I. Introdução
Este texto é uma homenagem à querida Sonia Eva Tucherman, que se foi prematuramente, tendo, porém, deixado - entre tantos legados - a marca de sua criatividade e inteligência clínica. Entre eles, o conto clínico. Destacou-se nessa categoria e foi premiada num concurso de contos promovido pela IPA em 2021. Mas o texto que o leitor tem em mãos vai além de um conto clínico. Traz o painel que foi apresentado no xxvi Congresso Brasileiro de Psicanálise (2017), tendo como tema As Patologias do Vazio.
O caso clínico foi apresentado por Sonia Eva Tucherman; Susana Muszkat e Cláudio Laks Eizirik foram os comentadores naquela mesa. Marion Minerbo fez uma intervenção ad hoc da plateia, que foi incluída no painel porque pôs em evidência e nomeou a quebra de paradigma do que estava sendo executado naquele momento: uma performance científica.
O título do trabalho foi escolhido por Sonia Eva em comunicação pessoal em 2021.
II. De cinza a cinzas
(Por Sonia Eva Tucherman)
Fizeram a festa surpresa - bolas, doces, língua de sogra e tudo o mais. Deram o presente, aquele relógio dourado. Placa de prata ordinária, com inscrição. Clamaram por discurso, e veio aquela enxurrada de palavras. Ao fundo, os parabéns pra você nesta data querida. Tudo normal. Comum.
Substantivo comum, fora ele a vida toda. Solto, sem nada ao lado. Nenhum adjetivo que lhe coubesse fielmente, nenhum complemento. Desde o primário sabia que seria assim para sempre. Ele era o denominador comum, o máximo divisor comum e mínimo múltiplo comum das aulas de Aritmética. Depois se viu no nervo ocular comum da aula de Biologia, e não era difícil adivinhar que seu destino seria uma vala comum, não por indigência, mas porque, decerto, nem mesmo a morte haveria de brindá-lo com alguma espécie de exclusividade ou exuberância.
Sua vida, uma sucessão de lugares-comuns, na acepção da palavra e geograficamente. Residência em Copacabana, trabalho no Centro da Cidade. Almoço no Centro, jantar em Copa. Invariáveis mesas em ambos, cardápio e
garçons idem. Terno cinza, gravata cinza, olhos cinza que nada revelavam, envelhecidos desde o nascimento.
Em um Hospital Geral do Centro da Cidade, em plantão trivial sem anotações no livro de ocorrências, nasceu de parto normal um menino de tamanho e peso médios, cinco dedos em cada mão e pé. Olhos cinzentos deveriam com o tempo escolher uma cor definida. Indefinido ficou também seu nome por longo tempo. A mãe não o esperava, foi pega de surpresa, quando viu já estava com aquela trouxa no braço, essas coisas que acontecem todo dia. Por falta de ideia melhor, e porque no hospital todos já o chamavam Cinzento, registrou o menino Cinzeno, que é como falava o nome da cor de seu filho.
Naquela ocasião, os médicos poderiam ter registrado que o bebê mexia os dedos das mãos agilmente, parecia tamborilar, coisa estranha para um bebê. Um registro lhe teria dado uma distinção.
Cinzeno da Silva, filho de Maria da Silva, pai desconhecido, cor parda, olhos cinza, cabelos cor de cabelo, sem sinais ou cicatrizes aparentes, nasceu há séculos. Cresceu, porque é natural que se cresça. Mas não muito. Um metro e sessenta e cinco e sessenta quilos. Quando alcançou tal estatura e título de eleitor, um candidato a vereador o agradou com emprego em repartição pública, como geralmente acontece. O candidato não se elegeu, mas o destino de Cinzeno se cumpria.
Funcionário público há centenas de anos, entrando de manhã, saindo à tardinha, datilógrafo do Setor de Pessoal, de uma Seção, de uma Divisão, de um Departamento, de uma Secretaria qualquer de um Estado qualquer deste país.
Ótimo datilógrafo. Excelente. Mas nem mesmo esse atributo lhe era creditado como pendor. Cinzeno do Pessoal. Leva lá, que ele é bonzinho, bate tudo que se pede. Cinzeno do Pessoal era bonzinho, insípido, inodoro. Nada.
