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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo jan./jun 2017
EM PAUTA | PENSAMENTO CLÍNICO E CULTURA DO ESPETÁCULO
A questão do íntimo na internet. Youtubers como psicanálise do quotidiano
The issue of intimate on the Internet. Yutubers as psychoanalysis of quotidian
Marielle Kellermann Barbosa
Membro filiado - SBPSP, Editora IPSO
RESUMO
Youtubers são um novo fenômeno de mídia, jovens que agregam milhões de seguidores e são chamados digital influencers. Uma singularidade dessa mídia é a suposta intimidade existente entre youtuber e seguidor, proporcionada pela lingua-gem atualizada, pelos interesses compartilhados, pela falta de intermediários e a velocidade de interação da ferramenta. No presente trabalho, os vídeos de youtubers são observados enquanto novo produto cultural e tomados como um quotidiano, a partir da teoria de Herrmann, que propõe a abolição da dicotomia entre fantasia interna e realidade, postulando um humanístico dia a dia que tanto constitui sujeito quanto mundo. Finaliza-se com uma reflexão a respeito da intimidade e levanta-se a hipótese de que a popularidade desse novo formato de mídia pode ser observada como uma formação de compromisso de sucesso do anseio por intimidade que descarta o traumático do encontro com o outro.
Palavras-chave: Teoria dos campos. YouTube. Cultura. Intimidade.
SUMMARY
Youtubers are a new media phenomenon, youngsters who add millions of followers and are called digital influencers. One uniqueness of this media is the supposed intimacy between youtuber and follower, provided by up-to-date language, shared interests, lack of intermediaries, and the speed of the interaction. In the present work, the videos of youtubers are observed as a new cultural product and taken as a quotidian, from Herrmann's theory, which proposes the abolition of the dichotomy between internal fantasy and reality, postulating a humanistic day-day that both constitutes subject and world. It ends with a reflection about intimacy and the hypothesis is raised that the popularity of this new media format can be observed as a formation of successful commitment to the yearning for intimacy that discards the traumatic encounter with the other.
Keywords: Field theory. YouTube. Culture. Intimacy.
Dá-me tempo de acertar nossas distâncias.
(Fernando Pessoa).
YouTube como novo formato de mídia
O YouTube é uma plataforma de compartilhamento de vídeos que foi lançada em 2005, seu nome vem da junção das palavras you e tube, que, em inglês, significa televisão, portanto, "você na TV".
Essa plataforma possibilita que qualquer usuário poste vídeos publicamente, tendo uma política de boas práticas que retira vídeos e pune aqueles que compartilham material de ódio, pornográfico ou contra a lei (youtube.com), fora isso, qualquer pessoa pode filmar e postar o mais variado tipo de conteúdo.
São recentes o surgimento e a fama dos canais do YouTube, que são contas, como uma conta de email ou em rede social, que qualquer pessoa pode criar e ali postar os vídeos que quiser. Youtubers são pessoas que têm seus canais como trabalho e fonte de renda, alguns deles chegam a postar dois vídeos por dia, todos os dias. Os youtubers, em sua maioria, jovens entre 20 e 30 anos, são chamados de digital influencers, devido ao grande alcance que têm entre as pessoas que assistem a seus vídeos.
Whindersson Nunes é um rapaz piauiense de 22 anos que tem um canal no YouTube, até o dia 17/04/2017 contava com 18.957.174 de inscritos. O vídeo em que ele pede a namorada em casamento1 teve 11.586.472 de visualizações (também até 17/04/2017). Esse número significa que pessoas clicaram e assistiram ao vídeo de seu pedido de casamento 11 milhões de vezes (não necessariamente significa 11 milhões de pessoas) e que quase 19 milhões de pessoas estão inscritas no seu canal (esse número, sim, é individual)2. Whindersson é o oitavo you-tuber com maior número de inscritos em seu canal, no ranking mundial do YouTube.
Para se ter uma referência de comparação, a novela "Avenida Brasil", em 2012, um dos maiores sucessos de público da rede Globo, contava com uma média de 38 milhões de telespectadores por episódio (http://f5.folha.uol.com.br). O pedido de casamento de Whindersson teve quase um terço dessa audiência.
Whindersson Nunes faz parte do grupo chamado digital influencers. Na lista dos maiores canais do YouTube do mundo, ele aparece em oitavo lugar e divide com outros sete rapazes (em média de 20 a 30 anos) a possibilidade de acessar mais de 211 milhões de pessoas - este é o número total de assinantes dos oito canais mais populares do YouTube (vidstatsx.com). Esses números referem-se a canais "particulares", pois os mais acessados do YouTube dividem espaço com celebridades da música, tais como Beyonce, Taylor Swift e Justin Bibier.
