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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo July/Dec. 2022  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.09 

2022: Uma odisseia antropofágica

DESCONFINAR A DOR DE RUPTURAS TRÁGICAS A ODISSEIAS DE LUTO

Deconfine the pain: From tragic ruptures to grief odysseys

Carolina Scoz1 

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBP Campinas). Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, onde sou filiada ao LEM - Laboratório de Estudos da Morte. Coordeno, na SBP Campinas, a atividade Literatura e Psicanálise, na companhia de Cláudia Antonelli, a quem agradeço pelo debate em torno do presente trabalho. À Martha Prada e Silva devo as cogitações que levaram um esboço de ideias até a versão final do artigo. Campinas

1Universidade de São Paulo. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas


Resumo

O presente ensaio põe sob foco os desafios emocionais impostos sobre aqueles que sofreram graves perdas durante a recente pandemia de coronavírus e que, devido às restrições ao convívio social, encontraram menos chances de rememoração e elaboração, ambas experiências profundamente intersubjetivas. Recorreu-se a excertos da literatura ficcional para ilustrar o papel fundamental dos laços afetivos no contínuo trabalho do luto, sobretudo quando as circunstâncias vigentes favorecem alienação e banalização da morte.

Palavras-chave: isolamento; depressão reativa; melancolia; trabalho do luto; laços sociais

Abstract

This essay brings into focus the emotional challenges imposed on those who have suffered deep losses during the recent coronavirus pandemic and that, due to restrictions to social connections, have been given lower chances of remembering and elaboration, two profoundly intersubjective experiences. Fictional literature excerpts have been used to illustrate the fundamental role of social bonds in working through grief, particularly when the present circumstances favour the alienation and banalization of death.

Keywords: isolation; reactive depression; melancholy; mourning; social bonds

Brevíssima parábola

Um corpo desencantado, é o que dizem.

Inerte. Vazio de preces, Incapaz de todas as súplicas.

Uma ficção, um fragmento.

Sem vida. Menos.

(Margaret Atwood)2

O afogado mais bonito do mundo” (2014) é um conto do escritor colombiano Gabriel García Márquez, provavelmente uma das narrativas fantásticas que ouviu de seus avós de Aracataca com quem viveu durante toda a infância.

Numa manhã como outra qualquer naquele minúsculo vilarejo de pescadores, meninos encontram um corpo na areia da praia. Não tem mais vida, logo descobrem. Acostumados a ver de perto a morte de pessoas e animais, os meninos brincam com o corpo agigantado do homem desconhecido. Fazem graça dessa surpresa, talvez usando a inocência para acalmar o espanto. Até que a notícia chega ao povoado. Mal os homens correram a verificar se não faltava alguém nas redondezas, as mulheres começaram a se ocupar do afogado. Tiraram-lhe o lodo com escovas, desembaraçaram-lhe os cabelos dos abrolhos submarinos, notando que “a vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas, e que suas roupas estavam em frangalhos, como se houvesse navegado por entre labirintos de corais” (p. 46). Lavaram seu corpo nu, vagarosamente. “Para que pudesse continuar sua morte com dignidade” (p. 47), transformaram em calça nova o que haviam guardado dos resistentes tecidos de velas de barco, decididas que fosse de imenso tamanho, capaz de recobrir da pélvis aos pés. Costuraram, aos poucos, e nas medidas exatas daquele homem descomunal, uma camisa branca, muito alva e leve, com sobras de antigos vestidos de noiva que casaram as moças da aldeia em raros entardeceres de festa.

sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora nunca tão tenaz nem o Caribe estivera tão ansioso como naquela noite e supunham que essas mudanças tinham algo a ver com o morto. (p. 47)

Decidiram inventar um nome próprio a fim de que não seguissem chamando-o de homem, afogado, cadáver ou morto, essas palavras impessoais que podem caracterizar incontáveis outros seres humanos, não somente aquele trazido pelas ondas serenas até as areias esquecidas do pequeno vilarejo, onde nada extraordinário acontecia. Imaginaram o prazer das mulheres que adormeceram nos braços longos daquele rapaz. Puseram seus maridos indignados de ciúme, vendo-as louvar o visitante súbito e incógnito que nenhuma delas conhecera vivo. Como era possível deixarem de lado tudo o que faziam cotidianamente, tudo o que constituía a vida comum nunca considerada infeliz, para cuidarem de um corpo flagelado que amanhecera na praia?