A competência na máquina de escrever nascera com ele, mas não se podia dizer que era um dom, porque não havia registro no livro de ocorrências do nascimento de um bebê que tamborilava. Passou despercebido o talento inato, e no mais todo o resto, parecendo ao próprio Cinzeno que possuía uns dedos moles, que teimavam em se movimentar autônomos, tais quais calamares cinzentos. Não estranhava, porque os moluscos combinavam perfeitamente com sua pessoa.
Como se fossem horas passavam os minutos. Como se fossem dias passaram os anos E assim, depois de séculos, mas de repente, embora perfeitamente previsível, aconteceu a aposentadoria.
Cinzeno chegou pontualmente como de hábito. Com um maquinismo que imitava movimentos humanos, deu bons-dias monocórdios, sorrisos uniformes. Sentou-se na cadeira cujo assento ordinário formara uma depressão que se ajustava perfeitamente aos seus quadris, diante da Olivetti. Começou seu monótono toc-toc. As lulas tocavam as teclas, e estas mecanicamente acionavam Cinzeno. Teclava sem interrupção para não atrapalhar o mecanismo.
De forma que, com aflição, foi que viu irromper na sala do Setor de Pessoal da Seção da Divisão do Departamento da Secretaria do Estado, aquele grupo baderneiro rindo, falando alto, cantando e apitando.
A habitual festa surpresa em nada surpreendente - com bolas, doces, e todo o resto - e ainda o relógio vulgar, produto de lista passada durante a semana, a placa e mais aquele discurso eram a comemoração da aposentadoria de Cinzeno, a despedida, o último dia de trabalho de Cinzeno. Placa de prata ordinária, inscrição usual. Enxurrada de palavras comuns. Vamos sentir sua falta, vai aproveitar, hein? Vê se aparece de vez em quando, não esquece a gente, não sei como vamos viver sem você: funcionário insubstituível, inesquecível, inigualável. Parabéns pra você nesta data querida...
Cinzeno querendo voltar para a máquina. A bagunça ultrapassava o período regulamentar de almoço. Finalmente, a horda arrefeceu pela ausência de entusiasmo do homenageado, e se dispersou.
Cinzeno na cadeira de novo, toc-toc-toc.
O dia parecia que tinha nascido para desordená-lo, porque logo veio alguém - um desses que se ufanam de serem mensageiros do mal - comunicar que o chefe chamava urgente na sala da diretoria. Segunda interrupção em menos de uma hora. Uma ameaça ao azeitado maquinismo do funcionário.
- Então, Seu Cinzeno, amanhã já não nos veremos mais, muito obrigado por tudo, foi um prazer trabalhar com o senhor, blá-blá-blá-blá. Tudo dito em tom sibilino de forma a parecer boa notícia.
Cinzeno, pendurado no sorriso incolor, balançou a cabeça concordando, como se cabeça e corpo estivessem unidos por mola. Agradeceu, voz de sopa rala, e saiu da sala em passos surdos.
O dia terminou como de costume. Seis horas em ponto. Cobre máquina, bate ponto, pega ônibus via Copacabana. Janta. Dorme. Acorda. Seis horas em ponto. Cobre cama, toma café, pega ônibus via Centro, bate ponto. Não bate ponto. Cadê o ponto? Olha em volta. Estranha. Cinzeno diante da estranheza. Cadê o ponto?
Ouve ao longe o toc-toc de sua máquina, mas sabe que não é possível. Ela só responde às suas mãos, ela só existe diante dele. Segue o ruído caminhando pelo corredor. Há um desconhecido sentado na sua cadeira (como se ajeitou tão perfeitamente na cavidade que é minha?), batendo na sua máquina (e ela canta aos seus dedos como aos meus!), mexendo em suas fichas que se deixam entender por um estranho, em seu posto, em seu Setor, na sua Seção.
