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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo July/Dec. 2022  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.06 

2022: Uma odisseia antropofágica

CAMINHANDO CONTRA O VENTO OU EDY E OS DESAPARECIDOS DE NOSSAS ODISSEIAS1

Walking against the wind or Edy and the disappeared from our Odysseys

Renato Trachtenberg2 

Psicanalista, membro fundador, titular e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPDEPA). Membro titular da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APDEBA), membro fundador e pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPDEPA). Porto Alegre

2Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre.


Resumo

O autor, inspirado em algumas ideias de Bion, procura pensar sobre a psicanálise complexa, presente na obra desse autor, usando a Odisseia de Homero como metáfora de uma viagem rumo a uma complexidade que se expande cada vez mais, à medida que essa viagem tem continuidade. Os conceitos de modelo espectral, cesuras e simetrias heterogêneas nos encaminham para uma crítica a outros modelos que facilmente se impregnam de moralidade, característica de uma psicanálise pré-complexa. A ideia de um movimento em pelo menos dois sentidos (↔), intrínseco à cesura em um modelo espectral, questiona o ideal evolucionista/iluminista de conquista da plenitude do conhecimento. A inclusão de um terceiro elemento, presente no que o autor denomina trilogia, pressupõe lógicas diferentes da aristotélica, como as lógicas denominadas de bimodais, ternárias, edípicas, para-consistentes etc. Essas últimas serão descritas por trilogias que possuem relações de correspondência e invariâncias entre si e que nos aproximam da conhecida pergunta perplexa e complexa de Primo Levi: É isto o homem?

Palavras-chave: modelo espectral; cesuras; simetrias heterogêneas; trilogias; paradoxos

Abstract

The author, inspired by some of Bion’s ideas, tries to think about the complex psychoanalysis - present in this author’s work - using Homer’s Odyssey as a metaphor for a journey towards a complexity that expands more and more as this journey continues. The concepts of spectral model, caesuras and heterogeneous symmetries lead us to a critique of other models that are easily impregnated with morality, characteristic of a pre-complex psychoanalysis. The idea of a movement in at least two directions (↔), intrinsic to the caesura in a spectral model, questions the evolutionist/enlightenment ideal of conquering the fullness of knowledge. The inclusion of a third element, present in what the author calls a trilogy, presupposes logics different from the Aristotelian ones, such as the so-called bimodal, ternary, oedipal, paraconsistent logics etc. The latter will be described through trilogies that have correspondence and invariance relationships between them and that bring us closer to the well-known perplexing and complex question of Primo Levi: If This Is a Man.

Keywords: spectral model; caesuras; heterogeneous symmetries; trilogies; paradoxes

Caminhando contra o vento

Sem lenço e sem documento

No sol de quase dezembro

Eu vou…

Sem lenço, sem documento

Nada no bolso ou nas mãos

Eu quero seguir vivendo, amor

Eu vou…

Por que não, por que não?

Por que não, por que não? Por que não, por que não?

(Veloso, 1968)

Introdução?

A revista Ide sempre buscou retomar o caminho, tantas vezes interrompido na história humana, da abrangência e interconectividade dos vários campos da Cultura e do pensamento, em que a separação entre os saberes tratou de anular as diferenças entre o que é apenas uma multiplicidade de vértices de observação. As cisões produzidas por nossas miopias ou alucinações estimularam rivalidade entre eles. Separações entre ciência ou arte, ciências duras ou humanas, entre áreas segmentadas da própria ciência ou da própria arte. Talvez, com exceção do período pré Aristotélico da história da Grécia e do período superior da Idade Média, conhecido como Renascimento, houve um predomínio das cisões apontadas. A Modernidade sólida, a Razão e o Iluminismo trouxeram um ideal de felicidade e prosperidade que não só não se realizou como, também, difundiu uma espécie da expectativa alucinatória de que o conhecimento seria alcançado e possuído em sua totalidade, eliminando todas as mazelas do Homem. Freud, um homem da Modernidade, termina por mostrar a falência desse projeto, e foi fundamental para tirar da ciência clássica esse posto de alcance de um saber infinito. Com a física quântica e a matemática associada a ela, outra revolução fundamental, um novo salto é dado. Conceitos decorrentes do inconsciente freudiano, e tantos outros provenientes desses campos citados, nos arrancaram desse sonho delirante e nos deixaram nus diante dessa infinitude, incerteza, indecidibilidade, incompletude, negatividade, singularidade, complexidade etc., (que configuram os princípios ético-estéticos de observação descritos por Chuster, 2002). Os mitos, os poetas, que desde muito antes da própria psicanálise já nos mostravam o caminho, foram interlocutores privilegiados da descoberta freudiana. A partir do mito de Édipo, pela versão de Sófocles, Freud pôde pensar o complexo de Édipo e considerá-lo como o “complexo nuclear das neuroses”. Essa ideia sintetiza a complexidade do pensamento freudiano: complexidade e núcleo pertencem a origens epistemológicas diferentes. É um paradoxo que destaca a origem iluminista, moderna, de Freud (a ideia de núcleos, centralidades) e sua luta contra essa mesma tendência através do pensamento complexo. São inúmeros os exemplos desse conflito na obra de Freud que traduzem o dilema humano de suportar a ideia nova, ou gênio, em si e no outro, frente a tendência do establishment externo e interno em neutralizar o inédito e o inaudito (Bion, 1970).

Apesar de reconhecido como um escritor com altíssimos dotes literários, com vários amigos no campo da Literatura, um leitor dos grandes cânones da literatura ocidental, e um apreciador das artes em geral, Freud não se sentia confortável em ser considerado um homem das Letras. Suas cartas à Schnitzler são paradigmáticas, ao ponto de confessar o seu medo de encontrá-lo pessoalmente, por considerá-lo o seu Duplo, aquele que por meio da literatura havia chegado com mais facilidade e mostrado, antes dele, Freud, aquilo que com tanto trabalho e dificuldades havia constatado pelo árduo caminho da ciência (Trachtenberg, 2003). Isso se somou à famosa crítica enunciada por Krafft-Ebing, quando da apresentação, por parte de Freud, de suas primeiras histórias clínicas diante da Sociedade Médica de Viena: Isso não passa de um conto de fadas científico. Bion, muitos anos mais tarde, iria atravessar essa ponte e o comentário do famoso psiquiatra se transformaria numa das melhores descrições estéticas da psicanálise.

Bion, sem as preocupações iniciais de Freud de que a psicanálise pudesse não ser considerada uma ciência e, portanto, não ser aceita nos lugares em que isso seria considerado uma condição sine qua non para o seu ingresso, foi paulatinamente estabelecendo um diálogo ou um poliálogo com tantos campos da cultura que transformou a psicanálise em… psicanálise. Ou seja, psicanálise não é ciência, não é arte, não é filosofia, não é nenhuma dessas e nenhuma outra, apesar de suas conexões íntimas com elas. Em cada momento de sua obra em que encontrava alguma dificuldade em prosseguir suas investigações clínicas e conceituais, Bion mudava o seu vértice para possibilitar um novo olhar que abrisse e des-saturasse o vértice utilizado anteriormente para que novas realizações surgissem (o que Freud também realizou em muitos momentos de sua obra). Essa é uma das inúmeras viagens/odisseias que Bion realizou e em cada uma delas teve que se defrontar com os diferentes obstáculos internos e externos até que algo ainda não conhecido ou pensado saísse das sombras.