Depois da meia-noite diminuíram os assobios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta-feira. O silêncio pôs fim às últimas dúvidas: Era Estevão. As mulheres que o vestiram, as que o pentearam, as que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam reprimir um estremecimento de compaixão quando tiveram que resignar-se a deixá-lo estendido no chão. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que não o maltratasse a luz, viram-no tão morto para sempre, tão indefeso, que se abriram as primeiras gretas de lágrimas em seus corações. (pp. 48-49)

Na ausência de história, fabularam uma. Já que era irrecuperável o nome original, para sempre o chamaram de Estevão. Na distância da família de sangue, doeu a todos entregá-lo órfão às águas que o trouxeram: deram-lhe um pai e uma mãe, e outros se fizeram seus irmãos e primos. E houve tanta gente e tantas flores que mal se podia caminhar na praia onde devolveram o corpo de Estevão ao mar. Delicadamente, sem corrente e âncora que o forçassem a desaparecer, de um instante para outro, na escuridão do oceano. Foi tamanha a intensidade afetiva ao redor do tal corpo que havia chegado à praia abandonado e anônimo, que a vida comum no lugarejo subitamente revelou-se desprovida da emanação pulsional que resgatara aquele homem da morte desumana. Os vivos sepultam o morto e este, por sua vez, vivifica aspectos mórbidos da existência daqueles que o sepultaram. Uma curiosa ideia... Que o luto salve os mortos e os vivos.

Enquanto se disputava o privilégio de levá-lo nos ombros, pelo declive íngreme das escarpas, homens e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da beleza do seu afogado. Mas também sabiam que tudo seria diferente desde então, que suas casas teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para que a lembrança de Estevão pudesse andar por toda parte... (pp. 52-53)

Uma aldeia inteira precisou receber o corpo naufragado de um jovem para que, desse anônimo despojo, surgisse Estevão - a partir de então um homem descrito e lembrado por narrativas ultralibidinizadas (não é fortuito que o autor tenha escolhido para o personagem um nome cuja origem grega traduz-se por “o coroado”). E daí em diante, nem o homem desencantado, nem o triste povoado que o encontrou, jamais seriam os mesmos.

Tudo aquilo que não é possível à distância

Tragédia:

Acontecimento funesto que desperta piedade ou horror;

Catástrofe, desgraça, infortúnio

(Houaiss, 2001)

Ao longo do percurso de uma pandemia, não seremos todos, dentro e fora dos consultórios analíticos, homens e mulheres que costuram sentidos para a morte anômala que transformou, repentinamente, seres viventes em corpos desaparecidos? Corpos levados pelo mar, esse imenso lugar selvagem onde não há quem possa significar o acontecimento traumático, cercá-lo de uma narrativa e guardar em lugar seguro a existência imaterial de quem morreu. Desde março de 2020, a morte é ainda mais asséptica do que já havia passado a ser com o advento dos tratamentos intensivos especializados - por razões sanitárias, durante esses dois anos impôs-se uma interdição, legal e moral, que impediu adentrar hospitais ou funerais, oferecer companhia para doentes ou enlutados, e todas as muitas outras formas de participar de aflições. Equipados com telas, câmeras e microfones, testemunhamos separações amorosas, crises profissionais, desconcertos familiares, medo de perder a vida ou perder alguém para um vírus indômito. Uma ciranda atordoante de encontros foi possível, mas quase sempre por meio de conexões limitadas ao que celulares e computadores podem oferecer.