Cinzeno se dissolve em águas: suores, lágrimas, salivas, urinas, secreções, humores. Vai formando uma poça líquida cinzenta no chão cinza da repartição. Liquefazendo-se silenciosamente - que nunca foi seu feitio ruidar -, vai confundindo-se no chão cinza, cada gota sintonizada com as notas da Olivetti que, indiferente, continuava cantando sob mãos alheias.
Alguém notou o chão molhado e deduziu que havia goteira, mais uma entre tantas do prédio malcuidado. Chamou o contínuo, que veio com seu passo preguiçoso, arrastando apetrechos, vassoura, balde, rodo. Pano de chão é melhor. É uma pocinha de nada. Indolente, torceu o pano de chão embebido e recolheu a água no balde. Depois esvaziou o balde no ralo do banheiro do Setor de Pessoal da Seção da Divisão do Departamento da Secretaria do Estado.
Ninguém deu por falta de Cinzeno. Nem a vizinhança, nem o dono do bar, nem o motorista do ônibus. O jornal não noticiou seu desaparecimento.
Cinzeno apagou-se no sofá desbotado, em pijama de listras grises, dedos tamborilando o controle remoto de uma tevê colorida.
III. Maria da Silva: a mãe de Cinzeno
(Por Susana Muszkat)
Ao ler o conto sobre a vida cinza de Cinzeno, me pus a imaginar quem teria sido sua mãe; uma mãe, pensei, a quem faltou uma paleta mais ampla de cores afetivas que lhe permitisse nomear o filho com outras tonalidades.
Pus-me a imaginar. Imaginar é aparentado do sonhar, é um tipo de sonhar acordado, de devaneio: exatamente o que parece ter faltado, logo de início, à mãe de Cinzeno da Silva, d. Maria da Silva.
Sonhar é manifestação de vida mental, daquilo que se dá dentro da gente, mesmo sem percebermos. Seria possível que Maria da Silva não sonhasse? Ou sonhara? Ou será que o que tinha eram pesadelos?
Havia 3 anos tinha vindo para a cidade grande lá do interior do Piauí, sozinha. Uma prima sua que já morava aqui a convencera. Teria mais oportunidades, dissera. Trabalho, salário, dinheiro para usar para si mesma, comprar roupas, maquiagem, quem sabe estudar, ou até mesmo encontrar um homem que fosse seu companheiro, diferente daqueles que bem conhecia lá na sua terra natal, homens rudes, que por nenhum motivo aparente puxavam a peixeira, brigavam uns com os outros, bebiam até cair, e, antes de apagarem, era frequente baterem em suas mulheres, descarregando a precariedade e frustrações de suas vidas sobre elas. Tratavam-nas como se essas não tivessem sentimentos. Como se nem fossem gente.
Tinha visto isso tantas e tantas vezes em casa... Sua mãe correndo para se esconder e proteger os filhos do marido violento quando este se aproximava do barraco em que moravam - nos dias em que aparecia para dormir. Era bem melhor quando ele não voltava! Chegava exigindo da mãe de Maria, Maria das Dores, o que a coitada não tinha para dar.
Maria das Dores fizera das tripas coração para alimentar aquele punhado de filhos. Escola, logo desistiu de levar os mais velhos: era muito longe, ela não tinha como fazer com os menores que precisavam de cuidados, e os mais velhos, aos 6 ou 7 anos, muito antes de terem suas necessidades de crianças esgotadas, já tinham que se ocupar das tarefas da casa e da lavoura, que a pobre mãe não dava conta. Maria tinha sido a primeira da prole - sua mãe havia sonhado que essa seria uma filha diferente do que ela fora até então, das Dores. Assim, batizou-a Maria, nome ao mesmo tempo de Santa - Mãe de Jesus - e sua filha, Maria, sem as dores, louvado seja o Senhor! Os outros filhos seguiram-se uns aos outros, quase ininterruptamente. Ou pelo menos assim era a lembrança que Maria tinha de sua infância e adolescência. Havia sido essa a contribuição que aquele homem, a quem sua mãe tivera por marido, dera à família. Produzira filhos.
