Ou uma outra máscara. O sexual se revela oco, maquínico, os olhos presos aos rostos não são passagens para a alma, mas um artifício, as bonecas mutiladas mostram o sexual como horror, dor, aniquilação.

 

Figura 2 Cindy Sherman, Untitled #316, 1995. Cibachrome
48 x 32 inches. Edition of 6. Cortesia da Artista e da Metro Pictures.

 

A que nos remete Cindy Sherman se esse é o feminino do qual nos traz notícia? Se, no desvelamento do desvelamento chegamos não à castração, mas ao horror, o que isso nos pode ensinar acerca da feminilidade?

Na porção final de sua obra, Freud (1931/1995h, 1933/1995f) nos aponta a impossibilidade de constranger feminilidade à mulher e masculinidade ao homem, já que anatomia e condição subjetiva não se equivalem. A feminilidade associada ao puramente orgânico, à mulher, à passividade e ao masoquismo, ainda que guarde coerência com a lógica freudiana de aproximação com esses temas a partir do complexo de Édipo, deixa algo intocado, inacessível por essa formulação.

Lacan (1972-1973/1985), ainda que marcado pela restauração do pai, da metáfora paterna e do simbólico como pontos de ancoragem do psíquico, apresenta a interessante idéia do feminino como algo que escapa à lógica da castração. A mulher é uma impossibilidade, já que sua nomeação enquanto tal só pode ser feita no campo da linguagem, ou seja, nos domínios do simbólico e a partir de uma lógica fálica, deixando de fora algo do feminino no exato momento em que o diz como tal. A mulher, dividida entre ser ‘toda’ e ‘não toda’, a partir de uma leitura que assume existir uma libido única masculina, da oposição fálico / castrado e seus congêneres, não pode ser apreendida, circunscrita pelo campo que a nomeia. E, uma vez que, para dar testemunho do real do seu corpo ela tem que passar pelo campo da linguagem &– ou, em outras palavras, submeter o feminino ao significante, que define a falta a partir do ter, e o feminino a partir do masculino &– não será que, para além daquilo que do feminino se circunscreve à lógica fálica, isso de que o real da mulher dá notícias passa, principalmente, por aquilo que lhe escapa?

Temos, então, que o que escapa &– entendido pela psicanálise sob as várias alcunhas do corpo, da pulsão de morte, da compulsão à repetição, do excesso, do resto, ou do que não se inscreve na ordem do psíquico &– guarda parentesco estreito com o que transborda como feminino.

 

O feminino aproximado do grotesco e do estranho

Com a obra de Cindy Sherman, o feminino se aproxima do grotesco, e aqui este termo é utilizado conside rando o percurso que dele traça Wolfgang Kayser (1957), para quem o grotesco, na história da arte, traz o monstruoso como principal característica.

O monstro é fonte de horror e riso. Não se limita ao ridículo de uma graça despreocupada, mas traz consigo o assombro do absurdo, do assustador e do cômico misturados em uma associação que desterritorializa seu espectador. O grotesco desterra e angustia, provocando o riso nervoso vivido e testemunhado por muitos daqueles que se deparam com as fotografias de Cindy Sherman em sua crueza calculada, inquietante, aterradora. Nas palavras de Kayser:

O mundo do grotesco é o nosso mundo &– e não o é. O horror, mesclado ao sorriso, tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso mundo confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e formas e se dissolve em suas ordenações (p. 40).

O grotesco, então, que na obra de Sherman traz o feminino como absurdo, simulacro, revelação da farsa da revelação, automatismo, maquinário, inumanidade mascarada de humano e tudo o mais que seu desfile de horrores é capaz de produzir, aproxima o feminino daquilo que, em Freud (1919/1995d), é mais um conceito que tenta cercar o que escapa, excede e, com isso, aterroriza: o estranho.

O estranho unheimlich de Freud diz do que nos é mais alheio e próprio ao mesmo tempo. Fala do paradoxo entre distância e fusão, entre o que contorna o eu e o que se descarta como não eu, paradoxo formulado pela conjunção entre o íntimo familiar e o absurdo, o que não sou de modo algum, o outro. Com isso, Freud joga luz em um campo no qual o horror se produz precisamente pelo apagamento da linha divisória que distancia o ‘eu sou’ de um ‘não sou eu’ desagradável e inquietante, a ser evitado a qualquer custo. O estranho é o estrangeiro que, de passagem por nosso território, traz para muito perto tudo aquilo que, com desprezo, procuramos evitar olhar como parte integrante da colcha de retalhos que nos forma.