Tal pandemia mundial, que matou em grau dificilmente estimável - alega-se que o número real possa ser pelo menos duas vezes maior do que o registro oficial divulgado pela Organização Mundial de Saúde (Adam, 2022) -, traz em sua excepcionalidade também a imposição de um crônico estado de solidão. Se tantos habitantes do Reino Unido têm publicado testemunhos indignados frente ao pedido de desculpa do Primeiro Ministro devido a festas realizadas em seu gabinete de trabalho durante o lockdown inglês, é porque não há exatamente uma segunda chance para quem perdeu um familiar ou amigo e, cumprindo uma determinação do governo britânico, abriu mão do que desejava fazer no momento emergente de uma ruptura dolorosa. Frente ao drástico isolamento, que a maioria de nós nunca conheceu com tal intensidade e duração, não estaremos necessitados de uma longa ritualização das experiências de perda que liberte os mortos da banalização, da massificação, da lógica impiedosa do “mais um entre tantos”? Um ritual não protocolar - já que interpsíquico e intrapsíquico - que ofereça alguma dignidade aos mortos e, aos vivos, condições para seguirem adiante?

Esse inusitado episódio recriado por García Márquez bem pode ser lido, então, como uma parábola reatualizada em meio a uma pandemia segregadora, que de tantas formas nos afastou, sobre o quanto o trabalho do luto depende da presença de outros, aquela que evoca lembranças afetivas e cria novos sentidos, em particular para as experiências traumáticas que são, por natureza, reverberação emocional em estado bruto. Trágicas quando acontecem, são golpes súbitos que excedem nossa capacidade psíquica de transformação. Sabemos que, sozinhos, estamos à mercê de todas as formas sintomáticas de repetição, já que a vitalização de memórias dispersas e, sobretudo, a ampliação de redes associativas não são odisseias individuais (Freud, 1914/1996b).

Mas, e quando não há uma aldeia à beira do imenso mar? Em publicação recente, a revista Forbes (Wexler, 2022) sumarizou estudos que indicam um empobrecimento linguístico sofrido por bebês nascidos em 2020 e 2021, o que aponta para dificuldades futuras nas competências necessárias à leitura compreensiva. Imersos num ambiente humano que foi subitamente restringido em diversidade e invadido por tensões múltiplas, esses infants perderam oportunidades fundamentais para o desenvolvimento do pensar junto ao outro. Protegidos em suas casas, podem ter ouvido músicas, vídeos, televisores, conversas, mas é provável que acabaram por viver menos interações sociais face a face. O estranho mundo em que um bebê é lançado ao nascer exige companhias que o ajudem a transformar, em vivência assimilada, o impacto emocional causado pelos acontecimentos. Quando as circunstâncias obstruem essas trocas entre subjetividades - e isso não vale somente para bebês - há, portanto, um imponderável prejuízo para quem virá a sofrer pressões internas e externas frente às quais não existirá, ainda, um léxico incorporado.

O que a pandemia alastrou, na esfera mental, parece ser algo da ordem de um colapso de contenção, sugere Rustin (2020) num artigo intitulado “A pandemia de coronavírus e seus significados”. Há uma sobreposição de ameaças surgidas abruptamente, o que exige que levantemos defesas extremas contra a ansiedade, em especial a clivagem, a negação, a projeção, e uma reversão para os estados de mente paranoico-esquizoide e narcísico. E, para o autor, o que agrava tal incontinência, nas atuais circunstâncias, é a escassez de um entorno socioafetivo capaz de acolher o que, individualmente, é excesso. “Estamos aqui falando da árdua construção de resiliência para o enfrentamento do traumático” (Barros et al., 2020) - sim, é disso que estamos falando: uma pandemia, ao mesmo tempo, exaure e estimula nossos recursos, desvelando o quanto somos atavicamente necessitados.

