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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo July/Dec. 2022  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.03 

ENTREVISTA

LEOPOLDO NOSEK 23/7/2022


Este número alusivo ao quadragésimo quinto ano de existência da Ide refere-se também ao Bicentenário da Independência do Brasil, ao Centenário da Semana de 1922, ao centenário da inauguração do rádio no Brasil por Roquete Pinto, ao septuagésimo aniversário da SBPSP e comemora uma outra efeméride: 50 anos de íntimo convívio da psicanálise com nosso entrevistado, Leopoldo Nosek. Exeditor da Ide, da RBP, do Jornal de Psicanálise, da Caliban, da International Psychoanalytical, da ipa, foi laureado pelo Sigourney Award; ex-presidente da SBPSP, autor de vasta obra. Seu último livro, A disposição para o assombro (Perspectiva, 2017), abre fronteiras originais. Assim, esta entrevista acompanha o tema proposto pela Ide, Odisseia, ao entrevistar seu antigo criador e editor.

Esta entrevista constitui uma oportunidade de reencontro entre os leitores da Ide e um de seus interlocutores mais originais, como uma forma de continuar no rumo do conceito da Odisseia.

Nesta entrevista acompanharemos Leo no retorno a sua Ítaca, à Ide, ponto inicial em sua carreira de editor.

Guiados pela Odisseia, cada psicanalista tem a necessidade de constituir sua própria autoria, de refletir sobre a própria vida. Nesse caso, saberemos como foi para Leo ter sido editor da Ide; como era o Zeitgeist de um editor diante de uma revista inovadora, e, mais importante, teremos assim uma possibilidade de conjecturas ao descrever hoje as suas aventuras assentadas na observação direta da psicanálise na época de sua fundação.

Ide - Como você lê a Odisseia?

Leo - Vocês estão correndo um risco, pois Ulisses, quando volta, mata os que se banqueteavam em sua ausência, isso é bem descrito na “Telemaquia”, uma parte da Odisseia sobre a qual pairam dúvidas quanto a ela fazer parte do original de Homero. Estou brincando, conforme meu costume. No entanto, podemos pensar que Ulisses se livra dos que, em sua ausência, viviam sob as estrelas do princípio do prazer, e isso faz sentido pela ausência do pensamento. Quando se volta a uma cena, de fato não é um retorno, mas sim uma chegada, e assim, mais uma vez, temos de matar os que usufruem da ausência do pensamento.

O pensamento se insurge com a fixidez da palavra escrita. Assim, a Odisseia escrita requer traduções que, por sua vez, se tornam anacrônicas no tempo. Os clássicos são eternos, mas as traduções caducam. Além disso, cada um de nós, diante do texto, faz suas próprias interpretações, que também vão se renovar permanentemente. É assim, com a Odisseia, ou com a leitura de qualquer clássico psicanalítico. Nunca voltamos ao Freud de ontem.

A palavra escrita, assim que é falada, fica obsoleta, vivemos nosso cotidiano com a palavra falada, criando assim um apelo à renovação. A Odisseia em sua origem percorria os trajetos da palavra falada. Nesse tempo arcaico, Mnemosine, a deusa da memória, tinha um lugar no Panteão dos deuses. Hoje carrego a minha memória no bolso de um jeans. Vivemos um tempo que na pandemia agudizou-se com sucessivos agoras. Assim, se o analista fizer a mesma interpretação para o mesmo paciente, isso fura o propósito analítico e, portanto, é antiético, porque ele já não estará no atual. Pior ainda é repetir a mesma metáfora em diferentes análises. No viver prosaico, não cabe repetir a mesma dedicatória em diferentes lembranças amorosas. As emoções requerem versos renovados.

