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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo July/Dec. 2022  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.02 

CARTA-CONVITE

CARTA-CONVITE 2022: UMA ODISSEIA ANTROPOFÁGICA

Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci


O movimento antropofágico de 1927 constitui-se num conceito sempre atual do dilema humano. Somos passageiros de uma viagem de resgate, percorremos a tênue fronteira da restauração de nosso original, aquilo que nos constitui, ou, ainda, tomamos o “atalho” pela posse, pelo autoritarismo, das ditaduras, da disputa territorial, do fanatismo, guerras, extermínios. Vivemos muitas vezes a polarização dos grupos numa lógica da moral, do certo/errado, culpado/inocente, branco/preto, do tudo ou nada. É difícil alcançar um estado de ética da dúvida, de convivência dos opostos, de expansão da possibilidade de permanecer na tensão viva do grupo. Em A divina comédia, Dante Alighieri intui um desfecho diferente para o mito humano da Odisseia, uma viagem para além das colunas de Hércules, subvertendo a ordem divina, na busca do conhecimento a qualquer custo. Tal ambição, levada às últimas consequências por Ulisses, é o desafio a sua própria vida e às de seus companheiros de viagem. Essa é a antropofagia a que nos referimos nesta revista, uma tomada de decisão a cada momento, de cada um.

Ulisses, de Homero ou de James Joyce, é alguém numa atitude de procura por si mesmo, assombrado por sua alteridade, sua realidade psíquica, aberto e vulnerável ou blindado, fanático, enlouquecido? Homo homini lupus? O homem é lobo do homem?1

Irineu Franco Perpétuo, autor de Como ler os russos (Todavia) e tradutor de escritores do cânone da literatura, reflete a respeito do que perdemos - no sentido de nosso patrimônio humano cultural - com a polarização e com o boicote do Ocidente, que afasta a arte russa. Cita clássicos como Dostoiévski, Tchaikovsky, entre outros, que levantaram questões da existência humana, tormentos da consciência. Alcançariam uma linguagem universal e anacrônica pela capacidade de veicular vários vértices concomitantemente? Uma linguagem-paisagem, como num pictograma visual acompanhado de melodia? Um ritmo poético na confluência entre literatura e música? É assim, nessa rede de vértices diversos, um transportar-se para o mais próximo da essência de uma existência...

Franco Perpétuo cita Liev Tolstói, o pacifista que escreveu a forma moderna da épica, os romances Guerra e paz e Contos de Sebastopol (1853-1856) - este, baseado nos acontecimentos da Guerra da Crimeia (1853-1856), em que lutou. Mesmo nutrindo um visceral sentimento antibelicista, uma atitude ética, Tolstói foi excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa. Perpétuo detém-se no entrelaçamento histórico e cultural comum dos países agora em conflito, assim como Gogol, o escritor que nasceu numa cidade da atual Ucrânia, que pertencia ao Império Russo. Nesse sentido, dessa raiz comum, há o caso contemporâneo de Svetlana Aleksiévitch, cidadã bielorrussa nascida na Ucrânia, que escreve em russo Vozes de Tchernóbil e A guerra não tem rosto de mulher. A literatura e outras formas de arte, cinema, música, pintura, são manifestações da força da criatividade que trazem à tona as discussões malditas, enfrentando a perseguição, o obscurantismo e os obstáculos para chegar aos corações dos homens.

Dr. João Cesar de Castro Rocha2 afirma, em sua reflexão, que o mundo vive no momento atual uma dimensão pré-Totem e tabu. Essa dimensão do pré-humano é contemporânea a outras, “mais civilizadas”, que nos habitam. Afinal, nossa mente é multidimensional, como um palimpsesto - e aqui vale pensar na visão cósmica de Matte Blanco. Para o professor Cesar, o contemporâneo visa diminuir a alteridade, as distâncias ou as dissonâncias pela racionalização, pelos canais da mídia do universo digital, que funcionam como bolhas, confirmando as crenças, produzindo sistematicamente a ilusão, o obscurantismo. Assim, evito o que me contradiz e escolho o que me confirma. No entanto, é preciso suportar o mal-estar, ou permanecemos cindidos, imersos no conflito de polos contrários, sem suportar con-viver na tensão provocada por aquilo que não reconheço (Caetano), também em mim mesmo, despertado pelo Outro.

Voltando à nossa realidade brasileira e à antropofagia oswaldiana, esta tem o grande merecimento de ser o verdadeiro momento de ruptura com a realidade cultural de outras realidades e tentar criar uma dialética toda brasileira. Isso, entretanto, só poderia acontecer se os artistas e intelectuais fossem originais e criativos, deixando de lado, embora amplamente encarnados, o academismo francês e o verismo e realismo italiano. Oswald pretendia celebrar, por meio da antropofagia, o multiculturalismo, a miscigenação brasileira e fazer disso o ponto de partida de uma cultura nacional própria. Era o esquema que se verificava no mundo em sua integralidade. Existia a exigência de criar uma nova identidade cultural, já que a Missão Francesa de 1816 e a exposição italiana não podiam mais atender às necessidades de buscar uma cultura autóctone, uma identidade nacional que quebrasse a continuidade com o período colonialista.

Oswald de Andrade usa o conceito de antropofagia com a acepção de ritual celebrado para se fortalecer com as virtudes do inimigo morto e derrotado em sua fisicidade, materialidade, para incorporar sua espiritualidade. Seu desejo era partir daquela cultura que tinha vindo de fora e, uma vez absorvida, deglutida e processada, fazer dela o ponto de partida de nossa cultura. Era uma viagem, um movimento centrípeto, que traria o exterior para dentro de nós, misturando-o e expelindo-o como algo novo. Como psicanalistas, podemos pensar no trabalho do negativo de André Green, no instinto epistemofílico de Melanie Klein e nas ideias de Meltzer a respeito da beleza e de seu impacto estético, ou seja, em como conhecemos e/ou em como lidamos com aquilo que não sabemos e não saberemos jamais… Lançamo-nos no espaço dessa odisseia.

As propostas deverão ser encaminhadas à secretaria da revista até o dia 24/6/2022 para fabiana.santos@SBPSP.org.br As orientações encontram-se em “Orientação editorial e normas para publicação de artigos e resenhas na revista Ide” no final da revista ou no site da SBPSP.

Editora: Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci

Corpo editorial: Celia Blini de Lima, Edoarda Anna Giuditta Paron, Evelyn Finguerman Pryzant, Flávio Verdini, Maria Aparecida Angélico Cabral, Luis de Paiva Silva, Maria Luiza Lana Mattos Salomão, Mariana Eizirik, Orlando Hardt Junior, Patrícia Schoueri.

Podcast: https://open.spotify.com/episode/3SEg8HBQGaRya4z5Wfg2s4?si=VmVFycxh SIaN0wOeEIO7jQ

1Homo homini lupus, provérbio criado pelo dramaturgo romano, Marcio Plauto (254-184 a.C.) na peça Asinaria, reinterpretado anos mais tarde como: “Lupus est homō hominī, nōn homō, quom quālis sit nōn nōvit” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Homo_homini_lupus#cite_note-4): “o homem não é homem, mas um lobo, para um estranho”, ou mais precisamente: “Um homem é um lobo, não um homem, para outro homem que ele ainda não conheceu”.

2Abertura dos trabalhos científicos apresentados sob o título geral de Ética, Estética e Psicanálise na SBPSP. O título da conferência de Castro Rocha foi “Ilusão e realidade paralela: a psicologia das massas digitais” (12/3/2022).

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