Nem só de pão viverá o homem.
(MT 4:4)
Só a Antropofagia nos une. Socialmente.
Economicamente. Filosoficamente.
(Andrade, citado por Claret, 1987, p. 70)
Fui surpreendida pela visita de uma mulher que queria falar comigo. Estava lá no portão, do lado de fora, a me esperar. O que seria? Indaguei em pensamento. Fui até lá falar com ela. Sorridente, cumprimentei-a, saudando. Disse que queria muito falar comigo, pois tinha encontrado, em seu garimpo diário de lixo reciclável, algo que tinha certeza de que eu iria gostar muito. Fiquei curiosa. Então, ela me passou um livro de capa muito colorida, dizendo que sabia o quanto eu estudava, lia, além de minha curiosidade por livros.
Nesse momento, refresquei minha memória e lembrei tudo a respeito dessa senhora. Há alguns anos, houve um acidente de carro e seu filho faleceu. Era uma família bem-posicionada, socialmente bem constituída e culturalmente avantajada. Logo após o luto do rapaz, toda a família se desestabilizou e definhou lentamente. Tornou-se acumuladora de lixo reciclável. Sua rotina consistia em sair de manhã pela cidade, retornava às tardes para casa, trazendo, em seu carrinho de duas rodas, plásticos, vidros, revistas, livros e coisas raras. Seus outros filhos casaram-se, migrando para outros estados, e a separação do esposo foi inevitável. Vive só e possui um casarão com um grande quintal, onde há montes de lixo reciclável.
Ela despertou-me dizendo que o guardava para mim já há algum tempo, e que o havia encontrado no lixo. Sim. Claro! E comecei a folheá-lo com cuidado. Que luxo no lixo! Era um livro chamado O pensamento vivo de Oswald de Andrade, edição ilustrada, coordenação editorial de Martin Claret. Pesquisa, organização, notas e biografia de Cristina Fonseca e programação visual e planejamento gráfico de Luís Carlos Rufo. Olhando para ela, observei os seus olhos brilhantes fitando os meus, à espera de algo. E esse algo existia em meu interior. Eu conhecia muito bem o que era. Amei o presente! Seu rosto encontrava-se queimado pelo sol, com vincos profundos, roupas assimétricas, varizes saltadas e chinelos que deixavam seus pés quase nus e encardidos. Eu conhecia bem a sua história, já sabia sobre sua recusa e resistência em se tratar, e desejava ajudá-la de alguma forma.
Agradeci muito, expressando minha satisfação e o quanto dali para frente estaria cuidando muito bem do livro. Ressaltei sua atenção, sua generosidade e sensibilidade com a obra. E ela sorriu, despedindo-se satisfeita. Fiquei a observando até desaparecer e, ao mesmo tempo, pensando. Que dor essa senhora está carregando! Toda dor mental precisa ser cuidadosamente manuseada. Ela se foi, mas não foi, permaneceu dentro, assim como o livro. Fui digerindo os dois, aos poucos, debruçando-me sobre a antropofagia de Oswald de Andrade. Pensei em Freud, especificamente no texto “Luto e melancolia” (1917/2010), e, assim, antropofagicamente, direcionei-me às teorias psicanalíticas a respeito do que eu poderia somar, aos poucos, para guiar-me às compreensões psicodinâmicas sobre essa mulher acompanhada de estranhas defesas para sobreviver. Iniciei, então, a leitura do livro que me foi oferecido por ela.
Antropofagiando Oswald de Andrade
Este livro começa onde o leitor o abrir. Ele não tem início nem fim.
Serve para o leitor iniciar-se na vida do Pensador e também para ir além do Pensador. (Claret, 1987, p. 8)
Claret faz uma cronologia desde o nascimento de Oswald de Andrade. Era filho único de família abastada e extremamente religiosa. Sua mãe era católica fervorosa e teve grande influência sobre o menino. Seu pai trabalhava com corretagem de imóveis e foi vereador da cidade. De família tradicional, entre seus parentes encontrava-se o escritor Inglês de Sousa, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Em 1911 fundou, com financiamento do pai, o tabloide Pirralho, que teve sucesso estrondoso. Oswald já mostrava suas tendências precursoramente modernistas.
Em 1928, batiza uma tela, que recebe de presente de Tarsila do Amaral, de “Abaporu” (o homem que come). Dá origem ao movimento de antropofagia: junto com Raul Bopp, A. Alcântara Machado e outros, funda a Revista de Antropofagia. Publica o Manifesto Antropófago. Mário de Andrade afasta-se definitivamente de Oswald. (Claret, 1987, p. 42)
Almoçando Oswald de Andrade
Embevecida com o meu presente, eu andava de cima para baixo com o livro debaixo do braço, esperando a hora de poder mergulhar novamente na antropofagia de Oswald de Andrade.