Reli recentemente a Odisseia na tradução de Frederico Lourenço. Recomendo! Aliás, quero contar que um paciente me dizia não entender por que Ulisses queria fugir da ilha da belíssima ninfa Calipso. Ela ofereceu a ele vida eternamente jovem, o que foi arguto, pois a outro herói grego de que não me recordo o nome foi oferecida a vida eterna, e isso se revelou uma maldição, já que ele não parava de envelhecer; cada vez mais carcomido, ansiava por uma impossível morte. Enfim, eram dadas a Ulisses todas as delícias, mas este chorava todas as tardes querendo ir embora. Interpretações mais ingênuas falam de que tinha saudades de Penélope. De fato, essa aparente bênção revela-se uma maldição pela eterna repetição. Ulisses quer voltar para o mar, quer voltar para a vida. Outra paciente, após temporada de aguda angústia, começa a sessão dizendo que está bem (ela oscila entre estados extremos de humor) e em seguida diz que não tem assunto e permanece em longo silêncio. Retomo o episódio de Calipso, e afinal nos rimos, pois Ulisses com Calipso não tinha assunto. São infinitos os desdobramentos que esse clássico nos permite. Podemos pensar que a aventura de Ulisses é um retorno ou, mais propriamente, uma chegada ao descanso em sua própria pele, e isso é uma excelente metáfora para a tarefa analítica. Uma volta para a pátria. A gravação de nossa conversa terá de ter uma edição, que será uma tradução de nossa conversa em sua impossibilidade de ser repetida. Vocês me trarão a edição para que eu a revise, e a cada momento vou ter a tentação de reescrevê-la.

Ide - Vamos aproveitar a oportunidade. O termo “oportunidade” significa vento que leva de volta ao porto, um vento benfazejo. Você ajudou a conceber a Ide, foi um dos editores; conte-nos como foi a concepção dela, hoje uma senhora com 45 anos de idade. Como era o Zeitgeist de um editor da Ide?

Leo - Faço parte de uma geração que trabalhava em equipe. A equipe da Ide foi maravilhosa. Essa época, fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990, quando eu iniciei na Ide, que era um folhetim de coisas amenas da Sociedade, tive a sorte de as pessoas estarem distraídas. Tivemos uma liberdade enorme, numa época em que estava havendo a abertura política. Tínhamos uma visão bem otimista do futuro, de reconstrução e abertura para o mundo, porque a gente tinha passado 25 anos em uma ditadura. Eu não contava para a Sociedade que eu tinha passado político, tinha medo. Uma vez, eu me lembro, estava saindo da Sociedade e cruzei com Paulo Sandler. Ele disse: - Aonde você está indo? Respondi: - Estou indo à assembleia dos metalúrgicos, no abc. Ele disse: - Puta merda!

Vejam, o grupo fazia parte do espírito do tempo, do Zeitgeist, e, voltando para a Ide, ser editor é saber cavalgar o espírito do tempo. É pegar o que está no ar. Minha ideia era fazer uma revista enxuta, só que ela foi crescendo, deixou de ser um folhetim, e, após cada número, ela crescia mais. Conseguimos cavalgar os tempos, chegamos a ter 500 assinantes da revista fora da Sociedade. O pessoal esperava, era uma novidade, entrevistamos grandes nomes da psicanálise, perguntávamos coisas prosaicas da vida deles. Quando vieram aqui o Meltzer e o Laplanche, combinamos com eles que não iríamos fazer conferências; faríamos uma grande roda, e eles iriam compartilhar conosco as vicissitudes e dúvidas deles. Fomos os primeiros a publicar a cada número uma supervisão do Bion, publicamos também o que era uma entrevista inédita do Freud e também o que foi a primeira tradução para o português de Alexandre Kojève. Era o espírito de renovação que cabia naquele momento. Logo a seguir a Sociedade deixa de ser um grupo estritamente familiar. Quando comecei a fazer o Álbum de família, a Ide, de repente, tinha dinheiro. Então criou-se o Projeto Memória, e algumas outras ideias a partir dele, como a Exposição no masp. Trouxemos a exposição do Freud, pois ainda tínhamos várias lendas vivas de fundação da SBPSP. Todo grupo tem suas lendas de fundação. Tínhamos uma lenda que era muito importante, a narrativa da Adelaide Koch, sua fuga do nazismo, recebida aqui pelo Durval Marcondes. Tudo isso era importante naquela época.