Se Freud havia, com o inconsciente, produzido novas feridas narcísicas no homem, Bion continuou esse caminho e, em lugar de fechá-las, seguiu produzindo-as. Espero, escolhendo esse caminho, mantê-lo suficientemente aberto para que siga como o menos trilhado. Tratarei de pisá-lo com cuidado, levando pouca bagagem. A viagem será longa, pois, não será nem retilínea, nem uniforme. Sigo, prossigo, pré-sigo, persigo. Dou voltas, desvio, re-volto sobre o já dito para dizê-lo de outro jeito. Espero escapar das repetições, mas, não ofereço garantias.

Os viajantes

Os mitos utilizados por Bion são inúmeros, para tentar, por meio de suas metáforas, pensar e falar do inalcançável, do inacessível, a mente humana, daquilo que Bion chamou de O (Bion, 1965, 1970). Os mitos possuem essa qualidade de alcance, de achievement, de aproximação possível ao que não é possível conhecer e que nossa linguagem coloquial não possui. Mas, entre tantos, vou aceitar o desafio proposto pela revista Ide e tentar percorrer alguns trajetos que o mito da Grande Viagem chamada Odisseia (Homero, 2011) me estimula a trilhar. A viagem de ida, a Ilíada é uma história de guerras, roubos, sequestros, invasões, traições e de heroísmo. A volta será outra história… Um mito que, como todos grandes mitos, se faz literatura em algum momento de seu caminho, quando um pensador logra imortalizá-lo em alguma forma de escritura. O poeta Horácio disse, e Bion relembrou-nos, que antes de Agamenon, muitos bravos guerreiros foram sepultados incógnitos pela falta de um poeta, como Homero, para cantá-los. Porém, esse canto do poeta, não segue uma busca de uma verdade material. É, como todas as memórias, uma quase-memória (Cony, 1996). Gore Vidal (1996), nessa mesma linha, dizia que a diferença entre biografia e memórias era que nas biografias são necessárias pesquisas históricas, dados de comprovação etc. Quanto às memórias, comparando um livro de memórias aos palimpsestos, considerava que num livro de memórias se apaga e acrescenta tanto que não temos nada a dizer, só a acrescentar. Nos mitos só temos a acrescentar. Como também acrescentamos no que lemos e no que sonhamos. Como nas construções descritas por Freud (1937/1986a), retomadas por Bion, construímos/imaginamos/inventamos um passado.

Diz Pontalis que:

se queremos permanecer próximos à maneira em que efetivamente vai se desenvolvendo uma análise, teríamos também que evitar reconhecer-nos nesta outra fórmula que propõe como objetivo da cura a reconstrução da história do sujeito. A isso que entendemos por história, a psicanálise modificou-o tanto como a representação da memória. Para muitos historiadores de hoje, “investigar a história” é construir o passado e construí-lo desde as interrogações e escolhas do presente. Descobrir que o paciente se inventa novelas sucessivas, sustentar com Serge Viderman que o analista constrói uma história na que, ao final, se reconhecerá o analisante, é afirmar que não existe modo de diferenciar nosso trabalho do trabalho dos historiadores, que sabem, desde há muito tempo que, mesmo atendo-se estritamente aos fatos estabelecidos, a escolha e interpretação desses é questão de interpretação, que não há história sem construção e inclusive, entre os mais ousados, que ficção e verdade caminham juntas. Um historiador tão escrupuloso como Georges Duby disse em seu momento: “Ineludivelmente, o historiador deve sonhar seriamente, mas deve sonhar”. (Pontalis, 2005, pp. 17-18)

Mas, também, construímos/intuímos/imaginamos/inventamos um futuro. Como disse o matemático Alan Kay, a melhor forma de predizer o futuro é inventá-lo (Trachtenberg, 2022a). É F (Bion, 1970), é esperança, é aquela que é a última que morre, aquela que é esperançar, como nos disse Paulo Freire, que é espera e andança, esperandança (Trachtenberg, 2021).

Os mitos são histórias fantásticas que alegoricamente se referem às dimensões fantásticas de nossas próprias mentes. O fantástico é uma forma de descrever aquilo que está além da lógica racional, mas que tem uma realidade tão “real” que só os paradoxos podem descrever. A mesma característica fantástica que não amedrontou Freud em suas viagens, em sua odisseia ao inconsciente. Um conto de fadas científico disse o já referido Krafft Ebing, que percebeu, mais do que qualquer um, o que era a tal de psicanálise. Os mitos descrevem a busca de uma verdade que não se realiza plena-mente, como Bion descreveu em vários momentos, incluindo o mito de Édipo em “Sobre a arrogância” (Bion, 1957). Uma verdade trágica, que configura uma ética trágica, como assinalou Chuster et al. (2002). Se não podemos conhecer a verdade (O, ou a Realidade Última ou a Verdade absoluta, o mistério), podemos imaginar como ela seria se tivéssemos acesso a ela. Esse é o papel do poeta: aproximar-nos daquilo que não podemos conhecer, mas que podemos pensá-lo, imaginá-lo, intuí-lo.

Na narrativa mítica da Odisseia, que agora nos ocupa, o mar tem um lugar fundamental, representando suas intempéries e criaturas ameaçadoras, pela violência ou pelo canto sedutor, perigos fantásticos, pondo à prova a habilidade, a força, a inteligência, a paciência (Bion, 1970) e a perseverança do herói (F). O mar, eterna metáfora dos perigos de nossas viagens para dentro e para fora de nós, tão presente no mito de Palinurus. A Odisseia é a viagem de alguém, Odisseu, uma viagem que leva a sua marca, a marca que é de todos nós. A Odisseia, um trajeto não linear, uma demora de 10 anos (o tempo de uma análise?) com peripécias, seduções, ameaças, encantamentos, violências, para finalmente (?) voltar à casa, ao lugar de onde se partiu, mas também nos partimos ao sairmos para conhecer, viver, enfrentar o mundo estrangeiro em nós e nos outros. A casa não será a mesma. O re-conhecimento não será completo. Não será uma volta e sim uma re-volta. A casa também se faz estrangeira. Odisseu será estrangeiro em sua própria casa, como somos e seremos todos em nossa condição de estrangeiros em nossas próprias casas, em nossas próprias mentes. A busca interminável de si mesmo, algo que experimentamos quando, como analistas/analisandos, empreendemos nossas viagens de voltas, muitas voltas, re-voltas, para não chegarmos jamais aonde o porto nos partiu e o parto nos pariu. O umbigo do mito, parafraseando Freud com seu umbigo do sonho, o inalcançável do sonho. Pontalis (2005a) dizia que o sonho é uma tentativa de retorno ao início, ao corpo da mãe, o reencontro impossível do impossível, ao fim e ao começo de tudo ou de quase nada. A viagem é infinita enquanto dura. Essa volta re-voltada é o que nos faz seguir a viagem, onde os novos portos são lugares de repouso, de medos, de ameaças ou de vozes sedutoras, antes que novas cesuras nos desafiem.