O youtuber com maior número de inscritos e vídeos visualizados, no mundo, é PewDiePie (o nome dele é Felix Arvid Ulf Kjellberg), um rapaz sueco que tem aproximadamente 54.600.000 pessoas inscritas em seu canal (até a finalização deste artigo).
Os youtubers são, portanto, um fenômeno atual difícil de ser ignorado, pelo ineditismo da possibilidade de acesso que tem a seus seguidores. Há pouco tempo era inimaginável uma pessoa de 20 e poucos anos, muitas vezes sem uma formação profissional formal, e sem estar ancorado em nenhum tipo de mídia estabelecida, ser conhecida e ter potencial de influenciar dezenas de milhões de pessoas.
E o que esses jovens postam de tão interessante, capaz de atrair tantos followers e tantos views? Quando aparecem em público, os fãs gritam, empurram-se, fazem filas para vê-los, são tratados como celebridades.
Em sua maioria, os mais populares youtubers postam vídeos sobre games, isto é, comentam jogos de videogame, mostram como se passa de fase no jogo ou simplesmente compartilham esse momento de jogar com quem os assiste, fazendo comentários. Outros youtubers fazem vídeos falando a respeito de algum assunto atual ou de experiências pessoais. Whindersson Nunes faz vídeos com paródias de música e textos cômicos que tratam, muitas vezes, das condições de vida difíceis de sua infância e particularidades do interior nordestino.
Uma característica específica e comum a todos os canais desse novo tipo de mídia é que os vídeos têm um certo tom caseiro e não profissional, como se um rapaz filmasse com seu próprio celular, em um lugar familiar qualquer. Os vídeos de Whindersson, por exemplo, são sempre filmados dentro de quartos.
Outra singularidade desse tipo de mídia é que os youtubers tratam seus seguidores com nomes como "família" ou "bros" (de brothers), e é possível comentar os vídeos, pedir algum específico e fazer perguntas diretamente a eles. É comum que os youtubers mostrem sua casa, namorada e contem histórias de sua vida.
O tamanho da fama desse novo formato de mídia parece surgir de uma questão principal que sintetiza tais singularidades, que é proporcionar ao espectador - que mudou de nome, não é mais espectador passivo, como o era diante da TV, mas membro de uma família - ao menos a fantasia de que ele e o youtuber são íntimos amigos de infância. É essa relação de confiança, supostamente estabelecida entre um lado e o outro da tela, que tem interessado tanto às marcas que se associam às novas celebridades (imagine colocar um produto sendo anunciado por alguém que outras 54 milhões de pessoas consideram um "bro" - irmão).
É possível observar, nessa mídia, uma espécie de nova estética, novo formato e nova linguagem, mais atualizada e rápida do que a das mídias tradicionais. Pensemos que um programa de televisão (em TV aberta ou a cabo) conta com muitos funcionários para produzi-lo, atores, roteiristas, produtores, enfim, um conjunto de pessoas (com certa experiência), que atendem a mil e um interesses e necessidades, desde seguir uma determinada conduta da emissora, a respeito de como tratar certos assuntos, até as necessidades de ibope e audiência que atendem aos seus interesses comerciais e de seus investidores.
Os youtubers parecem, por vezes sem querer e por outras de maneira explícita e hilária, zombar de uma mídia antiquada e anacrônica, com a qual os jovens identificam-se muito pouco, num estilo revisitado de "Geração Coca-Cola", de Renato Russo:
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados dos USA, de 9 às 6
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês
Talvez, em um espírito atualizado e menos afeito à estética da revolta, como a geração de Renato Russo nos anos 1980 e 90, os jovens que consomem e produzem conteúdo no YouTube desprezam a produção da mídia convencional, ao ponto de talvez vir a torná-la obsoleta simplesmente por não a consumir.
Além da singularidade do formato, da linguagem e do tratamento das questões, essa nova mídia cria uma espécie de comunidade internacional que, talvez pela primeira vez na história, consome o mesmo conteúdo, seja na Suécia, México, Coreia ou em Gana, já que a internet é provavelmente o meio de comunicação mais democrático que já existiu. Há, evidentemente, a barreira da língua, mas canais falados em inglês e espanhol têm uma possibilidade de alcance que muito extrapola as barreiras nacionais. Até o presente momento, existiam conteúdos de mídia compartilhados por diferentes países, tais como as séries norte-americanas e filmes, mas ainda eram bastante elitizadas por conta do preço da TV a cabo e do cinema.
Em 2016, uma pesquisa feita pelo banco de investimentos norte-americano Piper Jaffray levantou que, pela primeira vez, os jovens estão assistindo mais ao YouTube do que à televisão a cabo e aberta (https://jogos.uol.com.br).