Ah, mas sim! Sonhava! Sonhara! Em sair daquele fim de mundo, onde até sonhar era tão doído, deprimente, uma perda de tempo mesmo. Afinal, para que se ocupar com sonhos de uma outra vida naquela terra esquecida até por Deus - e, certamente, por todos os governantes que só se lembravam daquelas bandas de lá quando se aproximavam eleições -, e onde o destino parecia já ter sido traçado e definido para todas as mulheres.
E foi assim: ao completar 19 anos, e já calejada e exausta daquela vida enclausurada, juntou o pouco que tinha, comprou uma passagem de ônibus para o Rio de Janeiro e foi se encontrar com uma prima.
Chegou ao seu destino, e o que viu primeiro foi um mundaréu de gente! Uma confusão que a deixou perplexa, atônita, confusa, assustada. Ainda bem que a prima a tinha localizado no meio daquela barulheira e bagunça infernais.
A vida definitivamente não era fácil no Rio de Janeiro. Maria não sabia ler nem escrever, e, assim, foi ser faxineira, 8 horas por dia, na empresa onde a prima já trabalhava. No tempo fora do trabalho, lavava roupa para os vizinhos e, às vezes, preparava marmitas para o pessoal que trabalhava nas obras lá perto, como forma de complementar a pouca renda que ganhava na faxina. Queria ajudar sua mãe e os irmãos que ficaram para trás. Sempre que podia, mandava um dinheirinho. Era ajuizada e tinha muita pena de ter deixado a mãe sozinha com todos os irmãos.
Também sentia saudades deles. Sentia-se sozinha na Cidade Grande. Perdida.
No início, ela e a prima moravam juntas, tomavam o mesmo ônibus todos os dias, conversavam um pouco, atualizavam as fofocas do local onde trabalhavam. Normalmente, no entanto, acabava adormecendo, complementando o exíguo tempo de sono de que conseguia dispor no dia a dia.
Era bom ter companhia. Mas a prima conheceu o João, que logo quis que ela fosse morar com ele para cuidar de sua filha pequena, que não tinha mãe, e lá se foi a prima - pois qual é a mulher que resiste ao convite de um homem para que seja sua mulher, mãe de seu filho!? Por que será que mulheres tão fortes para dar conta da vida se dobram tão facilmente aos desejos masculinos?
E Maria ficou só.
Às vezes, ia ao baile com amigas. A prima já não podia.
Às vezes, namorava um pouco com Gerson, um rapaz simpático, zelador de um prédio nas redondezas. Mas era só mesmo nos finais de semana, para dar uma folga da dureza da semana. Sentia-se feliz com ele, ficava menos só. Ele a olhava, dizia que estava bonita...
Maria da Silva começou a estranhar. Já era o segundo mês que não menstruava. Nem tinha reparado, nunca fora muito regulada mesmo. Além do mais, a vida atribulada do trabalho para casa, os bicos que fazia, um pouco de TV e pronto, desmaiava até o dia seguinte, quando às 5:00h da manhã já tinha que começar de novo. Não dava nem tempo para pensar em como seu corpo funcionava. Não tinha intimidade consigo mesma. Essas sentimentalidades não tinham lugar em sua vida. Fazia o que tinha que fazer e pronto.
Sabia que ficava menstruada de tempos em tempos, porque nesses dias não tinha relação sexual com Gerson. Inventava uma desculpa qualquer. Tinha vergonha de falar sobre isso. Assunto de mulher.
Sobre relações sexuais, proteção, gravidez, pouco ou nada entendia. Nunca estivera em uma consulta médica na vida. Não tinha tido necessidade. Tinha sempre boa saúde, trabalhava e não adoecia.
Mas vinha estranhando uma fraqueza, um sono que não tinha antes, a cintura que começou a aumentar, os seios pareciam ter inchado, as roupas foram ficando apertadas. Não deu muita atenção, devia ser o clima, a comida, os hábitos diferentes desde que saíra de sua roça.
Parou de se encontrar com Gerson porque um dia ele apareceu no baile com uma moça nova, e ela se entristeceu. Era assim com as mulheres, pensou.
Maria era magrinha, primeira gravidez, nem notou.