Evolve é rodar, dar voltas, volvo, volver, como os pneus/rodas de um carro. Bion usa evolve e não evolution para falar de O e suas transformações (Sandler, 2013). O retorno à Ítaca é um re-tornar, um constante voltar-se a si mesmo, em que cada volta nunca será a mesma. A volta a cada sessão de análise, a cada análise, a cada momento de cada sessão, nunca é a mesma, assim como não se entra no mesmo rio cada vez que entramos (Heráclito). Bion enfatiza a importância dessas noções ao chamar a atenção para a importância do trabalho sem memória, sem desejo, sem necessidade de compreensão. O modelo espectral de Bion é, como veremos depois, um modelo de desenvolvimento de complexidade para cada vez mais complexidade e se contrapõe tanto a um modelo estrutural como a um modelo evolutivo, um modelo com forte componente de moralidade, um modelo de idas sem re-voltas ou apenas de progressos e regressões, não de regressos. Positivismos…

O fato selecionado (Bion, 1962a) permite a Odisseu sair por momentos da turbulência, do caos, das ameaças e encontrar calmarias que logo se transformam em novas tempestades. A viagem se interrompe momentaneamente, se desfruta de momentos de segurança e, logo, temos que seguir nessa viagem de encontros e desencontros (PS↔D). A capacidade negativa (Keats, citado por Bion, 1970) é nosso timoneiro, permitindo-nos tolerar as incertezas, meias - verdades e mistérios sem uma procura ativa de explicações ou do fato e razão até que alguma musa nos inspire no encontro sempre transitório de um novo estar - sendo.

Ao Hades vai Odisseu para se aconselhar com Tirésias antes de uma nova tentativa de retorno. Nos grandes mitos gregos os mortos e os vivos, os deuses e os homens, têm relações muito próximas. Deuses e homens são componentes de diversas famílias. Os mortos falam com vivos e vice-versa. Mas não é isso que ocorre em nossos sonhos? As cesuras entre vida e morte entre deuses e homens são constantemente atravessadas nos mitos e sonhos e, também, nas análises. Os mortos e os deuses não configuram opostos de vivos e homens, e, sim, objetos internos inspiradores e guias de nossa interminável busca de nós mesmos.

Como vimos, quando falamos de Odisseu e sua odisseia falamos de Fé, uma esperança de reencontro de algo que nunca será o que foi e nunca será o que será. As crenças e a expectativas não se sujeitam a isso e acreditam piamente que algo sempre será o que foi e sempre será o que será. Mas, a viagem de volta, o eterno re-torno, é também uma re-conciliação, uma reparação, um perdão, com o que foi e com o que é. Esses são os diferentes sentidos que a palavra atonoment possui na língua inglesa (atonoment day = dia do perdão). A re-conciliação, estar em uníssono com O, at-one-ment (Bion, 1970). A viagem nos mitos e sonhos é quase sempre um re-voltar para um futuro, mesmo que tenhamos que, para isso, re-voltar-nos a um passado. A viagem da psicanálise também, como a viagem da vida.

Em cada sessão estamos começando uma nova viagem, não sabemos como irá começar e nem terminar, nem os monstros violentos que veremos nem os cantos sedutores que escutaremos. Cada viagem, de cada sessão, é uma primeira vez. Não sabemos com quem viajaremos, qual eu de mim e do outro encontraremos, não sabemos se voltaremos. Essa Odisseia é única, irrepetível. A viagem será muito mais arriscada, mas será, também, muito mais verdadeira.

Turbulências

Parece-me que os poucos livros que pude escrever são somente passos incertos que me conduzem alternativamente de uma margem a outra sem que eu queira permanecer em nenhuma. Rechaço de estar destinado a uma residência, rechaço das oposições definidas… Quantas vezes me fizeram notar que a palavra entre figurava nos títulos e capítulos de meus livros a tal ponto de fazer de mim “um especialista do entre-dois”! Não sabem que se desgraçadamente eu fosse o “especialista” do entre, cessaria imediatamente de me produzir prazer… Poderia ser que passar livremente de uma margem a outra, cruzando as pontes ou, melhor ainda, as passarelas como a da Pont des Arts, vagando daqui para lá sem permanecer ligado a um ponto fixo, me assegure de que não há ida sem volta e que toda travessia se efetua nos dois sentidos. (Pontalis, 2007, p. 106)

O não-conceito de O, postulado por Bion, trouxe implicações para a psicanálise que muitos conceitos claros e distintos jamais alcançaram. Esse é um paradoxo que é levado por Bion às suas últimas consequências. Uso o termo “últimas” no sentido de uma radicalidade onde a própria raiz é indecidível. Raiz rizomática. Um não conceito re-volucionário que transforma a psicanálise numa busca do ser o que se é sem que jamais isso possa ser alcançado. Apenas esboçado, aproximado, sem-tido, vir-a-sendo.

A conjetura de Bion (1962b, 2015) de um pensamento sem pensador produz uma ruptura com certo ranço epistemológico dominante nas obras de muitos dos que o antecederam e de muitos que vieram depois. O mistério é considerado não mais a dimensão do desconhecido, mas, sim, do desconhecível, daquilo que não é objeto do conhecimento. Um pensamento sem pensador que nunca será plenamente pensado, um pensamento selvagem que nunca se deixará domesticar completamente. É um caminho a percorrer sem chegadas tranquilizadoras. O caminho se faz ao andar, como disse o poeta Antonio Machado e como, com outra forma, nos legou Eduardo Galeano com sua pergunta sobre qual o sentido das utopias já que, se caminhamos em direção ao horizonte, esse irá se afastar na mesma proporção em que dele tentamos nos aproximar. Então? Para que servem as utopias? Para isso, diz nosso autor, para caminhar… Para navegar disseram outros, como o próprio Homero.

A grande viagem em busca de nós mesmos é apenas, e nada mais nem nada menos, uma incerteza, uma dúvida, um circular que se expande. Um O. Como disse o próprio Bion, no começo de uma análise sabemos de nós muito mais do que saberemos ao final. Essa afirmação um tanto desalentadora, possui uma potente verdade psico-lógica: é que no transcorrer de uma análise, quanto mais sabemos de nós mesmos, as perguntas tendem a aumentar de forma exponencial em relação às respostas que obtemos. Quais são os objetivos dessa caminhada chamada análise? Chegar a algum lugar? A que lugar chegou Bion ao final de sua análise? Dizem que chegou a uma pergunta e Melanie Klein respondeu-lhe com a (não) resposta a que o próprio Bion havia chegado: depois de tudo, Sra. Klein, o que é a psicanálise? A (não) resposta teria sido: como o Sr. diz, Dr. Bion, é uma pré-concepção em busca de uma realização. Como mais tarde irá dizer o próprio Bion, “psicanálise é uma palavra em busca de um significado; um pensamento esperando por um pensador; o conceito aguardando por um conteúdo” (Bion, 1977a, p. 323).

Se tentarmos, nessa caminhada, aproximar-nos a O, teríamos que, além de carregar o menor peso possível, ou seja, sem memória, desejo e necessidade de compreensão, levar também uma boa dose de capacidade negativa e um razoável ato de Fé sem data de vencimento muito próxima. Essas condições para a caminha da nos ajudarão em momentos de ventanias, chuvas e sol inclemente. A viagem, nessas condições, será uma viagem ética, pois, demanda uma complexidade multi-direcional e multi-dimensional. Estamos falando aqui de paradoxos, de acordos transitórios e frágeis. A transitoriedade da ética complexa se enfrenta com a fixidez da ética simples ou moral. Essa diferença, profundamente trabalhada por Morin e por Bion, na psicanálise, influenciará o peso da caminhada. A preocupação moral é com os pares certo/errado, superior/inferior etc. A moralidade implica uma posse da verdade, alguém a possui, ela tem donos, construtores de crenças, shibboleths. É indissociável da causalidade. Está baseada em comparações, em modelos evolutivos, embriões de fanatismos, preconceitos e sofrimentos sem fim. A ética complexa trabalha com o vértice das diferenças, com a incomensurabilidade, com a incerteza, com a indecidibilidade, com os modelos espectrais, com as cesuras, com as simetrias heterogêneas (Trachtenberg, 2022a, 2022b, 2022c, 2022d).