Depois tivemos uma segunda lenda de fundação, que se dera em função de uma grande crise que a Adelaide viveu em São Paulo e a Sociedade junto com ela. Quando fiz o Álbum de família, não cabia contar as intimidades dessa crise. Há histórias que eu sei, que os velhos me contaram, que as novas gerações não sabem. São muito mais prosaicas, sofridas, do que as lendas contam. Começou assim uma segunda narrativa - que a Sociedade tinha uma pré-história freudiana, mas depois ela teve outro acréscimo, fruto de a Lígia e a Virgínia terem ido para Londres. Nesse momento, a SBPSP tem uma retomada kleiniana e, com a vinda do Philips e depois a do Bion, ela teria atingido uma maturidade teórico-clínica. Cada uma dessas versões tinha um fundo ao mesmo tempo mitológico e épico.

Eu pensei numa terceira lenda de fundação da Sociedade e que tem a ver com a Semana de 22, já que o Durval tem um poema publicado na revista Klaxon. Fui o responsável por dar corpo a essa lenda de que a psicanálise nasce junto com o modernismo, é subsidiária da Semana de Arte Moderna, por mais que a psicanálise não estivesse caminhando com os modernistas. Foram os modernistas que procuraram a psicanálise. Os modernistas na Semana de 22 dividiram-se em duas vertentes - uma, de preocupação social, mais à esquerda, e outra, fascista. O Álbum de família traçou em imagens o desenvolvimento da psicanálise em São Paulo, tendo como pano de fundo a psicanálise internacional e também o contexto histórico em que essa disciplina se desenvolveu. Tenho a impressão de que, apesar de termos criado o acervo histórico da SBPSP, o Álbum nunca foi muito assumido pela instituição. No entanto, vivíamos uma época de grandes transformações.

Ide - Você escreveu A disposição para o assombro (2017). Em 1965, Ferreira Gullar disse em uma entrevista que, em vez de inspiração, prefere o termo “espanto”, um sinônimo para assombro, descrita por ele como uma forma de ruptura do mundo. Depois ele reiterará isso dizendo que só escreve movido pelo espanto. Você usa o termo “assombro” como título de seu livro. Será que ambos escrevem movidos pela constatação de que o mundo/a realidade não é explicável, justificável, ela simplesmente é, e, por isso, a cada momento nos põe diante de seu inconcebível mistério?

Leo - Qualquer pergunta vai caminhar na direção do assombro. Eu adoro a citação do Gramsci: “Quando o novo ainda não surgiu e o velho está desaparecendo, essa é a época em que aparecem os monstros”. Hoje temos socialmente uma mudança tão grande, muito maior do que a Revolução Industrial. Houve uma tremenda concentração de riqueza e uma precarização que se estende a todas as classes, vemos isso nas dificuldades profissionais da classe médica e dos psicanalistas em particular. Hoje é consensual a proposta da renda mínima, porque, nesse regime econômico atual, a perspectiva igualitária desaparece, as gerações futuras viverão dificuldades que minha geração desconheceu. O rico hoje é muito mais distante da classe média. A concentração da produção, o lugar do emprego, tudo o que era tradição desaparece. O Estado de bem-estar caduca, as guerras serão pela hegemonia capitalista, e as novas gerações terão de encontrar novas bandeiras políticas.

Voltando àquilo que falei sobre Gramsci, quando Bion veio ao Brasil foi uma novidade. O risco para qualquer autor é virar uma verdade sacralizada e permanente. Gosto de pensar que, para ser bioniano, você não pode parecer o Bion. É quase um paradoxo, mas você não pode ser simplesmente aderente. Tem que ter esse movimento de ir adiante. É claro que você não precisa fazer uma nova Odisseia, mas você precisa fazer uma nova tradução. Ninguém lê a tradução da Odisseia de 1920. A linguagem é imprópria. A gente vai buscar uma tradução recente, que também vai caducar. A Odisseia não vai caducar; Freud não vai caducar, mas as traduções, os manuais sobre eles, as leituras deles caducam. O tempo entre a morte de Freud e a vinda de Bion ao Brasil foi de 30 anos. Da vinda de Bion já se passaram mais de 50 anos. O mundo mudou...