Como esse novo cenário pode interessar aos psicanalistas? Ao contrário de olhar para essa migração como simples modismo adolescente, consideremos que essa geração, que tem youtubers como ídolos e que não assistem mais à televisão, será os adultos, analistas e pacientes, políticos e educadores de daqui a 10, 20 anos.
Lemma e Caparrotta, organizadores do livro Psychoanalysis in the Technoculture Era (2014), sugerem que a comunicação tecnológica deve ser de grande interesse para os psicanalistas contemporâneos, na medida em que essas tecnologias têm o potencial de exercer importantes funções psíquicas, tais como estar-consigo-mesmo e estar-com-os-outros. Como psicanalistas, é nossa incumbência distinguir entre as propriedades da ferramenta e o uso que as pessoas fazem desta.
Youtubers: psicanálise do quotidiano
Proponho tomar o fenômeno youtubers como uma porção do mundo, que encerra em si uma amostra de regime de pensamento do mesmo, como propõe Herrmann. No trabalho "O que a subjetividade contemporânea tem a ver com o romance e o miniconto", Luciana Saddi diz:
O gênero romance nasce na modernidade, e, como vimos, fala de um momento histórico específico. O romance revela a modernidade e a modernidade revela o romance de maneira indissociável. Essa poderia ser uma afirmação de Herrmann ao dizer que em cada quotidiano, ou seja, em cada porção do mundo, é preciso levar em conta o regime de pensamento do mesmo, pois esse não está desarraigado do sujeito individual. Se essas afirmações forem verdadeiras, encontraremos no romance a modernidade, a psicanálise e o neurótico, e vice-versa. Cada quotidiano revelará homem e mundo. (Saddi, 2015, pp. 148-149)
Sem a pretensão de tomar o fenômeno youtuber no mesmo patamar do romance, enquanto gênero narrativo, mas considerando-o, sim, como um novo gênero narrativo que conta histórias de uma forma bastante popular e que, por esta popularidade, parece dar notícia de um quotidiano a revelar homem e mundo, como conceituado por Herrmann.
O psicanalista paulistano, em seu livro Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, de 2001, diz, no Prefácio, que muito mais se escreve sobre o tratamento analítico do que sobre o humanístico dia a dia, e que seu livro pretendia analisar as regras de constituição do quotidiano, pois a psique, o objeto da psicanálise, ocorre essencialmente na vida quotidiana dos homens, assim, voltar ao quotidiano é voltar à casa paterna (Herrmann, 2001, p. 9).
Tomemos, então, essa nova mídia como o humanístico dia a dia e investiguemos as regras que constituem esse quotidiano. Minerbo (1993), em um trabalho em que discute, do ponto de vista da teoria dos campos, de Herrmann, a intimidade, afirma:
Ao postular a ideia de campo de uma relação (inconsciente relativo), o referencial metateórico que utilizamos permite instrumentar o método psicanalítico de modo a que seja possível não apenas a psicanálise de pacientes, mas também psicanálises dos mais variados "tecidos" psíquicos que podem então ser estudados. (Minerbo, 1993, p. 247)
Seguimos pelas ideias de Herrmann, nas palavras de Minerbo, e tomemos esse fenômeno de mídia enquanto um tecido psíquico que justifica o olhar psicanalítico para "o processo incessante de produção de sentido psíquico no mundo" (Herrmann, 2001, p. 34).
A teoria dos campos, de Fabio Herrmann, planteia exorcizar a dicotomia entre fantasia interna e realidade externa, na definição do autor, a psique do real seria um conjunto de pressupostos inconscientes que determina formas possíveis de ser em uma determinada época. Segundo essa compreensão, o inconsciente individual não foge ao inconsciente geral da época em que está inserido. Realidade e identidade são ideias gêmeas, sendo a primeira designada como a representação do mundo que toca o sujeito e a segunda a representação do sujeito para si mesmo.
O real, como produtor de sentidos, é inacessível de maneira direta, e apenas apreensível "na atividade de seus campos particulares, quer dizer, na medida em que funda formas de relação determinadas, provê-las de sentido, fá-las funcionar... o quotidiano é o lugar onde o real se transforma em realidade" (Herrmann, 2001, p. 34).
Dessa maneira, não há nenhuma representação da realidade que exclua sua matriz, por exemplo, não é possível a existência de uma peça de plástico que exclua a realidade da extração do petróleo, a máquina que a fabrica e o sistema mercadológico que a faz chegar até nossa casa, nesse sentido, o autor diz que qualquer conjunto de relações capazes de estabelecer uma realidade abarcativa configura-se como um quotidiano, sendo o quotidiano constituído de tal maneira que qualquer parte sua seja também o todo, nesse sentido "podemos cavar nossos poços de prospecção onde quer que nos apeteça, certos de encontrar uma jazida de realidade e um campo do real" (Herrmann, 2001, p. 36).