Com esses elementos em conta, podemos agora tratar de estabelecer as dimensões que nos aproximam de um estado mental que propicia uma Odisseia em direção a O e estabelecer aquelas que dificultam essa viagem. Ambas estão presentes no animal humano, fazem parte de sua humanidade. Quando digo dificultam, quero dizer que temos necessidades humanas de interromper a re-volta em diferentes momentos, por diferentes motivos. A moral e a ética fazem parte do humano, assim como a crença e a fé, o fanatismo e a complexidade, a maldade e solidariedade etc. São simetrias heterogêneas.

Futuro ↔ Passado

Fé (futuro) ↔ Crença (passado)

Utopia ↔ Ideologia

Responsabilidade ↔ Culpa

Deidade/Divino ↔ Deus

Deus de Spinoza/causa-de-si ↔ Deus de Leibniz/causa-de-ser

Intuição ↔ Conceito

Conjeturas imaginativas ↔ Conjeturas racionais

Imaginação ↔ Fantasia inconsciente

Esperança ↔ Expectativa

Reparação ↔ Restauração

Ser ↔ Conhecer

Ser ↔ Ter

Estar sendo ↔ Ser

Multi-dimensionalidade ↔ Identidade

Sem memória, sem desejo, sem necessidade de compreensão (identidade complexa ou em trânsito) ↔ Com memória, com desejo, com necessidade de compreensão

(identidade simples ou fixa)

Mistério ↔ Enigma/Segredo

Gerúndio/Presente (verbo em movimento) ↔ Passado/Futuro (verbo imobilizado)

Ser sonhado (dimensão onírica) ↔ Ter um sonho (dimensão alucinatória /possessiva)

Indecidibilidade (da origem) ↔ Causalidade

Aleatoriedade ↔ Determinismo

Inédito/Não representado ↔ Representado/Irrepresentável

Pensamento sem pensador ↔ Pensamento com pensador

Pensamento selvagem ↔ Pensamento domesticado

Paciência ↔ Segurança

PS ↔ D

Parte psicótica ↔ Parte não-psicótica

Função psicanalítica da personalidade ↔ Psicanalista

Linguagem de achievement ↔ Linguagem de substituição

Capacidade negativa ↔ Capacidade positiva

Cesuras (barreira de contato, fato selecionado, transformações e invariantes) ↔

Shibboleths

Pré-concepção ↔ Saturação/concepção

Linguagem ↔ Palavra O ↔ K

Os signos bidirecionais (↔) referem-se ao movimento entre os polos de um espectro. É a expressão de uma cesura operando. A ausência ou diminuição relevante do trânsito entre eles produz uma tendência a essa situação que denominei shibboleth (Trachtenberg, 1998, 2005, 2008, 2012, 2013a, 2013b, 2017a, 2017b, 2018, 2019, 2022a, 2022b, 2022c, 2022d). Movimento entre tem um significado específico num modelo espectral. O entre é um espaço de passagem, como uma fronteira, uma ponte, um vínculo. Como vimos, vínculo, relação, são termos que aparecem como sinônimos de cesura no texto que leva esse nome. Esse detalhe é importante, pois, em Cogitations (Bion,1992), Bion cita Martin Buber referindo-se ao seu livro Eu e tu: não existe uma palavra única, toda palavra é um par de palavras. O que importa é a Relação (-), não os elementos (objetos) relacionados. Nesse contexto, Bion, inspirado em Buber, se refere ao par desamparo ↔ onipotência:

Uma das fraquezas da linguagem articulada é demonstrada ao se usar um termo como “onipotência” para descrever uma situação que, de fato, não pode ser descrita de modo totalmente preciso apenas através de um tipo de linguagem. “Onipotência” deve sempre significar também “desamparo”; não pode haver nenhuma palavra isolada que descreva uma coisa sem descrever também a sua recíproca. (Bion, 1992, p. 382)

O casal de palavras nos estimula a pensar no que aparece e, também, no que não aparece. Se um dos elementos do par predomina excessivamente temos a tendência a fazer diagnósticos, quase sempre reducionistas (“o paciente é onipotente”, por exemplo). O divórcio do casal de palavras reduz a complexidade (todo casal é complexo…) a uma formulação simples, solitária, isolada. Incluo entre os diagnósticos toda e qualquer identidade fixa e reducionista, até mesmo o diag nóstico de psicanalista, ou pessoa ética ou honesta ou assassina. Nietzsche usava o conceito de moralina de redução para referir-se a isso (Morin, 2005). Morin usa a noção de ética simples (2005). Arendt (1971, 2012) falava de moralidade. Ninguém é só isso, pois o Isso nunca é só isso.

Nos modelos hiper estruturalistas e nos modelos evolutivos, essa forma de lidar com as diferenças não acontece. No primeiro caso temos quase sempre a ausência de invariantes, de continuidades e, no segundo, temos uma unidirecionalidade em que posicionamos à direita do texto, ou do diagrama, aquilo que o pensamento evolutivo postula como progresso, superioridade etc. A escolha do que fica à esquerda do diagrama (seja a clássica ilustração do modelo de Darwin, do macaco que vai ficando bípede até alcançar o homo sapiens ou o “progresso” da criança até se transformar em um adulto) é francamente ideológica. Ideologia que põe à esquerda os seres humanos que aqui viviam antes de serem “descobertos” pelos assim chamados descobridores que ocupariam, então, o lugar destinado ao progresso e aos que vieram “humanizar” os chamados “primitivos”. Essa divisão entre primitivos e evoluídos ou civilizados é questionada pela antropologia atual devido à forte impregnação de moralidade e ideologia presente nessa concepção (Goody, 2012). Bion já alertava em Taming Wild Thoughts (2015) sobre o perigo de desconectar-nos de nossas heranças animais. Ou, também, nos desconectarmos do infantil sempre presente na mente de um adulto. Ou, como analistas, nos desconectarmos do analisando que seguimos sendo enquanto seguimos sendo psicanalistas. A ideia evolutiva de progressão (um grande progresso?), sempre presente nas instituições, sejam as de psicanalistas ou outras quaisquer, não deveria nos fazer esquecer que, seja o estágio evolutivo institucional que for, seguimos sendo o que somos e não superiores ou inferiores em relação a outros. Nessas horas é bom reler o texto “Megalomania”, de Money-Kyrle (1965), em especial quando se refere ao poder que adquirimos alucinando que as “vestes” institucionais (uniformes militares, vestes religiosas, aventais, togas e becas etc.) que usamos nos transformam, automaticamente, em superiores a qualquer outro alguém. A voz que diz que o rei está nu não é escutada. Sejam as instituições que Freud descreveu em “Psicologia das massas” (Freud, 1921/1986b), seja a grande instituição fundada por ele, da qual muitos de nós fazemos parte. O establishment trabalha com outras lógicas e não tolera muito os místicos, os gênios, os portadores das ideias novas, os que partiram e re-voltaram etc. Ao mesmo tempo, o establishment também pode ser um continente para nossos ímpetos re-volucionários, às vezes impulsivos e explosivos, tanto em relação aos paradigmas consolidados como em relação à temporalidade necessária para a “digestão” do nunca pensado. Isso ocorre em qualquer campo, incluindo o campo analítico em que os mecanismos de defesa cumprem essa função. Encontrar um acordo entre as partes, com “perdas e danos” mútuos, mas, toleráveis, é uma arte.