Isolamento e melancolização

Odisseia:

Longa perambulação ou viagem;

Aventuras singulares e inesperadas;

Travessia de caráter intelectual ou espiritual

(Houaiss, 2001)

Nesse poético conto, o fervor das mulheres remete ao sobreinvestimento preconizado por Freud (2011/1917) como uma vinculação estruturadora do luto. Agarrar-se para deixar partir. Lembrar histórias de quem morreu, remexer objetos deixados para trás, conjecturar sobre futuros que nunca existirão. Por um vasto tempo, reeditar ou repetir essa trama biográfica (uma espécie de coletiva obra ficcional oralizada) para consolidar um enredo sobre o fim de uma vida. Rezas entoadas, histórias recontadas, caixas e cartas reabertas; inúmeras vezes o ouvinte testemunhará o reaparecimento do morto em alguma de suas muitas facetas. O combate interminável entre a vontade de esquecer e algo como A ridícula ideia de nunca mais te ver, título escolhido por Rosa Montero (2019) para o livro que narra a perda do próprio marido da autora, vitimado por um câncer, entremeando tais fragmentos autobiográficos a trechos do diário de Marie Curie escritos desde o acidente fatal que matou Pierre, seu marido. Falar, escrever, intermitentemente ao manso silêncio, essa pausa temporária nas rememorações que pode sugerir desligamento, mas a qualquer momento novamente cede lugar ao discurso capaz de presentificar o morto. Não é possível citar aqui com justiça - e nem é preciso - a infinidade de obras autobiográficas que são, essencialmente, o prolongamento de um funeral. Esses relatos literários atestam que é possível elaborar o sofrimento intrínseco àquela morte à medida que uma saga de reminiscências possa ser criada frente a um ouvinte - ainda que nada diga, no lugar contemplativo tão próprio do leitor e que, muitas vezes, é bem onde o psicanalista se mantém a escutar quando sustenta a “função de testemunha”, como sintetizou Giovannetti (2018).

Freud lembra em Luto e melancolia:

O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo e de energia, e enquanto isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido. (2011/1917, p. 49)

Um paradoxo, à primeira vista - menor, entretanto, quando consideramos que ambas as experiências psíquicas custam um bom tanto de dor quando vividas radicalmente. Perder é doloroso, lutar contra a perda também é. Daí buscarmos uma saída exitosa que concilie essas demandas. Etimologicamente, Aslan (2009) detalha, tal compreensão está presente na palavra espanhola para luto (duelo), que tem duas raízes latinas: dolus (dor) e duellum (duelo, no sentido de disputa). Esta última, por sua vez, deriva de duas palavras, duo (dois) e bellum (guerra). Luto é o conflito entre movimentos dolorosos - afrouxar ligações com o objeto perdido e reinvestir nessas ligações na ausência do objeto. As odisseias do luto rumam, portanto, não para o fim da dor, mas para o domínio da realidade indesejável sobre o desejo impossível. É compreensível, então, que durante os anos da Primeira Guerra Mundial, uma brutal realidade imposta aos países da Europa, tenham surgido os textos freudianos que mais lidam diretamente com a resistência do psiquismo a desligamentos absolutos. A destruição, em qualquer de suas muitas formas, implacavelmente realizava-se para alguns - mas ameaçava a todos. Já em abril de 1910, Freud havia feito perante a Sociedade Psicanalítica de Viena uma palestra que receberia, quando publicada, o título “Contribuições para uma discussão acerca do suicídio” (1910/1996a). Poucos anos depois, publicaria “Reflexões para os tempos de guerra e morte” (1915/1996c), “Sobre a transitoriedade” (1916/1996d) e Luto e melancolia (1917/2011).