Esse quotidiano supõe um campo do real a produzi-lo e sustentá-lo, no entanto, essas relações e sentidos não são transparentes ou evidentes, sendo apenas reveladas pelas suas representações.
Herrmann ressalta o perigo de criarmos quotidianos psicanalisáveis, isto é, que tomemos porções de mundo condizentes com nossas teorias. Olhar para a internet, para o YouTube e a mídia social, parece-me caminhar em direção oposta a essa, já que as teorias psicanalíticas cabem pouco ou desajustadamente às novas vivências no mundo virtual.
Pois bem, quais seriam os tecidos de representação, o campo do real que sustenta o inconsciente relativo dessa nova mídia?
Vídeos do YouTube enquanto produto cultural
Os vídeos de youtubers podem ser pensados como novos produtos da cultura, tais como outras produções de conteúdo, como novelas, reality shows etc. Minerbo (2007), em um trabalho que reflete a respeito do sucesso dos reality shows na contemporaneidade, como "Big Brother", aponta para um novo formato de produto cultural que prescinde da mediação simbólica do corpo do ator. Segundo a psicanalista, nos realities existe um esforço para se apagar o caráter de espetáculo, porque, por mais que este exista - há uma equipe de filmagem, produtor, apresentador etc. -, o que o espectador quer ver são as pessoas "de verdade", e, nesse tipo de programa, por mais que exista um jogo sendo jogado, os participantes não estão ali representando um outro papel que não o de si mesmos.
Minerbo reflete sobre o sucesso desse formato de conteúdo pensando a fome que o espectador tem de consumir "carne humana", refere-se, no trecho abaixo, especificamente ao Big Brother Brasil (BBB):
pois é essa que nos coloca na posição de leões, isto é, de devoradores de carne humana. Quando assistimos a um espetáculo nos moldes clássicos - teatro, circo, e mesmo a novela, já que estamos falando de televisão -, há, entre nós e o corpo dos atores, mediações simbólicas importantes. Seu corpo é o suporte do roteiro, de personagens laboriosamente construídos, há o talento, a iluminação, o palco, enfim, uma série de recursos que se interpõem entre nós e eles. Graças a essas mediações, o corpo do ator transcende seu estatuto de mera exibição de carne humana e passa a ter valor simbólico, tornando-se ator no sentido forte da palavra. Ele passa a ser o suporte necessário para a expressão do talento (ou mesmo para a falta dele - aqui, o que vale é a intenção). No espetáculo clássico, o corpo é representação. No BBB, o corpo é obsceno, não porque esteja quase nu, mas porque é um corpo-carne, sem valor simbólico, pura realidade, excessivamente "de verdade" quando comparado com o corpo do teatro, do circo ou da novela. Obsceno: fora da cena - da cena simbólica. (Minerbo, 2007, p. 156)
Poderíamos pensar os youtubers como um passo adiante no caminho dessa exposição de conteúdo, na mídia, de "carne humana de verdade". A fantasia que se constrói pela forma através da qual se produz o conteúdo, pela imediatez com que é publicado e pela suposta relação direta e sem intermediação entre inscritos/bros e youtuber, é a de que entre eu e aquela pessoa na tela não existe separação, nenhum intermediário, já que, diferente dos reality shows da televisão, supostamente os youtubers não têm equipe nem produção além da simples edição do vídeo (muitas vezes realizada pelos mesmos). Seríamos então eu e ele/a "conversando" como se estivéssemos deitados um ao lado do outro na cama ou no sofá de casa.
A cena que se constrói é de intimidade, de familiaridade. Poderíamos dizer que as novelas, queridas companheiras de grande parte da população brasileira, serviam ao mesmo propósito, que os espectadores se sentiam próximos e íntimos dos personagens e que chegavam a confundir realidade e ficção ao agredir atores na rua, por interpretarem personagens maus nas tramas novelescas.
Sim, as novelas criavam, assim como os filmes e séries, uma vivência de intimidade entre o espectador e os dramas do personagem. Poderíamos então dizer que nada mudou, que tudo continua igual, apenas com roupagem diferente?
Penso que todas as vezes que explicamos um fenômeno novo com equivalências fáceis (isso é igual àquilo), estamos provavelmente deixando escapar alguma particularidade e nos resguardando no espaço seguro do conhecido.