Ide - Dentro dessa leitura, estamos vivemos um final dos tempos do capitalismo?

Leo - Eu tenho outra leitura do Marx e eu não acho que ele fala de uma coisa que vai caminhando para a desagregação, não fala de uma direção obrigatória, aliás, em seus textos teóricos não faz previsões, analisa o modo de funcionamento da sociedade capitalista. É central em seu pensamento a busca do que subjaz às ideologias. É uma tentativa de pensamento emancipatório, o que a psicanálise, em outro recorte do humano, também busca. Não é a cura, é o conhecimento.

Ele diz que o capitalismo é o primeiro modo de produção que se autorrevoluciona, se refaz. Nesse refazer, ele não tem fronteiras éticas, bondade, maldade, apenas iniciativas. Quem fica para trás, tchau, quem vai para a frente vai! Cria e destrói coisas lindas.

Ide - Você está falando de mudanças?

Leo - Quando acaba a Primeira Guerra Mundial, as pessoas não voltam à Belle Époque, tudo vai para outro lugar, outra crise e outra solução. Até as guerras são modos econômicos. Por exemplo, os americanos gastaram 3 trilhões no Afeganistão. No Afeganistão, não, eles gastaram na economia doméstica de produção de armas. Agora, nós aqui não vamos pôr dinheiro em armas, e sim em infraestrutura, saúde, educação. Então, essa coisa de Estado mínimo é uma balela, um Estado que está em guerra, um Estado que produz obras de infraestrutura poderia ser chamado de Estado mínimo? Então, quem é comunista, a China? Não, é uma economia privatizada e com ordenamento estatal. A política tem caminhado não para o bem-estar da humanidade, mas para favorecer grandes conglomerados. Caducaram as ideologias, até mesmo a liberal. A guerra cotidiana se faz por fusões e aquisições, concentra-se o capital e também o expediente para o trabalho, com a consequente precarização de países e de enormes parcelas da população. Por que falamos disso? Falamos porque uma publicação precisa estar atenta ao espírito dos tempos. Democracia é liberdade de pensamento, mas também acesso à saúde, educação, moradia etc. No entanto, o que vemos em face disso é uma incrível ascensão da extrema direita. De fato, é assombroso e creio que não tenho um pensamento de como me opor a isso. Nunca esperei que isso voltasse à cena...

Vivemos em meio a lendas ideológicas, de repente, eu brinco… o pessoal foi fazer mba em Columbia, em Harvard, para depois voltar para cá e dizer: você não pode gastar mais do que ganha… você não aprendeu mais do que isso? O Estado gasta, a dívida americana é enorme, mas ainda tem jeito… até na economia doméstica é assim, agora é a primeira época em que eu não estou endividado, em que eu não estou gastando mais do que ganho. Ainda bem que eu não fiz mba em Columbia e em Harvard!

Ide - O que você diria sobre a volta à origem? Ulisses foi reconhecido por seu cachorro e pelo porqueiro. O que será que foi reconhecido? Podemos fazer 200 anos de análise, mas haverá sempre alguma coisa que fará você ir ao seu encontro.