Tarsila do Amaral dizia que “Oswald era capaz de destruir um afeto por causa de um gracejo mordaz e ferino” (Claret, 1987 p. 49).
Balada do Esplanada
…
Pra m’inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu Hotel
Mas não há poesia
Num hotel
Mesmo sendo
“Splanada
Ou Grande Hotel”
Há poesia
Na dor Na flor
No beija-flor
“No elevador”
(Andrade, citado por Claret, 1987, p. 88)
Jantando Oswald de Andrade
Tupi, or not tupi that is the question. (Andrade, citado por Claret, 1987, p. 70)
Reconheço que ao devorar parcialmente o livro presenteado, sob o ponto de vista antropofágico, não sou mais a mesma. Fiquei pensando muito nela. Algo chamou minha atenção em relação a Tânatos (pulsão de morte) e Eros (pulsão de vida). Há esperança, fé e psicanálise para casos como esse, em que a pessoa foge da realidade. E há algo nela, muito presente, relacionado aos objetos internos bons. Encontrar um livro-luxo no lixo, intuir sua qualidade e profundidade, eleger alguém para ofertá-lo e que possa fazer bom uso, a ponto de fazer uma odisseia antropofágica - realmente há uma forte luz no fim do túnel, chamado senso estético. Penso que a psicanálise está, relativamente, imbricada com a antropofagia, onde devoramos um vasto repertório que compreende desde a técnica, teoria, indo em direção de uma formação constante e, assim, fertilizamos, na parceria com os nossos analisandos, o nosso ofício de psicanalisar. Durante a formação psicanalítica, no sentido relativo à identificação, muitas vezes, devoramos o analista primeiramente, para posteriormente “arrancá-lo ou matá-lo” simbolicamente. Da mesma forma que fazemos com as nossas figuras parentais. Resolvi, com base em toda essa reflexão, realizar uma investigação sobre o que Freud e outros teóricos poderiam contribuir para elucidar um pouco esse comportamento e transtorno que levam essa mulher, com senso estético, ao completo narcisismo e fuga da realidade.
Melancolia: uma odisseia
Eu poderia me aprofundar nos aspectos psicopatológicos que especificam teoricamente a síndrome de Diógenes ou disposofobia, mas algo chama minha atenção em direção à melancolia. Intuo que, para encontrar algumas respostas, eu precisava deixar de lado aspectos e hipóteses diagnósticas. Estaria o filho morto impregnado dentro dela? Realmente aquele encontro continua reverberando internamente. Impressões como odor semelhante a crisântemos, postura taciturna, pálpebras semicerradas ecoam. Ela foi embora, mas permaneceu dentro de mim, regurgitando. Pensei sobre os elementos que constituem a psicanálise. Poderíamos pensá-los em sua essência, agindo em uma cripta congelada, sujeita às possíveis transformações ou sobre a mágica do afeto? Pensei nos objetos internos, continente-conteúdo, em PS<->D e na mãe suficientemente boa. Seria a melancolia, e sua odisseia, a representação simbólica, antropofágica, do Abaporu como ausência de pensamento, canibalismo e presença maciça de um corpo-coisa?
Devorou seu filho para não o sepultar? Precisava de força física, acúmulo, entulho e braços fortes?
Penso no narcisismo, no luto e melancolia, e os associo com o Abaporu, de Tarsila do Amaral. O funcionamento mental do acumulador é congestionado pelo excesso e, ao mesmo tempo, pelo vazio existencial, desprovido de tudo, até mesmo da incapacidade para o pensar. Essa ideia de evasão se assemelha à psicose, evita a dor em vez de simbolizá-la para si, conviver com ela ou aprender com a experiência emocional. Penso também na mania, que é uma possibilidade sobre o domínio da dor da perda ou desprezo. Quando a dor é posta de lado, transforma o que seria um terrível sentimento de decepção, solidão e raiva impotente em estado semelhante a “alegria, júbilo ou triunfo”.
A odisseia entre o desejo de viver com os vivos e o desejo de estar em sintonia com o morto
Freud suspeita que na melancolia exista uma predisposição patológica. E afirma que:
se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição. … a perda que ocasionou a melancolia é conhecida do doente, na medida em que ele sabe quem, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso nos inclinaria a relacionar a melancolia, de algum modo, a uma perda de objeto subtraída à consciência; diferentemente do luto, em que nada é inconsciente na perda. (1917/2010, pp. 172-175)
Ogden, no capítulo “‘Luto e melancolia’, de Freud, e as origens da teoria de relações de objeto” (2014), amplia dizendo que existe uma ambiguidade na linguagem freudiana. Questiona se o melancólico não tem consciência da importância do vínculo com o objeto, ou se o melancólico não tem consciência do que perdeu em si próprio em consequência da perda do objeto.