A suposta vivência de intimidade entre seguidores e youtubers é de natureza diferente, pois, além dos últimos não estarem representando um papel - ou ao menos não estão de maneira tradicional como os atores o fazem ao interpretar um personagem -, existe interação real, possível e direta. Não é incomum youtubers responderem a comentários e atenderem pedidos dos seguidores, eles, de fato, conversam (virtualmente) entre si.
Mas se toda relação é determinada e sustentada por um campo, seu inconsciente relativo, como coloca Minerbo (1993) a respeito do pensamento de Herrmann, que tecidos inconscientes são esses que essa porção de mundo nos revela sobre os sujeitos e a realidade?
O ponto central do sucesso, da fama e da popularidade dessa nova mídia parece ser a suposta experiência de intimidade entre as partes. O que nos leva a uma questão bastante curiosa, visto a intimidade nos parecer, a princípio, avessa às vivências online.
Whindersson Nunes faz um vídeo pedindo a namorada em casamento, 11 milhões de vezes o vídeo é visualizado, 11 milhões de vezes alguma pessoa sentiu-se fazendo parte de um momento íntimo e importante do youtuber, ao mesmo tempo que ele publiciza algo particular de sua vida.
Segundo Debord, "O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens" (1967/1997, p. 14). O escritor francês lançou seu livro, A sociedade do espetáculo, em 1967, no qual conceitua uma nova sociedade em que a única mensagem é "o que aparece é bom, o que é bom aparece".
Seria o espetáculo mais espetacular quanto menos ele aparentasse ser um espetáculo? A máxima - "o que aparece é bom" - encerra a ideia central de que não é necessário ser bom para aparecer, não existe uma qualidade positiva anterior ao espetáculo. Aparecer (qualquer coisa) é o próprio espetáculo. Poderíamos então considerar que é sob o signo da sociedade do espetáculo que youtubers estão fazendo sucesso, e que tal signo se configura enquanto uma das características do campo do real a sustentar e promover esse quotidiano.
Não podemos deixar de incluir neste mesmo signo, o do espetáculo, a maciça utilização que as pessoas têm feito das redes sociais, como Facebook, Instagram, Snapchat, entre outros. Sempre que tratamos dessas questões em meios psicanalíticos algumas posições surgem, como: as pessoas estão perdendo a condição de fazer contato real umas com as outras, até alcançar elaborações mais teóricas que dizem que a confusão entre real e virtual seria característica das personalidades borderlines e que o espaço virtual, baseado em imagens, modificaria completamente a linguagem como representação de mundo (Guignard, 2014).
Psicanálise e tecnologia
É comum ouvirmos, do senso comum, em rodas de conversa, em reportagens de televisão e também nas comunicações virtuais (em mídias sociais), a crítica de que as pessoas estão utilizando a tecnologia de maneira excessiva e descontrolada. São fotos de lugares (museus, escolas, teatros, cafés) nos quais todos os presentes estão olhando para as telas de seus celulares, profissionais da saúde recomendando o uso moderado da conexão digital e, nos consultórios, constantes queixas dos pais de que os filhos só querem jogar videogame ou mesmo pacientes, crianças ou adolescentes que trazem os dispositivos eletrônicos para a sala de análise (os adultos sempre trazem).
Nicolaci-da-Costa, professora da PUC-Rio e estudiosa da relação internet e sujeito, escreve:
Frequentemente ouvimos falar que, nos dias de hoje, estamos nos tornando muito dependentes da tecnologia. A esses comentários se segue a avaliação de que isso não é bom na medida em que nos afasta cada vez mais da nossa condição de seres humanos. (2001, p. 19)
Usar a internet, seja para assistir a vídeos no YouTube, participar de redes sociais ou jogar videogame, indica um afastamento de nossa condição de seres humanos?
Conexão e identificação
O uso da internet por pessoas comuns (pesquisas e uso militar começaram décadas antes disso) se iniciou em meados dos anos 1990 (Castells, 2003), mas apenas nos anos 2000 é que de fato a plataforma digital passou a ser acessível ao uso doméstico e corriqueiro, como para enviar emails e pesquisar assuntos em geral. Em 17 anos a tecnologia da informação transformou radicalmente todos os setores do mercado, as guerras, o acesso a informação, o sentido de distância geográfica e a maneira das pessoas se comunicarem.
Se nós passamos a usar a tecnologia da informação com tamanho interesse, curiosidade e entusiasmo (apesar das críticas e ressalvas), essa mesma tecnologia, ou o que ela oferece, seria algo de natureza estranha à condição humana?
É importante ressaltar que as grandes novidades na tecnologia da informação não foram projetadas por empresas e disponibilizadas prontas ao usuário final. Os sites mais acessados são as plataformas com conteúdo gerado pelo usuário, tais como Wikipedia, Facebook, Instagram, YouTube, Mercado Livre etc. (http://canaltech.com.br). Quem faz a internet ser interessante e constantemente atualizada são os próprios usuários.