A diferença entre Divino e Deus, ou entre F e Crença, não é muito distante da diferença entre Psicanálise e Psicanalista ou entre Pensamento sem pensador e Pensamento com pensador. Mas, como diz Kant, tantas vezes citado por Bion, conceito sem intuição é vazio, intuição sem conceito é cega. Temos aqui um modelo espectral kantiano. Ou seja, nenhum termo dessas conjunções (importante o uso do e em lugar do ou) é melhor ou pior que o outro. O positivo e o negativo podem adquirir sentido moral ou ético. Números positivos e negativos não são melhores ou piores, assim como as transferências positivas ou negativas.

Tampouco penso em evolução de parte psicótica em direção à parte não psicótica. Bion jamais mencionou isso. Sigo a Bion quando coloco a parte psicótica numa relação/vínculo/cesura com a parte não psicótica. A parte psicótica é importante nas possibilidades de intuições (Trachtenberg, 2022a). A capacidade de penetrar na mente do outro e detectar seus pensamentos ainda não pensados é característico da dimensão psicótica da mente que denominei de paranoia instrumental (Trachtenberg, 2022a). Se existe uma cesura balanceada entre partes psicóticas e não psicóticas, a intrusão se transforma em intuição. O predomínio ostensivo e defensivo da parte não psicótica em relação à parte psicótica produz aquilo que Bion denominou uma séria patologia chamada de normalidade (Trachtenberg, 2022a)

Como diz Arnaldo Chuster (2021), a perplexidade é uma consequência do nascimento, da passagem por uma cesura. Quando é possível usar nessa passagem a intuição e a imaginação, há uma acolhida da perplexidade da experiência. Uma cesura, diz Arnaldo, fala de relações de identidade e diferença entre as dimensões “dentro” e “fora” simetricamente dispostas em um espectro de possibilidades, que inclui continente e conteúdo, ir e vir, luz e sombra, vigília e sono, antes e depois, e assim por diante. São estados mentais que se relacionam em interminável complexidade: “A cesura é uma entidade fantasmática infinitamente plástica cuja existência depende da interpretação de elementos simbólicos fornecida pelas transformações em curso na mente do observador” (Chuster, 2021, p.128).

No poema “A estrada não trilhada” (Frost, 1980), a escolha da estrada não trilhada pela maioria inclui uma aposta (Morin 2005), uma ética, pois, a decisão implica um luto, a convivência também com aquela, ou aquelas, que não foi/ foram escolhida(s) e isso, por sua vez, implica uma responsabilidade, característica de uma ética complexa. Muitas vezes não se pode voltar atrás, mas, se pode aprender da experiência e re-voltar atrás, ou seja, optar por outras estradas com a experiência adquirida na travessia daquela que foi escolhida previamente.

Trilogias

Não deveríamos considerar-nos como sendo apenas historiadores das conquistas passadas da psicanálise. Ainda não estamos mortos e não há necessidade de gastarmos nosso tempo comparecendo aos nossos próprios funerais. Não acho nada interessante ficar rendendo perpétuas graças aos obséquios da psicanálise; gostaria também de comparecer a um de seus muitos re-nascimentos. (Bion, 1978-1980, p. 200)

Re-voltando agora à Cesura, ao vínculo, a Buber e Bion. No conto Famigerado, de Guimarães Rosa (1969), nos encontramos com a perplexidade na cesura do nascimento de uma palavra. Vou recordar a história através da quase -memória que tenho dela, interferida pelo tempo de minha leitura e por muitas outras leituras de outros. Não ponho aspas por esse motivo. Famigerado, palavra usada por alguém no início do conto para se referir ao líder de um grupo de jagunços do sertão mineiro, produziu nesse último um sentimento de perplexidade. A dúvida de se era uma palavra de se ofender gera a fome de saber sobre essa palavra. Entre curioso e desconfiado, ele leva o seu grupo até a fazenda do doutor das palavras, aquele que poderá desvendar o enigma. O narrador, que desde outro vértice é Guimarães Rosa e que, desde mais outro, é o doutor das palavras, são diferentes dimensões de uma identidade complexa, por isso, separadas/vinculadas (Bion, Myself, P. A.?). O doutor das palavras inclui ainda a identidade médica de Guimarães Rosa. Este, agora narrador, mostra-se amedrontado, ameaçado pela reação violenta do jagunço se ele disser a verdade sobre o significado de famigerado. Depois de certo tempo de hesitações e cogitações, o doutor das palavras assume seu posto e diz: Sim, é uma palavra que não é de se ofender, famigerado é uma pessoa famosa. O jagunço, satisfeito com a resposta, retoma com seu grupo o seu caminho na estrada. Por que Guimarães Rosa escreveria um conto com esse final? Onde ficou a perplexidade? Pareceu-me, quando o li pela primeira vez, que algo estava faltando, me produzia uma calma incômoda. Como se esse lugar de chegada poderia ser um novo lugar de partida e que nova perplexidade poderia estar por vir. Decidi olhar no dicionário o significado da palavra famigerado e me encontrei com o comentário de que na sua origem a palavra significava alguém que gera fama, pessoa célebre, fami-gerado, sem conotação moral (bom ou mau). Sentindo-me uma espécie de decifrador de enigmas, dei-me conta que o jogo do narrador/doutor das palavras/Guimarães Rosa havia resgatado do vazio infinito e sem forma a origem semântica da palavra, a palavra em estado de dicionário (um dos grandes sonhos de Rosa era escrever um dicionário das palavras criadas ou ressuscitadas e das palavras adormecidas ou sepultadas), a palavra morta, ressuscitada pelo autor do dicionário e pela minha curiosidade e perplexidade. A palavra foi ganhando conotação moral, “má fama”, quando, na sua origem, não a tinha. Como refere Chuster sobre a perplexidade, “trata-se de uma originalidade que é preciso preservar e, até mesmo, voltar a descobrir”. “Tragicamente”, segue Chuster, “muitos autores tentam mandar palavras para o necrotério, mas antes as fazem agonizar. Penso que ali não é o lugar delas, se estiverem agonizantes, precisam ser reavivadas com um choque desfibrilador de perplexidade.” (Chuster, 2021, p. 132). A perplexidade, proposta pelo enigma do autor, produziu uma re-volta de significado, oculto pelo uso, pelos hábitos de linguagem. Temos, então, um retorno à essa Ítaca da linguagem, resgatada do Hades, do antigo que se faz novo, a partir do novo que se fez velho. As palavras também viajam e atravessam cesuras, às vezes impressionantes, entre o antes e o depois e entre o depois e o antes, entre nascimentos e mortes e entre mortes e re-nascimentos. Isso se chama vida ↔ morte, esse conflito, essa viagem que o Homem incessantemente segue fazendo em busca do Mistério que Édipo alucinou ter desvendado. A etimologia pode ser tanto a morte como o desfibrilador da palavra.

A pergunta da esfinge, que Édipo pensou responder, é novamente transformada em pergunta, muitos séculos depois, por Primo Levi: É isto o homem? (Levi, 1947/2000). O Homem da resposta de Édipo é um homem baseado na sensorialidade, numa temporalidade cronológica e não na sua dimensão complexa, indefinida, indecidível, inacessível. A pergunta de Levi é uma pergunta que surge da perplexidade, do espanto, de algo que não pode ser respondido, mas que pode ser imaginado/intuído. A impossibilidade de pensarmos em outro(s) lado(s), como o lado oculto da lua, como denominei em outros trabalhos (Trachtenberg, 2012, 2017a, 2022c, 2022d etc.), nos leva a pensar que Eichmann era um monstro, algo que Arendt (1963) e Derrida (2004) questionam enfaticamente, pois, pensá-lo como um monstro o retira da categoria do humano e nos isenta de pensarmos em nossos próprios monstros. Mais ainda: preserva a tranquilidade de uma ideia moral em detrimento do incômodo de uma ética, sempre complexa. Eliminar os causadores do Mal pode satisfazer a dimensão moral, mas, não satisfaz a dimensão ética. Para essa não temos respostas definidas ou definitivas. A incerteza da pergunta gera mais incertezas e mais perplexidade à medida que continuamos perguntando. Mas, essa é a pergunta fundamental na filosofia, na ciência, na arte, na psicanálise. Vou tratar de repensar a Odisseia a partir dessa pergunta perplexa e complexa de Levi. Os enigmas possuem uma dupla face: por um lado demandam respostas (Esfinge/Édipo), uma solução e, por outro, apresentam uma questão onde a resposta gera muito mais perguntas do que antes havia (Levi, 1947/2000). Nesse último caso, a resposta não mata a pergunta, a multiplica.