A ambiguidade - intencional ou não - introduz sutilmente a importante ideia de simultaneidade e interdependência de dois aspectos inconscientes da perda do objeto na melancolia. Um envolve a natureza do vínculo do melancólico com o objeto e o outro envolve a alteração do self em resposta à perda do objeto. (Ogden, 2014, p. 38)
Para Freud (1917/2010), o melancólico ainda apresenta algo que falta no luto: um extraordinário rebaixamento da autoestima e um enorme empobrecimento do eu. Já no luto, o mundo se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu.
O doente nos escreve o seu Eu como indigno, incapaz e desprezível; recrimina e insulta a si mesmo, espera rejeição e castigo. Degrada-se diante dos outros, tem pena de seus familiares, por serem ligados a alguém indigno. Não julga que lhe sucedeu uma mudança, e estende sua autocrítica ao passado; afirma que jamais foi melhor. O quadro desse delírio de pequenez - predominantemente moral - é completamente com insônia, recusa de alimentação e uma psicologicamente notável superação do instinto que faz todo vivente se apegar à vida. (Freud, 1917/2010, pp. 175-176)
Freud observa uma discrepância no melancólico, que não é difícil de fazer, ao perceber as recriminações a si mesmo como recriminações a um objeto amoroso, que deste se voltaram para o próprio eu. Então reconstrói o processo da melancolia afirmando que:
Havia uma escolha de objeto, uma ligação da libido a certa pessoa; por influência de uma real ofensa ou decepção vinda da pessoa amada, ocorreu um abalo nessa relação de objeto. O resultado não foi o normal - a libido ser retirada desse objeto e deslocada para um novo -, e sim outro, que parece requerer várias condições de se produzir. O investimento objetal demonstrou ser pouco resistente, foi cancelado, mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto, e sim recuada para o Eu. (1917/2010, pp. 180-181)
E ainda, para Freud, o mais relevante é que a pessoa estabelece uma identificação do eu com o objeto abandonado. Desse modo, a sombra do objeto cai sobre o eu e, assim, pode ser julgado por uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado. “Desse modo a perda do objeto se transformou numa perda do Eu, e o conflito entre o Eu e a pessoa amada, numa cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação” (1917/2010, p. 181).
a identificação é o estágio preliminar da escolha de objeto, e o primeiro modo, ambivalente em sua expressão, como o Eu destaca um objeto. Ele gostaria de incorporar esse objeto, e isso, conforme a fase oral ou canibal do desenvolvimento da libido, por meio da devoração. (Freud, 1917/2010, p. 182)
Ogden expande o texto de Freud de forma microscópica:
em resposta à dor da perda, o ego cinde duplamente, formando uma relação objetal interna em que uma parte excindida do ego (a instância crítica) se volta raivosamente (insultada) contra outra parte excindida do ego (o ego-identificado-com-o-objeto). Embora Freud não fale nesses termos, pode-se dizer que se cria uma relação objetal interna com a finalidade de evitar o sentimento doloroso de perda do objeto. … o melancólico se vê subtraído de uma parte substancial da sua própria vida - a vida emocional tridimensional vivida no mundo dos objetos externos reais. O mundo interno do melancólico é profundamente moldado pelo desejo de aprisionar o objeto na forma de um substituto imaginário para ele - o ego-identificado-com-o-objeto. Em certo sentido, a interiorização do objeto transforma o objeto em prisioneiro eterno do melancólico e, ao mesmo tempo, torna o melancólico prisioneiro de objeto. (Ogden, 2014, p. 44)
Ogden diz que, para Freud, a solução para a contradição entre a coexistência da fixação intensa ao objeto e a falta de tenacidade do vínculo com o objeto está na base narcísica, “de tal modo que o investimento objetal, pode regredir ao narcisismo, quando encontra obstáculos em seu caminho” (2014, p. 47). Ampliando um pouco mais, o autor enfatiza que a melancolia é uma doença do narcisismo.