No dia 24 de agosto do ano de 2015, o Facebook registrou o acesso de 1 bilhão de pessoas em sua rede social, em um planeta com 7 bilhões de pessoas, a conta é fácil. Uma em cada sete pessoas estava conectada no Facebook na data do marco. Zuckerberg publicou um post em seu perfil, dizendo que esse é "apenas o começo para conectar o mundo todo" (http://www.techtudo.com.br).
No livro A cultura da participação, Clay Shirky, professor de telecomunicações interativas da Universidade de Nova York, diz que "vivemos, pela primeira vez na história, em um mundo no qual ser parte de um grupo globalmente interconectado é a situação normal da maioria dos cidadãos" (2010, p. 27).
A psicanálise conhece a identificação como a mais antiga e original manifestação de uma ligação afetiva a um objeto, declara Freud em seu texto de 1921, "A psicologia das massas e análise do eu". Seria imprudente dizer que há algo humano, demasiado humano, na tecnologia da informação com a qual nos identificamos? Ou a lógica da teoria nos permite, sim, dizê-lo? Se sim, com o que, na tecnologia da informação, estaríamos tão entusiasticamente identificados?
Internet: matriz de sentidos
Castells, sociólogo espanhol e pensador das novas tecnologias de comunicação, denomina de sociedade de rede o momento atual da economia e das relações sociais, em suas palavras:
Sob essas condições, a Internet, uma tecnologia obscura sem muita aplicação além dos mundos isolados dos cientistas computacionais, dos hackers e das comunidades contraculturais, tornou-se a alavanca na transição para uma nova forma de sociedade - a sociedade de rede - e com ela para uma nova economia. (Castells, 2003, p. 8)
Arriscando um diálogo entre Freud, de 1921, e Castells, 80 anos depois, o algo com o qual um bilhão de pessoas estariam identificadas talvez seja precisamente esta nova característica possibilitada pela internet, a constituição de uma rede.
A rede é um meio de comunicação de muitos com muitos, diz Castells (2003). A internet, enquanto tecnologia, não fala diretamente a um anseio fundamentalmente humano, mas a possibilidade de comunicação e conexão com outras pessoas parece que sim.
Convido apenas mais uma voz para fazer parte da conversa e caminhamos para o final de nosso argumento. Pierre Lévy é filósofo, sociólogo e pesquisador em ciência da informação, estuda o impacto da internet na sociedade, as humanidades digitais e o virtual. Em seu livro O que é o virtual, de 1995, além de propor uma discussão interessante a respeito do status do virtual, de este não se opor ao real e sim ao atual, sendo, portanto, um espaço em potencial, Lévy escreve:
O que torna a Internet tão interessante? Dizer que ela é "anarquista" é um modo grosseiro e falso de apresentar as coisas. Trata-se de um objeto comum, dinâmico, construído, ou pelo menos alimentado por todos os que o utilizam. (Lévy, 1995/1999, p. 128)
Lévy propõe que o conteúdo presente na rede de computadores (internet) - ao falar de conteúdo, o autor refere-se a texto, tomo aqui a liberdade de estender a ideia para conteúdo, podendo ser um texto narrado com imagens, um vídeo - é uma matriz de textos em potencial, isso porque o dispositivo possibilita que o leitor cocrie o conteúdo, "toda leitura em computador é uma edição, uma montagem singular" (Lévy, 1995/1999, p. 41).
Lévy diz que, ao interpretar e dar sentido, o leitor/seguidor leva a cabo uma cascata de atualizações possíveis do conteúdo, ao interagir com ele, o usuário "levanta por cima de páginas vazias uma paisagem semântica móvel e acidentada" (Lévy, 1995/199, p. 35), podendo tomar caminhos diferentes, estabelecer redes clandestinas, fazendo emergir outras geografias semânticas. Seguimos com as palavras do escritor, propondo aqui ampliar a ideia de texto e leitura para views e outras interações possíveis:
Assim a escrita e a leitura trocam seus papéis. Todo aquele que participa da estruturação do hipertexto do traçado pontilhado das possíveis dobras de sentido, já é um leitor. Simetricamente, quem atualiza um percurso ou manifesta este ou aquele aspecto da reserva documental contribui para a redação, conclui momentaneamente uma escrita interminável. As costuras e remissões, os caminhos de sentido originais que o leitor inventa podem ser incorporados à estrutura mesma do corpus. A partir do hipertexto, toda leitura tornou-se um ato de escrita. (Lévy, 1995/1999, p. 46)
De que maneira essa cocriação funciona, de fato? Vejamos os sites, plataformas e aplicativos que têm seu conteúdo gerado pelo usuário. As redes sociais são as mais evidentes realizações dessa colaboração, se os usuários não postarem fotos, notícias, opiniões, não há nada para se ver no Facebook, no Instagram ou no YouTube.