A Ilíada e a Odisseia configuram um modelo espectral proposto por Bion (1948) para a psicanálise e extensível para a vida como ela é. Chuster resgatou de algum Hades bioniano o espectro narcisismo ↔ socialismo, em Experiências em grupos (considerada por muitos uma obra pré-psicanalítica do seu autor!), essa ideia prenhe de significados e, por outro lado, tão presente em toda obra de Bion que, de tão iluminada, não conseguíamos enxergá-la. O modelo espectral, ao incluir um terceiro elemento, inicialmente através de um signo, a dupla flecha, se amplia na obra de Bion quando a dupla flecha sígnica se significa com os conceitos de barreira de contato (entre cc e inc, vigília e sonho etc.), fato selecionado (entre PS e D), evolveção (meu neologismo para a tradução de evolve) entre O e K com base no livro Transformações (1965), and the least but not the last, com o conceito de cesura. Sobre a importância da cesura tenho escrito uma série de trabalhos (Trachtenberg, 2005, 2012, 2013a, 2013b, 2017a, 2017b, 2019, 2022a, 2022b, 2022c, 2022d) e, por isso, não vou aprofundar-me demasiado nesse momento. A cesura surge como conceito na poesia em que um verso simultaneamente se interrompe numa linha e se continua na seguinte. A noção fala do par espectral continuidade/descontinuidade. É um dos componentes formais de um poema com propósitos rítmicos e, também, implica a possibilidade de produção de um determinado impacto estético. Continente e conteúdo entrelaçados. O modelo espectral, que anuncia uma complexidade na psicanálise, adquire seu verdadeiro significado com a noção de cesura. Com Morin (2003), inicialmente nas Ciências Sociais, a complexidade se afirma como uma forma de pensar o mundo em que as lógicas simples, binárias, com o aristotélico 3º excluído, se confrontam com as lógicas complexas, ternárias, edípicas, para-consistentes, do 3º incluído. De diferentes campos, vão surgindo uma forma de pensar o humano que irá produzir uma articulação entre esses mesmos campos, sem as classificações separatistas que dominaram nossa visão de mundo. O é deslocado pelo o que está sendo, esse estado mental gerúndico que predomina em qualquer momento desse movimento transitorial e trans-territorial da mente humana. A cesura, como conceito espectral, é o próprio movimento, que agencia a viagem entre os polos de um espectro, sejam esses quais forem. No espectro narcisismo↔social-ismo a cesura, a direção, a dupla flecha tem a função de impedir que ambos sejam excludentes e permitir que a relação entre ambos seja uma relação solidária onde o social possa preservar a singularidade de cada sujeito e o narcisismo possa levar em conta as demandas do social, evitando a violência do outsider em um polo e a violência da massificação no polo oposto.

O modelo espectral Ilíada ↔ Odisseia é um modelo mítico que descreve as viagens (cesuras) que fazemos entre direções diferentes, o que não significa oposições. Essas diferenças expressam simetrias heterogêneas. Essa ideia conecta-se com as já assinaladas referências de Buber sobre Eu-Tu (narcisismo↔ social-ismo), sobre a impossibilidade de que qualquer palavra isolada possa dar significado a algo, afirmando que a unidade básica não é uma palavra isolada e sim um par de palavras, um casal complexo, como qualquer casal. O mesmo ocorre numa relação mãe/bebê, por exemplo. A relação não é simplesmente a de um bebê desamparado e sua mãe que o ampara (assimetria). O que os une, o vínculo, é o desamparo de ambos com diferentes níveis de sofrimento e tolerância. Uma simetria heterogênea. Como diz a filósofa Alejandra Tortorelli (2009), não é a mãe que recebe o seu bebê, é o nascimento que recebe aos dois.

Mas, nesse “casal”, disse Buber, o que importa é a relação, o vínculo, não os objetos relacionados, é a cesura, não os polos do espectro. Uma palavra inclui o seu outro lado e a cesura produz esse movimento que nos permite “ver” (imaginar, intuir) o outro lado mesmo quando o outro lado não pode ser objeto da visão. Ilíada /onipotência e Odisseia/desamparo não poderiam ocorrer separadas uma da outra. O mito é espectral, inclui uma cesura e uma simetria heterogênea. Ambas tentam encontrar a resposta à pergunta de Levi e ambas geram mais perguntas. A cesura é o movimento/viagem que traduz essa perplexidade dos enigmas sem resposta, onde cada chegada produz um aumento das perguntas e deverá ser seguida de uma nova saída em busca do irrespondível.

Então, disse Bion no final do texto “Cesura” (1977a), interpretar a cesura, o vínculo, a sinapse, não a sanidade ou insanidade, não o consciente ou o inconsciente etc. Toda análise é vincular. A relação continente/conteúdo é outra forma de falarmos da análise vincular, pois, não existe uma função sem a função do outro (Bion, 1962a, 1970). O importante é observar “↔”. Mesmo o vínculo parasitário é vincular. Um necessita do outro para a destruição dos três (1+1=0). No vínculo simbiótico um necessita do outro para se manter um (1+1=1) e no vínculo comensal um necessita do outro para produzir um terceiro (1+1=3). A complexidade vincular é composta por três elementos. Bion observou essa característica e usou-a na sua descrição do fenômeno da cesura. A cesura (↔) é o elemento que produz o movimento entre os polos de um espectro e, de alguma, forma, é a expressão de uma ética, uma ética espectral, edípica. Denomino trilogia à presença do modelo espectral, com suas simetrias heterogêneas e cesuras. A trilogia de Isaac Deutscher sobre Trotsky (1968) foi usada por Meltzer como modelo, em Estados sexuais da mente (1973), no capítulo “A revolução permanente das gerações”, para descrever os estados mentais infantis/adolescentes (rebeldia), latentes (conservadorismo) e adultos (revolucionário). O profeta armado, O profeta desarmado e O profeta banido (Deutscher, 1968), se corresponderiam com as obras da Trilogia Tebana de Sófocles, intituladas Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Ou, talvez, também, com a trilogia de Bion (Memória do Futuro): “O sonho”, “O passado apresentado” e “A aurora do esquecimento”. Essas trilogias se corresponderiam, por sua vez, com a trilogia dos vínculos parasitários, simbióticos e comensais das relações continente/conteúdo referidas acima. Deixo a questão em aberto para seguirmos viajando em busca de novas trilogias…

Três odisseias ou a minha trilogia

Minha memória me leva de volta à uma certa tarde, coisa de sessenta anos atrás, à biblioteca de meu pai em Buenos Aires. … Volto àquela tarde sul-ame-ricana já antiga e vejo meu pai. E o vejo neste momento, e ouço sua voz dizendo palavras que eu não compreendia, e, no entanto, sentia. As palavras eram de Keats, de sua “Ode to a nightingale” … Pensava saber tudo sobre palavras, tudo sobre linguagem …, mas aquelas palavras foram uma revelação para mim. Claro, eu não as entendia … Aqueles versos chegaram a mim através de sua música. Eu pensava que a linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de externar queixas, de dizer que se estava feliz ou triste etc. Mas quando escutei os versos aqueles (e os sigo escutando, em certo sentido, desde então), soube que a linguagem poderia ser também música e paixão. E assim me foi revelada a poesia. (Borges, 2000)