Lembremos que, ao fundir a noção de trabalho (Arbeit, em alemão) ao luto, Freud distingue esse conceito de uma fatalidade diante da qual somos vítimas passivas: se perdemos algo que amávamos, então sofremos o luto? Não. Enfrentamos o luto quando suportamos o extenso e exigente processo de transformação dos investimentos afetivos. E, como outros processos de elaboração, o Trauerarbeit (trabalho do luto) é a redução de uma imensidão, uma “representação da plenitude” quando essa foi para sempre perdida (Minerbo, 2020, p. 172). Também o Traumarbeit (trabalho do sonho): basta lembrarmos que as condensações, os deslocamentos, as simbolizações não traduzem ou desvelam a vida psíquica. Em seu poder de representar o que até então pulsava irrepresentado, o sonho torna possível que vejamos um fragmento da paisagem mental que, em sua inteireza, nunca será conhecida. Bearbeitung, Verarbeitung, Durcharbeitung - para Freud, todas as formas de elaborar consistem numa laboriosa atividade psíquica. Ao sonho e ao luto, aliás, Pontalis inclui também a escrita como um esforço de captura do essencial.

O sonho transforma sensações presentes, restos da véspera, rostos e lembranças, pessoas e lugares: é um laboratório. O luto transforma o objeto perdido, o incorpora e o idealiza, o fragmenta e o recompõe, e precisa de tempo para fazer isso. Mas a analogia com a escrita não está somente no trabalho: escrever é também sonhar, é também estar de luto, ser animado de um desejo louco de posse das coisas pela linguagem e ter a cada página, a cada palavra, a prova de que nunca se tem o que se quer. (1991, pp. 129-130)

A mim essa ideia faz lembrar um poema de Wisława Szymborska cujo título, extraído do vocabulário da Etologia, parece aqui elucidar que os seres humanos não conseguem lançar mão de um recurso de sobrevivência que é natural para tantos outros animais: “Autotomia”. O termo refere-se a uma capacidade que diversas espécies apresentam ao liberar partes de seu corpo em uma automutilação, usada como meio de defesa quando são atacados e feridos; podendo esses membros regenerar-se ou não. Deixam partes mortas pelo caminho, extirpando-as. Humanos, porém, levam consigo o que perderam, seja o objeto morto, numa extremada negação da inescapável separação, seja o objeto aos poucos transformado e guardado na mente.

Morrer só o necessário, sem

exceder a medida.

Regenerar quanto for preciso

da parte que restou.

Também nós, é verdade,

sabemos nos dividir.

Mas somente em corpo

e sussurro interrompido.

Em corpo e poesia.

De um lado a garganta, do

outro o riso,

leve, logo sufocado.

Aqui o coração pesado, lá

non omnis moriar …

(Szymborska, 2016, p. 80)

Non omnis moriar, alude a poeta à expressão do latim que aconselha: “Não morrer demasiadamente”.

Internalizar.

Revisitar.

Eternizar.

Pierre Fédida (2009) usa a expressão “obra de sepultamento”, para ele sinônimo de “obra de relíquia”, em ambos os casos tentando representar o processo de preservação daquilo que, em parte, teve sua existência terminada. Há uma obra que separa o que morreu e o que sobreviverá; há uma dimensão evanescente na vida humana, mas há outra dimensão que permite uma espécie de vida além da morte. Não é sempre esse, porém, o destino de uma perda: ser internamente guardada; sobreviver num espaço reduzido, mas duradouro. Freud escolheu uma arguta metáfora para se referir ao sofrimento crônico que não é trabalho do luto, que não é uma elaboração gradual capaz de preservar o objeto perdido e, com isso, favorecer novas ligações amorosas. Jovem médico, partilhou com Fliess a ideia de que a melancolia se assemelha a uma hemorragia interna. Muitos anos depois da publicação dos assim chamados Rascunhos, seguia reafirmando a imagem do buraco aspirante: “O complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta, atraindo para si, de toda parte, energias de investimento, e esvaziando o ego até o empobrecimento total” (2011/1917, p. 71). O que distingue luto e melancolia não é, a partir desse vértice, somente o quanto cada qual afeta quem sofre uma separação - a diferença reside nas possibilidades que se abrem no decorrer do tempo. Se o luto é movimento contínuo e infindo, quando não acontece, impõe-se uma atrofia dos investimentos pulsionais, uma limitação crônica de experiências. Por trás de atos que facilmente levam a crer numa superação, o eu permanece atracado. Lançando mão de suas defesas obstinadas, destaca Ogden, “o melancólico evita a dor da perda e, por extensão, outras formas de sofrimento psicológico, mas o faz a um custo imenso - a perda de boa parte de sua vitalidade emocional” (2010, p. 59).