Mas o que Lévy nos coloca é que não é apenas o conteúdo gerado pelo usuário que faz a internet ser essa rede interessante de contatos e colaboração, é mais do que isso, uma notícia, um vídeo, uma foto, é um acontecimento que segue acontecendo a partir das interações entre os usuários.
Um vídeo de youtuber, por exemplo, é postado e comentado, criticado, compartilhado, dá origem a outro como resposta, ou a um post ou twitter, de outras pessoas, de muitas pessoas. O youtuber pode fazer um segundo vídeo a partir de comentários no anterior ou continuar a conversar a respeito nos infindáveis fóruns online, seja no YouTube, Facebook ou Twitter. Sim, escritores também se inspiram em escritores e atores em outros atores, mas a mídia de base (a internet) tem essa rede de interações como qualidade singular, qualidade essa que a diferencia de outras mídias.
É essa escrita coletiva, as infinitas dobras de sentidos e novas produções, como diz Lévy, que faz a internet ser um espaço diferente do mundo offline, diverso das produções de conteúdo tradicionais (TV, filmes, peças de teatro, literatura).
Poderíamos então pensar no fenômeno youtubers a partir desse inconsciente relativo, como uma tessitura de condições tecnológicas disponíveis costuradas a uma experiência particular de intimidade online.
Muitas pessoas, psicanalistas em especial, oporiam-se de imediato à ideia de intimidade na rede, ou de intimidade no mundo virtual, visto partirem da ideia de intimidade na relação analítica. De que intimidade estaríamos falando ao dizer que inscritos e youtubers sentem compartilhar um certo espaço íntimo? E do que se trata, psicanaliticamente, a intimidade.
Intimidade na rede
No texto "Intimidade e formas de intimidade: da escuta à teorização" (1993), Minerbo apresenta alguns fragmentos clínicos para tratar da questão a partir da leitura de Herrmann, tomando a intimidade como uma relação sustentada por um campo, seu inconsciente relativo.
Nessas reflexões, Minerbo postula que a intimidade pertence ao campo da neurose, já que tem como condição o reconhecimento do outro enquanto separado do eu, e que o prazer na intimidade se daria no encontro entre dois eus que se reconhecem em suas falhas e podem, assim, aceitá-las. Pessoas com intimidade entre si aproximam-se reconhecendo semelhanças e separam-se demarcando diferenças. A autora diz que "O sentimento do 'eu-mesmo' é prazeroso na mesma medida em que o sentimento de despersonalização é desagradável" (1993, p. 239).
Ela afirma que a intimidade acontece em certo território erótico, e esse território é a psique, duas psiques que se aproximam, reconhecem-se e se distinguem. Experimentando o prazer de se sentir acompanhada em ser, ela mesma, falha, e, ainda assim, amada. A autora fala sobre o prazer do analista em partilhar da intimidade de seus pacientes, demarcando assim seu sentido de eu-mesmo diante do diferente e do semelhante que encontra no outro do paciente. Aponta para o perigo sempre presente de perder-se neste outro, o perigo do borramento dos próprios contornos a partir do desejo de um estado fusional sem separação, sem diferenças.
Pois bem, a intimidade assim conceituada parece ser necessariamente uma via de mão dupla entre dois sujeitos que se constituíram enquanto eus separados e que podem, então, aproximar-se, identificar-se e, em seguida, separarem-se.
No fenômeno youtuber uma pessoa assiste a vídeos que outra fez, e experimenta uma constelação psíquica que poderia ser traduzida da seguinte maneira: "Nossa, eu me sinto exatamente assim!", ou "Eu penso isso, não sabia que mais alguém pensava a mesma coisa", ou "Eu amo isso também", ou "Isso me irrita mais que tudo também".
É o reconhecimento do "eu também, assim como você", ou do "você também, assim como eu", que faz a cama do sentido da intimidade. Ainda segundo Minerbo, o prazer da intimidade vem de partilhar com o outro a condição falha e imperfeita de ser. O youtuber compartilha comigo que, assim como eu, ele é também falho, imperfeito, inseguro, desajustado, incompleto.
Outra singularidade interessante dos youtubers celebridades é que eles são, em sua maioria, jovens que poderiam ser considerados estranhos, mal ajustados, diferentes (ao menos se tomarmos um certo padrão midiático de celebridades em relação à beleza física e comportamento). Vários deles relatam experiências pessoais de terem sido crianças solitárias e de poucos amigos. Eles são os estranhos nos quais encontro minha estranheza representada.