Leo - Lembrei-me de uma frase de Santo Agostinho: “nascemos entre fezes e urina”. Nós vamos nos distanciando disso, vamos ganhando uma característica mais abstrata, mais humanizada, mas nascemos entre fezes e urina. Isso não traz então um retorno ao originário, eu não recomendo. Ulisses quando volta já é outro, Penélope, os pretendentes e Telêmaco são diferentes. Um repentista de nosso Nordeste canta: “Cada vez que eu dou um passo, o mundo muda de lugar”. Então, eu acho que a psicanálise é uma disciplina do corpo psíquico em busca de um lar. Para um imigrante desenraizado como eu, uma das fontes para buscar raízes é a psicanálise. Buscamos uma raiz na história pessoal que permanece. Buscamos nosso alicerce que segura o edifício da alma atualizada. A única forma que haveria de a gente não ser louco seria não pensar em nada até os 20 anos e começar a pensar após os 20, mas começamos a pensar dentro da barriga da mãe, quer dizer, construímos um alicerce precário. Eu criei meus filhos, imagina, com 20 e poucos anos. Agora que eu tenho um pouco mais juízo, eu não tenho vigor nem para segurá-los no colo. Então, esse é o paradoxo que a gente traz: um alicerce assentado em épocas precoces, e não dá para pular por cima disso. Essa é uma das raízes da volta à origem, quando estamos com o alicerce abalado, vamos lá, damos uma olhada e uma melhorada. Não é uma volta ao passado, pois os alicerces são atuais. Apesar de ser uma coisa maravilhosa, a psicanálise não tem nada a ver com o vértice religioso da revelação e da redenção. Não é apenas a cura gay que é antiética, qualquer movimento que busque a cura é antiético em psicanálise. Montamos junto com o paciente as variáveis e constantes que o ajudarão nas diferentes equações da vida. No entanto, a psicanálise tem um pé no sagrado e um pé no profano, quer dizer, a árvore do conhecimento mistura-se com a árvore da sexualidade. Nós temos isso, temos muitas vezes uma leitura do Bion de que continente-contido seria uma metáfora digestiva. Penso na relação do masculino com o feminino, é intercurso. Então, a sexualidade é assombrosa e assustadora para a gente em qualquer idade. Não fora ela assim, não teria graça a sexualidade, seria igual a comer bife. O susto invade até mesmo nossas teorizações.

Ide - Fale-nos um pouco sobre o escritor, sobre seu livro.

Leo - Diria que o meu livro é um filhote tardio, temporão, que eu pari e que foi fertilizado, e eu nem sei direito quem é o pai, mas a mãe sou eu. Então, é um livro meio primitivo, tem vários pais, eu tive vários intercursos. Não posso dizer quem é o pai do meu livro, mas eu sou a mãe de vários pais, e é por esses orifícios que o interno se comunica com o externo. Por exemplo, ideia que Melanie Klein pôs é que não existe no desenvolvimento sexual linear e progressivo uma ordenação que vai do oral e é seguido pelos modos anal ou genital. Eu acho, correspondendo ao que ela escreveu na década de 1920, que desde o início os modos sexuais coexistem. A gente nasce com os orifícios que comunicam o interior e o exterior, que têm funções e pulsionalidades diferentes. Nós construímos o psiquismo com base em estimulações que vêm dessas regiões, dessas anatomias. Há um intercâmbio; eu não diria que existe um antes e um depois, mas o tempo todo há um intercâmbio corporal-anatômico-psíquico. Então, eu quero devorar um livro, eu quero digerir o livro, de repente, eu fico grávido de uma ideia e escrevo um livro.

Sempre volto a Freud, e nesse livro o acento cai sobre o acréscimo feito pela definição da Segunda Tópica. Além do recalcado, temos o inconsciente por construir, por se tornar propriamente psíquico. O senso comum atribui até hoje à psicanálise revelar o recalcado, tornar o inconsciente consciente. A teorização kleiniana, quando afirma a presença sempre da fantasia, permanece no âmbito da Primeira Tópica. O mesmo faz Lacan quando afirma que o inconsciente estrutura-se como linguagem. Apenas na década de 1970 o inconsciente por construir volta a ganhar relevo. Assim foi com Green, Bion, o Lacan tardio. Da mesma forma, a estimulação externa, quando ultrapassa a possibilidade de representação onírica, forma o território do traumático. No dizer revelador de Laplanche, o traumático comporta-se como pseudopulsão. Busca inevitavelmente sua apresentação onírica. A representação tal como nos interessa tem dupla cidadania. Terá inevitavelmente uma face voltada para o consciente e uma face voltada para o inconsciente. É disso que se trata quando falamos de conhecimento encarnado, que é a marca de nosso saber. Repito sempre que somos construtores de sonhos na conjunção sexualizada com nossos pacientes.

Como talvez vocês podem ver, bebo de variadas fontes.

Ide - Como você vê a psicanálise no mundo de hoje?