Certo dia, de repente, uma dor muito forte fez com que não pudesse andar, nem carregar o balde da limpeza. A dor vinha e ia, cada vez com mais força. E, de repente, não conseguiu se segurar e fez xixi pelas pernas, molhando o chão, na frente de todos! Que vergonha!
Uma colega do trabalho logo percebeu e a levou para a Maternidade Central, onde nasceu o menino sem nenhuma marca especial.
Os médicos fizeram o que tinha de ser feito. Sem muita conversa. Nem tampouco sorrisos ou explicações do que ia se passando. Eram muito ocupados, e havia uma fila infinita de mulheres que ainda precisavam ser atendidas. E eles eram poucos. Não lhe disseram que tinha tido um filho lindo, forte, que parecia muito esperto e que já tinha um dom de tamborilar com os dedos, e que quem sabe um dia seria um violinista famoso? Talvez, se alguém da equipe técnica do hospital tivesse dito algo, mostrado para Maria que ela tinha feito algo especial, que seu filho era especial, talvez ela tivesse sido capaz de sentir outras cores, de começar a sonhar sobre seu filho. Se a tivessem alimentado em sua estima, ela talvez pudesse alimentar seu filho com seu olhar de orgulho, de satisfação, de sonhos... Mas isto nunca lhe acontecera, nem antes e nem agora, quando haviam seguido o protocolo médico. De humanidade mesmo, nada. E tempo para isso?
E assim, quando viu, Maria já estava com a trouxa nos braços, sozinha. Mais uma jovem mãe solteira. Não estava preparada. Mal conseguia se manter. A prima ajudou um pouco, as amigas do trabalho juntaram algumas coisas doadas de bebê.
Cinzeno. Nasceu num dia qualquer. Não era aguardado, não chegou num dia especial. Nada nele chamou atenção de ninguém. Passou desapercebido. Seu nome não foi escolhido, pensado: estava à mão. Não tinha outro melhor, foi aquele mesmo.
Alguém já disse que os olhos são o espelho d’alma. Ou que o olhar da mãe é o espelho onde o bebê, ao se ver desejado, se alimenta e constitui. Alimenta-se do desejo da mãe, ou de outra pessoa que tenha por ele um olhar amoroso. Mas calhou de Cinzeno não ter alguém.
Cinza é cor de nada. Um nascimento, um parto, na vida de uma mulher poderia ser cinza? Poderia ser nada?
Não que se esteja sugerindo que parto e nascimento devam ser cor-de-rosa, amarelinho, azulzinho, verde-água... (como costumam ser os enxovais e quartos infantis), cores delicadas, suaves, que carregam em si uma conotação romântica, bela, e que parecem ter a intenção de criar um espaço acolhedor, calmo, receptivo, sem sustos, para uma criança que acaba de chegar ao mundo, que precisa que lhe seja apresentado aos poucos para não se assustar.
Nossa cultura tende a romantizar e idealizar tudo o que diz respeito a gravidez, parto, maternidade, sustentando como naturais dois pressupostos sobre mulheres: que toda mulher deseja ter filhos e que toda mulher, ao ter um filho, ama-o de imediato e completamente.
Nada é natural na espécie humana, e o mito do amor materno já foi devidamente questionado por Elisabeth Badinter (1985), em seu livro intitulado Um amor conquistado: o mito do amor materno. O título é autoexplicativo e contesta a natureza intrínseca do amor materno.
Ainda assim, não é possível que o nascimento de uma criança passe em brancas nuvens. Se o bebê der sorte, chegará para uma mãe que o espera e o deseja, que já o tenha sonhado, encontrando assim um lugar no grupo social ao qual ele chega. Grupo social não é só a mãe, mas um grupo ampliado do qual a mãe também faz parte.
Mas o bebê pode chegar em outros contextos, significativamente diferentes dos tons pastel.
Maria da Silva é uma ficção, porém, tão real quanto a história de tantas Marias. Foi criada com base na história de Cinzeno, um bom sujeito que atravessou a vida sem ser visto. Que não pôde receber de sua mãe aquilo que ela tampouco recebera, até “apagar-se no sofá desbotado, em pijama de listras grises, dedos tamborilando o controle remoto de uma tevê colorida”.