Talvez o estranho seja o inconsciente, o recalcado, o pulsional, o outro em nós, o sexual, o não inscrito, a repetição, a pulsão de morte... Ou o feminino, como mais um nome daquilo que nos escapa e retorna e nos perturba porque escapado e fugidio. Parafraseando Lacan (1972-1973/1985) ao se referir ao sexual, aquilo que não cessa de não se inscrever.

O feminino, tomado por essa perspectiva do grotesco e do estranho aos quais nos remete a produção de Cindy Sherman, mostra-se como aquilo que está fora e que denuncia o que jaz além da perspectiva fálica. Um real que dissolve o que é da ordem do representável. Não é à toa que Lacan, na segunda metade de sua obra, se debruça sobre o real de maneira análoga a Freud se debruçando, também em um segundo momento, sobre a pulsão de morte como o que jaz para além do princípio do prazer. Será nesse segundo momento que, tanto um quanto o outro, ao falarem sobre o que escapa, nos remeterão ao feminino.

Também não é à toa que, na contemporaneidade temos, para os psicanalistas, uma reflexão clínica que se ocupa do real, do traumático e da repetição como viéses que buscam dar voz ao que permaneceu estrangeiro à possibilidade de inclusão no campo do psíquico por excelência, resto tão freqüentemente presente na clínica psicanalítica, nas formas de sofrimento e mal-estar individuais e coletivos, bem como na própria constituição das subjetividades. Como abordá-lo se ele diz do que escapa à condição de inscrever-se? Talvez esta aproximação da psicanálise ao campo das artes plásticas tenha, como objetivo, justamente encontrar material e vocabulário para se dizer sobre isso, que se encontra tão bem dito em diversas manifestações da arte contemporânea, nas quais Cindy Sherman emerge como uma interlocutora possível para esta autora que aqui escreve.

A feminilidade marca a diferença e, por isso, pode ser aproximada ao estranho familiar. Ela é a fonte de uma experiência psíquica marcada pelo horror, precisamente na medida em que coloca em questão o autocentramento da subjetividade baseado no referencial fálico. Joel Birman (1999, 2006) apresenta a idéia de que, se a distinção entre os sexos se constrói a partir desse referencial, pensar sobre a femi nilidade é deslocarse para o lado de fora do mesmo e de suas construções, colocando-nos em outro registro quanto à sexualidade. Onde antes vigorava o nome-do-pai como significante de exceção &– constitutivo da cadeia de significantes, do inconsciente e do desejo, tudo o que forma o psíquico em sua essência &– e gerador, entre outras coisas, de uma hierarquia entre as condições masculina e feminina, a resistência feminina de uma circunscrição ao ‘toda fálica’, por meio do ‘não toda fálica’, semeou o terreno para se perscrutar esse mais além do qual o feminino nos traz notícias. Onde a masculinidade seria ponto de origem, organização e referência, segundo o signo do patriarcado, a feminilidade poderia advir como originária, ou enquanto o caldo informe, amorfo e abjeto do qual as formas brotam.

Para Birman (2006), ainda segundo Freud (1937/1995b), a feminilidade traria como categorias pelas quais pensar as condições para nossa subjetividade contemporânea, desterrada de Deus, do pai e da razão, as idéias de desamparo e do masoquismo erógeno, possibilidades vindas de alhures, com as quais criaríamos condições de subjetivação. Haveria, portanto, uma via de existência pelo feminino. Cindy Sherman nos traria essa mesma esperança?

 

Os palhaços riem de si mesmos e nos metem medo

As máscaras de Sherman nos levam à impossibilidade de um ponto de origem, masculino e fálico ou feminino, masoquista e desamparado. A origem da máscara é outra máscara que é outra máscara que é outra, desconstruindo tudo ao nível do simulacro.