Aliás, é precisamente a evasão o que constitui, para Bion (1991), a marca do funcionamento psicótico: trapacear a dor em vez de simbolizá-la (pensando, falando, sonhando). Impactado traumaticamente por um acontecimento, o indivíduo reage com um aparelho para livrar a psique de objetos internos sentidos como maus, não dispondo de um aparelho que suporte pensar: “O ponto crucial está na decisão entre modificação e fuga da frustração” (p. 187). Modificação, transformação, elaboração: o luto advém da experiência prolongada com as dores inerentes a uma grave perda; livrar-se desse percurso é próprio da melancolia. Enquanto o enlutado se entristece - e tantas vezes se enraivece -, o melancólico se evade. Enquanto há um movimento antropofágico no luto, na melancolia persiste uma mórbida ligação que congela o psiquismo vivo à sombra do objeto morto. Apresenta-se aqui uma questão quantitativa que se refere ao quanto de nossos investimentos pulsionais são mantidos ou, ao contrário, ligados a novos objetos - uma questão fundamental quando consideramos que a ventura psicopatológica de cada um de nós depende, amplamente, dessa composição dinâmica. “O ser humano só existe se consegue desviar suas pulsões de seus alvos”, propõe Rosenberg (2003, p. 202), porém, segue o autor, “é muito improvável que ele possa existir se tiver demasiado sucesso nessa tarefa”. Sepultar internamente é, portanto, recompor a existência imaterial de quem morreu e, com isso, afastar-se de todas as (sempre mortificantes) formas de não-luto - seja o esvaziamento do eu da necessária libido narcisista, quando essa foi maciçamente investida no objeto externo perdido, seja o sacrifício do eu pelo excesso de agressividade voltada para si em vez de agir como uma força de desligamento gradual.

Um corpo arrastado pelas correntes do mar é uma eloquente metáfora literária, aqui oferecida por Gabriel García Márquez, para uma perda que internamente está insepulta, perenizando um objeto assustador (e talvez acusador) que ressurgirá, a qualquer momento. Se não foi possível cuidar desse objeto de amor em seu final de vida, tampouco zelar coletivamente por sua memória; se não há, então, quem ouça a confusão ambivalente de emoções suscitadas pela morte do outro, como deixá-lo ir embora sem que, em sua nova forma de existência-na-ausência, esteja representado na mente de quem o perdeu? “Sabemos que os mortos são poderosos soberanos...” - podemos aqui lembrar de Freud em “Totem e tabu” (1913/1996e, p. 66), nesse aforismo que enfatiza o domínio que uma figura perdida é capaz de exercer quando o luto não aconteceu.

Outra cena literária insólita que vem a nosso auxílio: uma terceira margem para o rio. Foi o que Guimarães Rosa imaginou: um lugar que não é o solo firme e fértil de uma margem, nem o movimento das águas que levam embarcações para longe. Nem partindo, nem pertencendo é que o pai, calado e resoluto, prende o olhar do filho a uma canoa que não desaparecerá horizonte adentro, nem jamais voltará a aportar:

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. (Rosa, 2019, p. 38)

A pequena família desiste e se vai, resignada à impossibilidade de fazer com que o pai retorne. Menos esse filho, que envelhece na casa da infância, à beira do rio - fincado nesse interstício entre a tragédia e a odisseia, entre o assombro e a narrativa, um lugar onde ninguém está ao redor (E não será bem esse o lugar desolado e aprisionante da melancolia? Um cárcere privado imposto a partir de dentro, onde não restam pessoas, nem palavras?).