A) Re-voltas: Bion, sentindo-se “estabilizado” pelo establishment institucional psicanalítico da Inglaterra, aceita o convite para trabalhar em Los Angeles em 1968. Lá enfrenta diversos perigos, ameaças, rechaços, preconceitos. Fora algum analista que se analisa ou supervisiona com ele, ninguém mais o procura. A partir de uma reportagem jornalística, que mostra a forma como foi recebido pelo establishment psicanalítico californiano, uma série de artistas, em especial atores e atrizes, diretores de cinema e outros trabalhadores da indústria cinematográfica, começam a procurá-lo. O establishment psi havia sido contestado por esse grupo de artistas desde a morte de Marilyn Monroe, analisada de Ralph Greenson, um dos “estabelecidos”. Bion se dedica a muitas viagens nesses anos californianos, tanto à Europa, como à América do Sul (Buenos Aires em 1968 e São Paulo, Rio, Brasília, nos anos 1970). Nessas odisseias, seu pensamento também viaja e se observa um trabalho mais livre de sua mente, mais liberada de preocupações institucionais e conceituais. Seu pensamento viaja como um turista acidental que observa e conhece lugares, sem necessidade de contar com guias que o orientem. Se deixa levar pelo vento, mas, não se importa de caminhar contra ele, como, aliás, nunca se importou demasiado. Um pouco mais de 10 anos (1979) decide re-voltar à Inglaterra, a Oxford, onde Donald Meltzer já estava trabalhando. Antes de estabelecer-se de forma mais definida, decide viajar à sua mítica Índia e voltar/ re-voltar a esse país onde havia nascido e saído há quase 75 anos, com apenas 8 anos de idade, viagem que o marcou profundamente e para todo o sempre. A leucemia impede esse último sonho e morre poucos meses depois de seu retorno à Inglaterra. O que o Odisseu/Bion buscava nessa re-volta? O que buscamos em nossas odisseias? O que essa viagem significava para ele? Poderemos apenas sonhar o nosso próprio sonho e, assim, falaríamos mais do nosso do que do dele… Não incluo aqui outras peripécias, como suas Ilíadas (guerras), seu Hades (suas mortes em si próprio, as mortes da guerra, de sua primeira esposa etc.), suas análises viajantes com J. Rickman e com M. Klein, as inúmeras viagens de seus pensamentos que encontraram nele um pensador destemido e perplexo, a Grande Viagem da Trilogia que, para muitos, foi apenas “uma grande viagem” etc.

B) Atonoment: Quando fui para Buenos Aires em busca da psicanálise, no início dos tormentosos anos 1970, parti num rabo de foguete como se fosse um exilado, não suportando externa e internamente as guerras que me assolavam desde fora/dentro de mim. Dizia que era um exílio voluntário. Mas existem exílios voluntários? Dei o nome de formação psicanalítica a essa guerra dentro de mim, numa espécie de acordo frágil entre meus medos de enfrentar esses mares bravios, as minhas tempestades e tormentas e o desejo profundo de enfrentá-los. Mas, além disso, outras viagens já haviam ocorrido. Meu bisavô Jacob havia chegado ao porto de Buenos Aires no final do século 19, acompanhado de sua esposa e de seus cinco filhos. Por motivos que ficaram como uma espécie de segredo familiar, nunca comentado, um desses filhos ainda adolescente decide ir embora da casa paterna levando o violino da família. Viaja para o Brasil, se instalando em Porto Alegre. Boris, meu avô, sobrevive tocando “seu” violino em casamentos e nos cinemas em que músicos acompanhavam as cenas mudas dos filmes de então. A ausência de palavras trocadas com sua família durante uns 40 anos levou meu pai, Samuel, seu filho mais velho, a viajar e buscar contato com o restante da família em Buenos Aires. O contato se fez, inúmeras viagens foram feitas num ir e vir pela ponte imaginária que surgiu entre as duas cidades, entre o antes e o depois. As fronteiras, as cesuras, mantinham o movimento. Quando decido ir para o tal exílio voluntario, invertendo a flecha do tempo, eu, o filho mais velho de Samuel, estaria indo ou voltando? Ou estaria re-voltando? A minha Odisseia a senti como a busca de uma terra prometida (minha Ítaca?), à qual, como soube mais tarde, nunca se chega completamente e da qual tampouco se volta completamente. No momento de meu retorno me dei conta que voltava a um lugar que também não era o mesmo, mesmo chamando-o pelo mesmo nome. Em mi Buenos Aires querido e ferido deixei minha prima Edy, “desaparecida” nas águas lôbregas, escuras e profundas do rio da Prata. Tínhamos a mesma idade e uma amizade que foi se construindo durante muitas viagens anteriores ao meu “exílio”. Foi jogada nesse Hades portenho de um helicóptero, depois de infindáveis e terríveis torturas. Ela foi uma das muitas pessoas “desaparecidas” jogadas nesse rio da morte e que me deixou a função de poeta sacro para cantá-la, como a minha Agamenon, nesses pobres versos de minha Odisseia. Edy não ficará sem nome, como ficaram muitos dos guerreiros e marinheiros das viagens de Odisseu, desaparecidos, incógnitos, anônimos, nos mares revoltos das Odisseias de todos nós. Essa re-volta, essa viagem, é dedicada a ela, Edith Trajtenberg.

C) Re-nascimentos: A Sra. C., uma mulher que se aproximava de seus 50 anos de idade, mãe de quatro filhas mulheres, me procura para analisar-se devido a uma importante crise matrimonial e pelas intensas dores narcísicas que lhe produziram a entrada na menopausa. Os conflitos analisados e os lutos tolerados lhe permitiram um enriquecimento e uma revitalização como pessoa. Devido ao aprender da experiência emocional conseguiu retomar atividades artísticas (era pianista) das quais se havia afastado havia muitos anos. A relação com os pais, ambos falecidos há muitos anos, havia obedecido a um padrão rigidamente estabelecido. Com o pai, açougueiro de profissão, havia mantido um contato muito distante, pelo rechaço da Sra. C. a “seus modos pouco refinados, suas roupas rasgadas, sujas e fedorentas” e suas escassas ambições intelectuais ou culturais. Por outro lado, a mãe, à qual recordava muito doente, sempre deitada na cama desde a adolescência da paciente, aparecia não só como uma pessoa muito idealizada (por sus dotes artísticos e culturais), mas, também, muito idealizadora da beleza e superioridade intelectual da única filha mulher entre três filhos homens. Muito próxima do final de sua análise, trouxe o seguinte sonho:

Minha mãe me leva num carro a um parque de diversões. Algo muito raro, já que não só ela jamais havia dirigido, como, também, nunca fui a um parque de diversões porque era meu pai a única pessoa que poderia levar-me e eu tinha vergonha e rechaço de sair em sua companhia. Quando entro na sala dos espelhos me dou conta de que não são como os espelhos habituais dos parques de diversões: em lugar de distorcer as imagens, refletiam exatamente o que cada um mostrava. Ao olhar-me vejo que está meu marido, ao meu lado, muito próximo de mim; de repente, vejo que é tu que, muito devagar, vais te deslocando em minha direção, até que, pelo meu lado, desapareces dentro de mim. Nesse momento mesmo em que não te vejo mais, me dou conta de que estou grávida e que, com toda a certeza, é um menino. Sou invadida por uma grande alegria e emoção. Me dirijo para a saída onde há muito tempo me espera meu pai. Muito contente, me aproximo para lhe dar a boa nova e ele, com um sorriso, me diz: Não te disse que tudo ia terminar bem?

O ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro

Viagens extraordinárias entre velhos conhecimentos e novos desconhecimentos. Passagem de ida e volta como viajantes que retornam às suas cidades e as veem com outros olhos exatamente porque partiram. Re-tornando ao estilo de um après-coup, re-significando cidades freudianas, re-voltando e não simplesmente voltando, para ver o não visto com as novas lentes trazidas na bagagem.

Novamente abastecidos, novas cidades desconhecidas e novos re-conhecimentos de velhas cidades. Em cada viagem olhando cuidadosamente, não como estrangeiro observador não participante ou turista acidental, mas permanecendo o tempo suficiente para entender suas esquinas, seus cantos recônditos, seus recantos, sua voz, seu canto, seus cheiros. Cidades que nos encantarão mais que outras apenas porque, quem sabe, ali chegamos num belo dia primaveril ou por algum sabor esquecido da infância que, sem querer, reencontramos.

Como Freud, viajante incansável, transportador de metáforas viajeiras. Esse mesmo Freud com seus medos e angústias em cada saída para o desconhecido. Caminhante infatigável, haciendo caminos al andar, modelo de todos aqueles que seguiram seu modelo, não seus passos. História sem fim em que, em lugar de uma mera repetição dos achados freudianos, deveremos no máximo seguir sua condição de explorador de vastas emoções e pensamentos imperfeitos, recordando-nos que tradere é a raiz comum de tradição e traição. Se não, cada qual se sentindo o melhor leitor da palavra soberana do Mestre, assinalará, desse lugar, a heresia. Lugar onde o anátema substitui a controvérsia, lugar de verdade sagrada e unitária. “Desconstruir as certezas e restituir a precariedade e a escuridão das origens é um ponto nodal da operação inventada por Freud” (Viñar, 1997).

Aspas abrindo passagem para os que nos antecederam, protegendo nossa criatividade da falácia da originalidade des-paternizada (citações), hífens desconstruindo palavras consolidadas para a descoberta de significados potenciais que ali estavam escondidos, à espera de que viéssemos resgatá-los de seus silêncios (ex-citações). Ditos e inter-ditos. Discípulos rompendo com mestres para mestres tornarem-se de outros discípulos que novamente mestres se tornarão. Luzes iluministas brilhantes, cegando-nos com sua intensa luminosidade, que devem ser apagadas para enxergarmos, em meio à escuridão da noite, estrelas longínquas e faiscantes que nos falam de mundos desconhecidos, suportando a impossibilidade da decifração do mistério, abandonando a ilusão verdadista (fanática) da total transparência. Poetas geniais protegidos da loucura por anônimos carteiros, levando e trazendo notícias mundanas em cartas que jamais abrirão.

Bion referiu-se inúmeras vezes aos versos de Horácio (Ode IX, Livro 4): Muitos heróis viveram antes de Agamenon, mas todos estão oprimidos debaixo da terra, esquecidos para sempre, sem que ninguém os chore, sem que ninguém os glorifique, porque lhes faltou, para cantá-los, um poeta inspirado pelos deuses. Muitos homens valentes foram sepultados pela negra noite antes que Homero imortalizasse a Agamenon. Se a psicanálise não estimula o grupo psicanalítico a desenvolver a possibilidade de experimentar e jogar com formulações criativas que resgatem o ainda não-nascido, reanimem o desvitalizado e transgridam o condecorado de todos nós, muitos pensamentos heroicos permanecerão enterrados e esquecidos no poço sem fim dos tempos, sem nenhum psicanalista para cantá-los.

Quando Édipo se supõe o salvador da peste de Tebas, ao desvendar o enigma da esfinge, não percebe, por sua arrogância, que vai trazer una peste muito mais terrível que a anterior (Schüler, 2003/2004). Não se questiona se a peste não é, em si-mesma, um produto dos intentos de desvendamento do enigma, mais que do enigma não desvendado. A pergunta da esfinge pega os homens em sua intolerância aos enigmas não desvendados e Édipo responde o irrespondível ao afirmar que sabe, que sabe o que é o Homem. Somente mais tarde poderá reconhecer, com intensas dores, que ao decifrar o enigma, foi ele o devorado: decifra-me e te devoro. É neste contexto que a frase de Blanchot3 se faz mais significativa. Não “vê” as diferenças geracionais em alguém que poderia ser seu pai, como no encontro no desfiladeiro, onde somente um poderia passar, e tampouco as vê em alguém que poderia ser sua mãe, quando a faz sua esposa. Édipo pré-complexo.4

Cego, como Milton, Borges ou Freud em sua cegueira artificial, o Édipo complexo parte para o exílio, para terras desconhecidas, nada mais que prometidas, colocando em cena a tragédia do homem que escapa ou é expulsado, segundo o ponto de vista (Meltzer, 1988), cruzando “impressionantes” cesuras para enfrentar-se com o enigma do mundo. Agora Édipo faz as perguntas em lugar de respondê-las, restabelecendo o enigma. Se faz socraticamente sábio, estrangeiro em relação ao saber, um cego que olha nas profundidades e crê (Melville, citado por Meltzer, 1988), reconhecendo seus limites, o Limite. Renuncia às interpretações, apenas alude.5 Se dá conta de que agora o enigma está nele, ele é o enigma e desvelar-se é a morte. Como os poetas, não decifra o enigma e sim conduz ao homem em sua direção (Schüler, 2003/2004).

O Édipo complexo, como o espírito revolucionário de Meltzer,

Tende… a olhar para a frente com alegria, para a vinda da nova geração para a qual poderá passar a responsabilidade pelo mundo, enquanto se volta para a introspecção e para a busca da sabedoria. Sabe que todas as suas realizações serão varridas pela história e parecerão fracas em retrospecto, e que sem dúvida levantou muito mais problemas do que resolveu. Resigna-se a uma revolução permanente, não somente em julho e em outubro, mas em todos os dias. (Meltzer, 1973, pp. 175-176)

E, como quase nos disse Bion, dessa guerra apaixonante não podemos nos liberar jamais.6

3 A resposta é a morte (ou a doença ou a desgraça) da pergunta.

4 O termo pré-complexo não é uma realização adequada do que desejo expressar. Devemos aceitá-lo desde a perspectiva da indecidibilidade da origem já que o modelo espectral não comporta um antes e um depois com significado evolutivo. Passado e futuro são bi-direcionais.

5 “Quando eu era jovem, acreditava na expressão … Eu queria expressar tudo … Agora cheguei à conclusão … de que não creio mais na expressão: creio somente na alusão. Creio que podemos nada mais que aludir, podemos somente tentar fazer que o leitor imagine” (Borges, 2000). Desde outro vértice, Meltzer (1996) diz que o modo de intervenção bioniano está caracterizado por uma mudança de um modelo explicativo para um modelo descritivo. A chave estaria no princípio da incerteza e na capacidade negativa: “Não temos nada a oferecer a nossos pacientes, sob a forma de interpretaçóes, que não sejam opiniões”. Postula, também, que o termo interpretação debe ser substituido pelo termo opinião ou descrição.

6“From that warfare there is no release” (Bion, 1979).

Referencias

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Artigo elaborado com base no lançamento da Ide, 44(73), em 2022.

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