O paciente melancólico, no primeiro ano de vida e na infância, não conseguiu fazer a passagem bem-sucedida do narcisismo para o amor objetal. Consequentemente, diante da perda objetal ou da decepção, o melancólico é incapaz de fazer o luto, i.e., incapaz de enfrentar a realidade da perda do objeto e, com o tempo, de vir a ter um amor objetal maduro com outra pessoa. O melancólico não consegue se separar do objeto perdido e, ao contrário, evita a dor da perda por meio da regressão da relação narcísica de objeto para identificação narcísica: e o resultado é que a despeito do conflito [decepção levando a afronta] com a pessoa amada, não é preciso desistir da relação amorosa. (Ogden, 2014, p. 48)
Para Freud, “é não apenas lícito, mas até mesmo imperioso estender à mania a explicação psicanalítica da melancolia” (1917/2010, p. 187). A mania não é diferente da melancolia, as duas lutam com o mesmo “complexo”, o eu provavelmente sucumbe na melancolia, mas na mania ele o põe de lado. Tanto alegria, júbilo, triunfo, relacionados à mania, têm os mesmos determinantes econômicos.
Ogden aborda os comentários de Freud sobre o paciente maníaco:
pondo de lado com triunfo a dor da perda e exultando em sua vitória imaginária sobre o objeto perdido a ideia de que o mundo objetal interno inconsciente é construído com o propósito de evitar, “fugir” da realidade externa de perda e de morte. Essa ação de fuga da realidade externa mergulha o paciente em uma esfera de pensamento onipotente totalmente desligada da vida vivida em relação aos objetos externos reais. Consequentemente, esse mundo de relações externas de objeto se esvazia, pois foi desvinculado do mundo interno objetal inconsciente do indivíduo. A vivência do paciente, no mundo dos objetos externos, se desconecta do “fogo” animador do mundo objetal interno inconsciente. E o mundo objetal interno inconsciente, por ter sido desligado do mundo de objetos externos, não pode crescer, não pode “aprender com a experiência” (Bion, 1962), nem pode entrar (a não ser de modo muito limitado) em “conversas” fecundas entre os aspectos inconscientes e pré-conscientes de si próprio “na fronteira do sonhar”. (2014, pp. 54-55)
Ainda sobre Freud, Ogden aponta que “o melancólico vive o conflito entre o desejo de estar vivo com a dor da perda irreversível e a realidade da morte, por um lado e, por outro, de se amortecer da dor da perda e do conhecimento da morte” (2014, p. 55).
Desfecho
A gente não quer só comida,
A gente quer comida, diversão e arte.
A gente quer saída para qualquer parte…
Com o presente-livro, sonho ou metaforizo um entrelaçamento entre o movimento antropofágico, Abaporu e a melancolia. Ressalto, então, que a imagem do Abaporu, além de representar a pobreza do pensar, a força bruta - caracterizadas pela proibição e impedimento do conhecimento - e a inviabilidade pelo direito amplo e livre, também pode representar simbolicamente o modo de funcionamento psíquico do melancólico, marcado pelo excesso de pensamento (acumulação) e ausência do aparelho para pensar os pensamentos. O sujeito melancólico apresenta uma miséria antropofágica, em direção a Eros, torna-se visível e presente, assim como o excesso antropofágico em direção a Tânatos. O seu mundo mental é marcado pela alienação, autoestima baixa, narcisismo e fuga da realidade. Acredito que o caso específico da compulsão pelo acúmulo de lixo reciclável consiste na ausência de deglutição da cultura, arte, estética, amor-próprio e total desinvestimento familiar. A impressão é que a família, que se encontra viva, também faleceu, e o filho, que morreu, encontra-se vivo, necessitando de provisões, em que é preciso acumular para não faltar. Faltar o quê? Há um profundo estado de inanição nesses aspectos salientados. Qual seria o papel da psicanálise nesse caso específico? Ela é a ponte em direção aos laços amorosos. Estimulada por Ogden e Freud, pude percorrer as teorias, fazer um amalgamento das ideias dos dois autores e pensar um pouco mais sobre a melancolia e suas vicissitudes.
A política antimanicomial é um divisor de águas em direção a um cuidado maior e mais qualificado ao indivíduo com sofrimento mental. Essa luta é um processo histórico de defesa dos direitos humanos e de busca da cidadania de pessoas com sofrimento psíquico. Assim, o paciente com problemas mentais seria estimulado a um exercício de cidadania, visando fortalecer seus vínculos familiares, sociais e nunca se isolar. O sofrimento mental precisa ser bem cuidado e esteticamente manuseado. O presente que ganhei dessa senhora acumuladora me despertou. Penso em estabelecer um contato com ela, propor-lhe a psicanálise. Devemos acolher, chamar para dentro, estimular o seu interior, expulsar os excessos, antropofagicamente tanáticos, e abrir espaços para serem ocupados por Eros, os laços em nome do amor.