Os escritores sabem antes de nós - e com uma espécie de convicção inconsciente - o que seguimos tentando alcançar.

A zeladora do cemitério: companhia viva para as odisseias do luto

Água fresca para as flores (Changer l’eau des fleurs), novela de Valérie Perrin publicada em 2018 e já traduzida para 30 idiomas, foi uma das obras de ficção mais vendidas na França e Itália nos últimos anos, a ponto de ser considerada por vários suplementos de literatura europeus “o livro do lockdown”.

Uma delicada e pungente investigação sobre amor, perda e redenção (Publishers Weekly, 5 de novembro de 2020).

Frágeis e vulneráveis se nos isolamos, mas não estamos sozinhos (Corriere della Sera, 27 de novembro de 2020).

Um hino à vida (Le Figaro, 7 de março de 2022).

Isso descobrimos numa breve pesquisa sobre essa publicação. Depois, ao ler a obra, quem fala ao leitor desde a primeira linha é a narradora que seguirá conosco por quase 500 páginas, Violette Toussaint, zeladora do cemitério de Brancion-en-Chalon, um vilarejo na Borgonha. A casa onde mora há mais de 20 anos recebe quem vem enterrar alguém ou depositar suas cinzas. Violette não tem função prática no funeral - apenas o observa de longe e registra num caderninho detalhes do ritual. É possível que algum dia um ausente deseje saber como foi a cerimônia, quem estava ao redor do caixão, como fizeram a despedida. Se houve música, se recitaram uma prece ou um poema. O que mais ocupa seu tempo é cuidar das flores que cercam os jazigos - manter a terra úmida, folhas secas recolhidas, caules prontos a lançar brotos. Quando finda uma chuva ou ventania, limpa com água e vinagre cada uma das placas metálicas, que trazem nomes e datas, às vezes epitáfios. E retira o pó depositado sobre fotografias que desbotam lentamente em porta retratos fixados às lápides de certos sepulcros, oferecendo aos visitantes o alento de reencontrar faces sempre joviais e alegres, resistentes à passagem dos anos.

Não há placa, nem fotografia, junto ao único cenotáfio desse cemitério. Explica Violette:

Um cenotáfio é um memorial fúnebre erguido sobre o vazio. Um vazio deixado por um morto que desapareceu no mar, nas montanhas, em um avião ou em uma catástrofe natural. Um vivo que desapareceu, mas cuja morte parece inegável. (Perrin, 2018, p. 95)

Não há, também, um corpo sepultado onde lê-se o nome de Denis Laforêt - menino que, ao sair da escola num final de tarde, nunca mais voltou para casa. Acabou por ser decretado morto após se esgotarem todas as buscas, todas as esperanças de reencontro.

Camille Laforêt me disse várias vezes que o nome de Denis naquele túmulo falso salvou a vida dela. Que aquele nome gravado no mármore a mantinha entre o possível e o impossível: imaginar que o filho ainda estava vivo, em algum lugar, sozinho, sem amor, sofrendo. E, toda vez que ela abre minha porta, senta-se à minha mesa, toma café e me diz “Tudo bem, Violette?”, acrescenta: “Existe coisa pior do que a morte; é o desaparecimento”. (Perrin, 2018, p. 96)

Uma companhia silenciosa - nenhuma pergunta Violette faz àqueles que voltam ao cemitério, mas ouve as histórias de quem entra em sua casa para conversar, onde sempre há um bule fumegante. Durante anos, ouviu Olivia cantando Blue Room, canção de Chet Baker, em frente ao túmulo de François Leroy - We’ll have a blue room, a new room for two room, where every day’s a holiday, because you’re married to me... - até o dia em que a moça parou na janela de Violette e começou a falar daquela improvável relação que, no entanto, atravessou décadas: irmão e irmã se conhecerem quando adultos e logo se apaixonarem, ele professor de francês e ela, mais jovem, sua aluna colegial. Observa, também ao longe, a discrição de amantes ao visitarem túmulos de homens com quem viveram secretamente - ou apenas em fantasia. A uma delas ofereceu um singelo casamento póstumo: quando Émilie B. morreu, plantou ao seu lado uma muda da flor que rodeava o jazigo de Laurent D. “Ainda hoje, as lavandas de Laurent e Émilie estão maravilhosas e são um bálsamo para todos os túmulos ao seu redor” (Perrin, 2018, p. 68).