Leo - Eu vou começar com uma das minhas piadas favoritas. Nos anos 1990, eu estava num organismo da IPA chamado Casa de Delegados. Era uma proposta de fazer um legislativo na IPA em que havia 7 representantes latino-americanos, 7 europeus e 7 norte-americanos. Os norte-americanos chegaram com um manifesto questionando por que não se permitia na Sociedade a entrada de homossexuais, já que até 1990 isso era proibido. Lembraram que a homossexualidade não é assunto psicanalítico, porque tinha a ver com o uso anatômico dos órgãos. O que interessa para nós é o fantasma que rege essa cena. Então eu posso dizer que já fiquei com a fulana, e este é um ato de destruição, não é um ato genital, ou estou tão ansioso, que agora eu me aliviei, e este seria um ato evacuativo. São essas fantasias que imperam sobre a anatomia. Então a homossexualidade não é nem para ser assunto psicanalítico, é comportamento.

Eles chegaram com o documento para tirarmos isso da lei psicanalítica. Os europeus queriam discutir um pouco mais o conceito de perversão, como é a perversão, a sexualidade infantil, mas assinaram. Os latino-americanos foram um número! Um disse: yo no puedo asinar esto, porque no tengo el mandato de mi Sociedad. Ficou com medo de assinar. Um outro… Que ótimo isso, ele disse: yo no puedo asinar esto porque yo estoy en contra, hoy acceptamos la homosexualidad, mañana tendremos la necrofilia en las Sociedades. Não assinou. Aí eu disse: olha, eu não tenho nenhum problema com o mandato, eu vou assinar, porque há mais de 90 homossexuais na minha Sociedade. Causou um rebuliço. Como assim há mais de 90 homossexuais na sua Sociedade? Eu disse que somos duzentas e poucas pessoas, sendo 90 homossexuais, mas a maior parte ainda não sabe que é homossexual. Todos riram.

Homossexualidade é outra história... se eu vou a uma entrevista e digo “eu sou heterossexual”, do que eu estou falando? Não muito, não é nosso assunto. Teremos de lidar com o fato de que as crianças são altamente sexualizadas, seduzem os adultos. Aí temos a complexidade analítica da questão do abuso. A criança tem um pensamento muito peculiar e difícil de ser compartilhado pelos adultos, cada adolescente necessariamente faz uma ruptura com a geração anterior. Menina pode beijar menina, meninos podem usar minissaia, cada geração afronta e faz uma ruptura. Pensar não é solucionar, pensar é pôr um problema. Tem épocas em que a gente pode pôr o problema, tem épocas em que a gente fica defensor do consagrado. Houve um momento em que eu fui bom para ser editor da Ide, provavelmente hoje eu não seria. Requer outra estrutura, outro momento, outro mergulho nos tempos.

Ide - Falando de revistas, quando você foi presidente da Fepal, você idealizou uma revista latino-americana bilíngue. Qual era o objetivo da revista? Ela atingiu esse objetivo?

Leo - A Calibán está aí, é uma revista muito original, a gente amarrou para ela não acabar, tem um estatuto que torna difícil acabar com ela. Volta e meia na reunião da fepal querem acabar com a Calibán, mas construímos um estatuto que a protege.

Ide - Gostaríamos que falasse um pouco mais sobre sua participação Calibán.