IV. Toda a vida que poderia ter sido e não foi
(Por Cláudio Laks Eizirik)
Toda a vida que poderia ter sido e que não foi, escreveu Manuel Bandeira, e que serve de lema possível para o nosso pobre Cinzeno, cinzento, insípido, inodoro e incolor, que passou pela vida sem ser praticamente notado, e que dela saiu como viveu, aparentemente ninguém, e que, no entanto, deixou uma marca colorida, e não só cinzenta, através do conto que deu vida a Cinzeno, através de suas palavras coloridas de humanidade, a mesma humanidade que levou Saint-Exupéry (2006) a descrever, em Terra dos homens, as multidões sem cor que percorriam a Europa nos trens que cruzavam o continente, rostos inexpressivos, exaustos, como os refugiados de hoje, como os prisioneiros de tantos campos de concentração de tantas épocas.
E se a mancha cinza, antes de ser varrida para o nada, recebesse um raio de sol, uma pincelada de cor e humanidade, e saísse da repartição cinzenta de toda a sua vida e fosse caminhando para Copacabana, cruzasse os aterros, olhasse pela primeira vez o Pão de Açúcar, e percebesse, como quem começa a despertar de um longo sonho descolorido, a existência de cores, odores, sons, pessoas, bichos, as diferentes formas de vida que até então passavam esmaecidas por suas retinas cansadas, que despertavam, como as de Carlos Drummond (2004), para observar as pedras e outros seres e coisas que havia no meio do caminho.
E se o insípido, inodoro e incolor Cinzeno chegasse à sua rua, ao bar da esquina e começasse a saudar velhos amigos, que ele nem sabia que existiam?
E se chegasse a seu incolor apartamento, e lhe desse, como Elie Wiesel, em meio ao horror, uma louca vontade de dançar?
O que poderia ser, já que até aqui não tinha sido?
O que poderia emergir dessa massa informe, que provocasse um olhar, uma emoção, uma atenção? Poderíamos imaginar, como se fez com a Maria da Silva, e seguindo o que nos ensina Drummond (2004), ao fabricar seu elefante com seus poucos recursos, que encheríamos Cinzeno de algodão, de paina de doçura, e que este sairia pelo mundo, agora velho e recém-nascido, “faminto de seres e situações patéticas, de encontros ao luar no mais profundo oceano, sob a raiz das árvores ou no seio das conchas, de luzes que não cegam e brilham através dos troncos mais espessos”.
E o velho novo Cinzeno entraria no café de sempre e pediria uma caipirinha e um pastel, perguntaria pelo resultado do jogo do Flamengo e repararia numa mulata roliça e voluptuosa, recém-saída dum quadro de Di Cavalcanti, que servia as mesas e que ele nunca tinha visto. E, por incrível que possa parecer, ela lhe daria um sorriso cheio de dentes brancos e olharia para ele como se ele tivesse chegado de outro planeta. E, por mais inacreditável que pudesse parecer, ele a convidaria para tomar umas cervejas depois do expediente, quem sabe ir a uma gafieira para dançar, e se Deus lhe estendesse sua infinita misericórdia, quem sabe, talvez, terminar a noite enroscados numa primeira e, quem sabe, inaugural noite de amores, humores, cores, fluidos e rumores?
E se, depois dessa experiência até então inimaginável, numa das tardes cariocas, nosso anti-herói descobrisse, entre inúmeras possibilidades líquidas, o vermute Cinzano, e, de tanto tornar-se aficionado desse adocicado estimulante, tanto a sua nova e primeira parceira, naturalmente Dalva dos Anjos, e seus novos e primeiros amigos decidissem passar a chamá-lo de Cinzano, nome agora mais apropriado para esse novo mundo que ia descobrindo?
Aonde essa aparentemente sem pé nem cabeça narrativa pode nos levar?