Julien Seul é, talvez, o personagem central nessa ciranda feita de sepultados e enlutados. Um homem repentino, que aparece no cemitério pedindo ajuda para que possa reunir as cinzas de sua mãe a um falecido incógnito chamado Gabriel Prudent. Não foi o pai de Julien, nem alguém conhecido. Logo ele, um experiente delegado em Marselha, precisava agora render-se a um enigma que não resolveria com plenas respostas. Um caso sem solução, portanto - em ambos os sentidos da expressão. Restava escrever uma homenagem que pudesse ser lida durante o ato derradeiro, aquele sepultamento que reuniria tardiamente duas pessoas que não puderam ser um casal enquanto vivos, exceto em tardes efêmeras num hotel qualquer. Um esboço do texto é entregue por Julien a Violette, para que ela lesse em primeira mão, antes que ele dissesse aquelas frases, em voz alta, junto à urna funerária de sua mãe. Biografia de um morto recomposta frente a um ouvinte continente, que anseia conhecer. “Irène Fayolle era minha mãe. Tinha um cheiro bom. Usava o perfume L’Heure Bleue...”, assim começava o rito (Perrin, 2018, p. 97).

Para essa zeladora de cemitério, um ser humano não pode ser enterrado de uma vez por todas - ir embora condenado ao aniquilamento - tampouco pode ser definido por suas falhas, seus fracassos, aquilo que já lhe custou longo padecimento.

Amanhã vamos ter um enterro às quatro da tarde. Um novo residente para o meu cemitério. Um homem de cinquenta e cinco anos, que morreu por ter fumado demais. Enfim, isso foi o que os médicos disseram. Eles nunca dizem que um homem de cinquenta e cinco anos pode morrer por não ter sido amado, não ter sido ouvido, ter recebido contas demais, ter solicitado empréstimos demais, ter visto os filhos crescerem e irem embora, sem se despedirem de verdade. Uma vida de críticas, uma vida de caras feias. Ninguém nunca diz que podemos morrer pelas tantas vezes que sentimos chegar ao nosso limite. (Perrin, 2018, p. 31)

Para Violette, ninguém somente “assiste” a um funeral ou “visita” um túmulo - esses são verbos flácidos que reduzem o luto a um protocolo desafetado, a uma mera tarefa prática. Há sempre uma história de afetos pulsantes à espera de alguém que lhes receba. Uma casa aberta e aquecida, em meio a um cemitério famoso pelos mitos de assombrações femininas, pode ser uma potente representação também dessa acolhida significadora, desse sonhar-a-dois frente ao que solitariamente não é sonhável (Cassorla, 2016; Ferro, 2017) e que, portanto, só pode existir em sua forma gélida, emudecida, paralisada - trágica dor que assombra. Cercada por sepulturas, e habitada por uma mulher cuja própria história é feita de tragédias cumulativas, essa casa parece convidar à tão difícil “cesura criativa” (Trachtenberg, 2012) entre a rememoração e o esquecimento, entre o sentido inventado e a dor silente - entre guardar e perder, enfim.

Odisseias espectrais e infinitas que ninguém realiza desacompanhado.

2 Tradução livre de verso do poema Disenchanted corpse, de Atwood: “Disenchanted corpse, they say./ Inert. Empty of prayer, limp to all conjures./A figment, a fragment./Lifeless. Less.” (2021, p. 117).

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