Quem assiste aos vídeos deita de um lado dessa cama de intimidade e experimenta por um momento o calor (virtual) da companhia de um igual. Do outro lado da cama/tela o youtuber compartilha algo de sua intimidade (seja opinião, jeito de falar ou pedido de casamento). A exposição e a publicização da vida particular exigem reflexão posterior.
Retomando Herrmann, que diz que nenhuma representação da realidade exclui sua matriz, podemos pensar que a popularidade desse novo fenômeno de mídia viria atender a um anseio imenso de intimidade, mas que exclui, da experiência, o traumático do encontro com o outro?
Quando estou, no mundo offline, na cama com alguém, seja concreta ou psiquicamente, posso me deliciar na experiência do "assim como você, eu também", porém, em seguida é necessário que eu me recupere do éden dessa fusão e me depare com o "não, nisso eu sou diferente de você", e lidar com o inferno/ traumático-que-são-os-outros, com o trabalho que é a alteridade, o que é separado, o não eu.
Não é nova a ideia de que a vivência online protege do traumático que há no encontro com o outro, mas o fenômeno youtuber parece introduzir um elemento novo, a característica da ferramenta de possibilitar contato real (apesar de virtual) - fazer comentários, dar sugestões, conversar com o youtuber - produz a fantasia de estarmos,"de verdade", em uma relação de mão dupla, acentuando os borramentos de muros entre mundo online e offline.
Para terminar, poderíamos tomar essa ideia como uma evidência cabal da falência da capacidade dos sujeitos de se relacionar na contemporaneidade, como gostam os profetas do apocalipse (expressão de Lévy), ou podemos retomar o que Lévy diz sobre o virtual não se opor ao real, mas ao atual, sendo o virtual um espaço em potencial.
Dessa forma, a popularidade dos youtubers poderia revelar um homem contemporâneo apaixonado por uma certa intimidade parcial, recortada, que anseia e consome um tipo de produto capaz de oferecê-la. Uma paciente de 14 anos diz: "eu queria tanto ter amigas como nas séries e nos filmes, parece a amizade perfeita", e segue discorrendo a respeito das infindáveis imperfeições de suas amizades, as brigas, as mentiras, a sensação de estar excluída da turma e toda a gama de nuanças inevitáveis das relações com pessoas reais. Os youtubers seriam esses amigos perfeitos com os quais me identifico, mas que não me exigem trabalho psíquico de separação (e, portanto, de ódio).
A intimidade é prazerosa, na medida em que me identifico com um outro e, ao mesmo tempo, defino os contornos de ser eu mesmo, mas opós a essa vivência segue-se outra necessária, de separar-me, voltar a estar só e reconhecer o outro como diferente de mim. Talvez seria essa segunda parte, a dolorosa, a estar fora do jogo de amor entre seguidores e youtubers.
Uma característica importante presente nessa nova mídia é a presença de haters. Haters são usuários que escrevem comentários ofensivos, violentos, odiosos. Todos os youtubers relatam a dificuldade em relacionar-se com uma avalanche sempre presente desse tipo de interação. Poderíamos pensar a presença desse ódio online (que até ganhou nome próprio) como uma reação infantil, violenta, da quebra de certa intimidade idealizada. Te amo enquanto somos iguais, odeio quando percebo alguma diferença.
Para terminar, parece razoável afirmar que as relações representáveis, por meio das quais se mostra o psiquismo no fenômeno youtuber, dão-se sob o signo da sociedade do espetáculo, mediatizado por imagens, e que o campo, enquanto inconsciente dessa relação e conjunto de regras que a organiza, parece ser o desejo de uma intimidade de mão única, um virtual estado fusional que exclui o trabalho traumático do encontro com o diferente no outro.
Como palavra final, que essas reflexões sejam tomadas mais enquanto uma tentativa de apresentação de um fenômeno e do levantamento de questões do que como uma consideração conclusiva. E se esse quotidiano - sujeito que anseia por intimidade e compreensão e que consome isso enquanto produto de mídia - revela um homem contemporâneo incapaz de contatos reais, ou se, por outro ponto de vista, anseia por eles, fica a cargo do olhar de quem observa.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
MARIELLE KELLERMANN BARBOSA
Rua Padre Almeida, 515/ cj. 54
13025-250 - Campinas - SP
tel.: (19) 98282-0048
mariellekbarbosa@gmail.com
Recebido 29.04.2017
Aceito 28.05.2017
1 Postado em 29/03/2017.
2 Esses números podem ser checados no YouTube, mas sofrem alterações constantes na medida em que mais visualizações são feitas ou novas pessoas se inscrevem no canal.