Leo - Ainda falando de revistas, quis repetir a experiência da Ide na IPA, numa publicação quando eu fui fazer a newsletter da IPA. Eu disse: vou provar que a IPA pode ter uma revista dela. Juntei com Mario Cohen, que tinha uma empresa de publicidade, e fizemos uma revista belíssima. Só que eu não tive o cuidado de obter apoio político. Daí o secretário disse: olha, está muito cara. Mas estava fazendo com o mesmo budget com que os outros fizeram. Usamos muitas fotos belíssimas do Mario, de pessoas negras. Eu disse que essa revista vem do Brasil, somos um país de maioria negra na população. Então, mesmo isso, trazer negros para a Sociedade não é um ato de acolhimento e de bondade, é uma tentativa de a SBPSP se integrar no mundo de que ela faz parte. É o contrário, é um benefício para nós poder entender em que lugar que a gente vive. Criei na newsletter matérias críticas, privilegiei o André Green contra o Wallerstein no debate sobre pesquisa empírica em psicanálise. Pus a entrevista da Roudinesco como crítica da psicanálise francesa oficial. O fato é que fizeram uma reunião depois do segundo número, para ver se eu era um editor apropriado, criaram um comitê internacional para avaliar se eu seria adequado. Fiquei esperando seis meses até a próxima reunião da IPA e me diziam: olha, pede demissão, porque você vai ser demitido. Eu disse que não pediria demissão, vão ter que me demitir, e assim foi. Fiz o terceiro número, contudo, eu não fiz o quarto. Por quê? Porque eu não captei a diferença entre possibilidade e intenção. Não havia por parte do establishment da ipa a intenção de criar uma revista crítica e internacional, o lugar já estava ocupado pelo International Journal. Depois eu continuei, mas tem coisa que dá certo, tem coisa que não dá.

Ide - Como analisa a situação dos psicanalistas neste momento?

Leo - Como disse antes, há uma enorme mudança no mundo, com as transformações econômicas e tecnológicas. A ideologia socialista desaparece, e com ela sofrem também as ideologias liberais e social-democráticas. A oposição ao neoliberalismo sofre sem se aperceber de sua infuência. Ao lado da ideia de que somos indivíduos soltos socialmente, imperam as ideias de empreendedorismo e de um aparente laissez faire travestido de uma ideia abstrata de liberdade. A oposição a esse estado de coisas se fraciona em múltiplas bandeiras, assim como se cria quase um dsm para infinitas formas de sexualidades agora amarradas a uma classificação. Além disso, surge a peculiar ideia de uma política subjetiva.

A psicanálise nasce e deve permanecer subversiva. Se opõe a uma busca classificatória assim como à normatização do humano. Seu saber não encontra descanso, e a cada passo nos defrontamos com a incompletude de nosso saber. A negatividade é intrínseca ao nosso modo de pensar. Incluirá o saber e seu oposto: o que falta, o negativo que inevitavelmente acompanha a positividade.

Eu não sei classificar os analistas hoje, mas acredito que nossa tarefa é permanecer lucidamente psicanalistas. Para tal, não basta estudar a conjunção continente-contido. Precisamos estar atentos a quem ou o que contém o continente. Desse modo adentraremos inevitavelmente na atenção para a sociedade e para a cultura. A tarefa do psicanalista diante de um novo mundo é continuar pensando, chegar a novos desenvolvimentos, colaborando assim com todos os que pensam o homem. Também como praticante de uma disciplina que pretende a emancipação, compor com outros ramos de práticas emancipatórias.

Ide - Você coleciona arte brasileira moderna, particularmente Mira Schendel (1919-1988), vanguardista dos anos 1970, que assimilou e decantou as inquietações desse período e construiu uma obra consistente e pessoal. Como você percebe e descreve essa artista?

Leo - Mira Schendel é uma artista que nasceu na Suíça e desenvolveu sua obra no Brasil, começando na década de 60. Era muito amiga de intelectuais como Mario Schemberg e também de Isaias Melsohn, um dos nossos mestres queridos. Sua obra me remete a algo a que estou muito atento em meu trabalho psicanalítico. Sua obra trafega, em meu modo de ver, por espaços que não apenas são pré-figurativos, como também são pré-simbólicos. Buscar o símbolo tem a característica do sagrado que preside o nascimento do verbo, como está no Evangelho de São João. Aliás, o sagrado do nome divino na tradição judaica não cabe numa figura ou num símbolo. Trabalha com texturas e sinais que estão em busca da forma em que possa surgir um sentido. Quem adentra uma exposição sua tem a impressão de estar diante do sagrado, do além da metafísica. O curador da Tate Gallery em Londres disse que sua exposição retrospectiva foi a mais linda que a Tate fez. As pinturas de Mira Schendel poderiam se tornar ilustrações deste texto. Mira Schendel tem uma linguagem a um só tempo indeterminada e precisa, sua descoberta para mim foi um tipo de assombro. Ela me traduziu a riqueza da construção dos sonhos para a linguagem da construção plástica. Continuando no mundo das artes, cito Leonilson, falecido em 1993. Também chamou minha atenção pela linguagem plástica de uma outra ordem. Nele também figuram sucessões de palavras ainda poéticas coexistindo com formas da linguagem plástica. Chamou minha atenção, pois ali haveria um outro tipo de linguagem conceitual metaforizada útil para nós, psicanalistas. Continuando pela Odisseia, mas como autor, em um capítulo denominado “Variações sobre um tema de Antonino Ferro: alfabetizar as emoções”, trato de autores contemporâneos, partindo da herança dos gigantes do passado, cito Borges dizendo que hoje a Odisseia de Homero poderia ser posterior ao Ulisses de Joyce. O passado terá inevitavelmente uma releitura atualizada. Eu até poderia estender um pouco mais essa ideia, ao associar a arte de Leonilson à de Antonino Ferro.