Perdidas as referências, a artista traz, em suas obras mais recentes, a figura do clown, o palhaço que copia, cuja possibilidade de existência enquanto palhaço reside na sua condição de imitação do outro, tal qual um Zelig dos tempos presentes, aquele personagem camaleônico do filme homônimo de Woody Allen.

Seus clowns riem um esgar aterrador, fazendo emergir suas figuras grotescas de fundos virtuais intensamente coloridos, caricaturas de uma pretensa felicidade perdida da infância, ironizando os “bons tempos felizes” como ponto de origem e de referência do que quer que seja. Eles nunca existiram. O que existe é o que imita, ausente de substância.

O que sobra, se considerarmos o percurso de Sherman e o lugar para onde o mesmo aponta, a fim de enriquecer nossa reflexão sobre a contemporaneidade e as condições da subjetividade na mesma, é um estado de suspensão que chamarei, parafraseando Cortázar (2005), de “o aberto”. E citoo para que ele o diga melhor do que eu, e sem aprisioná-lo em um conceito:

que faríamos sem a senhora, sem Dama Ciência, falo a sério, muito a sério, mas além disso há o aberto, a noite ruiva, as unidades da desmedida, a qualidade de palhaço e de funâm bulo e de sonâmbulo do cidadão médio, o fato de que ninguém o convencerá de que seus limites precisos são o ritmo da cidade mais feliz ou do campo mais ameno; a escola fará a parte dela, e o exército e os padres, mas isso que eu chamo enguia ou via-láctea pernoita na memória racial, num programa gené tico que o professor Fontaine não imagina, e por isso a revo lução no seu momento, a arremetida contra o objetivamente inimigo ou abjeto, o soco delirante para deitar abaixo uma cidade podre, por isso as primeiras etapas do reencontro com o homem inteiro (p.89).

O aberto é impossibilidade de origem e de conclusão e nos acena com o que possibilita naquilo que nos impede.

Fiquemos com o aberto ao qual o percurso de Cindy Sherman parece nos apontar. O palhaço do presente momento de sua obra é, ainda, uma máscara e nessa repetida impossibilidade de revelação, marcada e remarcada a cada série de fotografias, a artista consegue, a meu ver, escapar da dicotomia fálico / castrado em sua discussão sobre a feminilidade. Em seu trabalho de desconstrução, Sherman não recoloca o que seria da ordem da essência a ponto de podermos afirmar com ela: é isso o feminino. Cada foto nos confronta com essa outra lógica, que chamo “do aberto”, em que o pensamento é instado a se desterritorializar por um vocabulário desconhecido e estranho, esse das máscaras. Como se a essência residisse na condição mais superficial e o segredo se encontrasse na dinâmica da farsa.

Aquilo que a artista traz como aporte para o pensamento psicanalítico reside, justamente, nesse seu modo sofisticado e simples de convidar-nos ao contato com esse estranhamento que suscita uma mudança de registro, um escape à dicotomia do referencial fálico, a fim de podermos, conforme encontremos modos e meios para isso, darmos notícias dessa sobra, desse lado de fora ao qual nós, psicanalistas, tanto acorremos no ensejo de nos aproximarmos das condições de subjetivação existentes em nossa contemporanei dade. Um transitar pelas bordas e perscrutar terras estrangeiras: será esse o convite que essas obras de arte nos fazem?

Reitero, então, o aceite ao convite: fiquemos no aberto e na suspensão das referências vivida no contato com a obra de Cindy Sherman e vejamos a que isso nos poderá levar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Alessandra Monachesi Ribeiro
Rua Mario Amaral 343 &– Paraíso
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Recebido: 06/04/2008
Aceito: 13/05/2008

 

 

* Artigo baseado em apresentação feita sobre o tema no II Colóquio de Psicologia da Arte do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte do Instituto de Psicologia da USP, 2007, bem como na tese de doutorado de minha autoria que está sendo desenvolvida junto ao Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, para a qual conto com uma bolsa de estudos da CAPES.
** Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, doutoranda pelo Programa de pós-graduação em teoria psicanalítica da UFRJ, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Autora do livro Em busca de um lugar: Itinerário de uma psicanalista pela clínica das psicoses, publicado pela editora Via Lettera, 2007.

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