Mira Schendel “Sem título”, técnica mista, década de 1980

Ide - Sobre psicanálise, Semana da Arte de 22, antropofagia, modernidade, a vinda de Bion à SBPSP pode ter sido a nossa Semana de 22? Assim como o movimento antropofágico sucedeu esse evento, Bion também foi antropofagicamente assimilado pela nossa sociedade?

Leo - De algum modo ele pôs em questão nossas tradições naqueles pontos em que estas estavam esclerosadas e repetitivas. Trouxe outro universo teórico e clínico. Para citar apenas um aspecto, diria que não tratou os sonhos como uma tarefa de desvelamento e de revelação. Tratou os sonhos como preâmbulos de novos sonhos. Na minha leitura, criou um campo analítico ou uma situação analítica em que não estava mais em questão o clássico “da porre” ou “da levare”. Como criador, faz parte dos que falaram de um campo analítico em que, como na arte, a instalação ou a performance criariam o cenário virtual para que o relato de um sonho pudesse ter a sequência de um novo sonho. Nossa tarefa é fazer dele o bispo Sardinha e que de sua digestão possa nascer algo que esteja em contato com nossa cultura. Afinal, não lutamos na Primeira Guerra, nossas lutas foram outras.

Ide - Para terminar, gostaríamos que você falasse sobre os 45 anos da Ide.

Leo - A Ide tornou-se uma revista impressionante! Quando a olhamos numa estante, logo vemos, mas seria interessante tornar a publicar os primeiros folhetins, em que estavam a Sonia, o Deodato, o Tenório, o Chaim. Eu não queria repetir aquilo, era mais uma fofoca interna, segui a maré de minha geração. Impossível não lidar com a cultura, que é o continente do continente psicanalítico. Não acredito que possamos separar uma teoria pulsional de uma teoria de relações de objeto. O acontecimento analítico ocorre pelos orifícios que comunicam a interioridade com o mundo, pelos espaços em que a epiderme se encontra com a mucosa. Esse é o espaço de nossa reflexão clínica e teórica, estamos nus, e nossos orifícios comunicam a mucosa com a epiderme. Não dá para ficar só na mucosa, não existe isso, e não dá para ficar na epiderme. Aliás, esse espaço é onde nossas epifanias acontecem e encontram expressividade estética. Acho que a Ide não terá mais remédio do que sair em busca de novas epifanias que possam nos revelar na circunstância dos tempos em que vivemos.

Ide - É uma zona de transição, é uma cesura?

Leo - É algo que tenho pensado: quando temos o vislumbre efêmero da verdade? Como disse Freud, o ego é uma projeção do corporal, os orifícios na pele são o território em que o mundo e a percepção têm um breve acordo, como o reluzir de um vagalume. Este é um assunto que pretendo desenvolver proximamente.

Ide - Agradecemos por esta entrevista informal, foi um bom encontro, muito interessante. O que pensamos no início aconteceu, como o assombro!

O pescador de palavras (Acrílico sobre tela, 1986) Leonilson (1957-1993) Foto: Edouard Fraipont

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