Pode levar-nos até onde queiramos ir, pois nos coloca um dilema que se apresenta desde tempos imemoriais: quem determina o destino? Há de fato um destino? Onde estará? Nos genes? Nas fantasias inconscientes desde as primeiras relações de objeto? Nas mãos divinas? No acaso ou na necessidade? E quando termina uma vida? E quando alguém se aposenta?
Enquanto nos debatemos nessas questões transcendentes, que desafiam a filosofia e a psicanálise, e tantos outros saberes, por onde andará Cinzeno?
Parece que o diviso, num passo mais firme que incerto, com uma tonalidade mais colorida que opaca, com um riso mais audível que o silêncio espesso de sempre, de mãos dadas com Dalva dos Anjos, sim, deve ser Cinzeno-Cinzano, que descobriu que não existe caminho já traçado, e que o caminho se faz ao caminhar.
V. Performance científica
(Por Marion Minerbo)
Novembro de 2017, xxvi Congresso Brasileiro de Psicanálise. O tema oficial é Morte e Vida, Novas Configurações. Entro em uma sala em que três colegas propuseram uma mesa intitulada A vida em cinza. Era sobre As Patologias do Vazio, tema que me interessa. Qual seria a contribuição dos trabalhos apresentados? Sento-me e aguardo.
Sonia Eva Tucherman lê um conto. Como boa literatura, o clima criado pela escrita nos faz mergulhar diretamente na subjetividade do personagem, Cinzeno. Surpresa! Adentramos o universo psíquico de pacientes cujo sofrimento nos remete, sem sombra de dúvida, às patologias do vazio. A metapsicologia estava toda lá, nas entrelinhas. Reconhecemos uma forma de ser e de sofrer em que a miséria simbólica condenou o sujeito a uma existência sem criatividade psíquica. O princípio do prazer está fora de questão, nesta vida pautada pela pura repetição. É angustiante a descrição de um recém-nascido que não passa de uma trouxa sem nome, e cujos movimentos pulsionais caem no vazio. O impacto estético produzido pela leitura é poderoso. O conto clínico emociona.
Há, é claro, originalidade em apresentar essa forma de sofrimento psíquico por meio da literatura. Ainda mais em um congresso brasileiro. Mas só isso não poderia ser responsável pela emoção intensa que foi tomando conta de mim à medida que ouvia os outros dois colegas da mesa, ambos comentadores.
Também em forma de conto, Susana Muszkat imagina e descreve quem teria sido a mãe de Cinzeno. Nova surpresa! À medida que escuto, apreendo perfeitamente as características do universo subjetivo no qual o infans precisou se constituir como sujeito. Evidentemente, seu conto-comentário estava referido não apenas a “Construções em análise” (Freud, 1937/1975), mas a toda uma teoria sobre o traumático, e seu impacto na constituição da subjetividade.
A descrição das condições de vida de Maria da Silva, no limite do humano, permite entender a necessidade das clivagens profundas que garantiram, minimamente, sua sobrevivência psíquica (Roussillon, 2012).
Reconhecemos o preço pago por essa defesa radical: a desconexão não apenas do próprio mundo emocional, mas até do próprio corpo. É terrível a descrição de uma mulher que só se dá conta de que está grávida momentos antes de dar à luz! Nessas condições, como sonhar seu bebê? Que conexão poderia ter tido com seu mundo emocional?
Cláudio Laks Eizirik finaliza a mesa com um terceiro conto-comentário. “E se...?”. Reconhecemos aí a descrição de um processo analítico. Nas entrelinhas, há uma teoria psicanalítica da cura. É no campo transferencial-contratransferencial com sua analista, Dalva dos Anjos, que a libido começa (volta?) a fluir. Investido e erotizado, Cinzeno vira Cinzano. Não por acaso, Cláudio cita Manuel Bandeira, Saint-Exupéry, Elie Wiesel, Drummond, Di Cavalcanti. Trazendo imagens oníricas e poesia, ele indica a relação necessária entre o enriquecimento do universo simbólico e a vida psíquica.
A descrição literária do resgate da subjetividade morta-viva de Cinzeno é, em si mesma, emocionante. Mas não era apenas cada uma das apresentações que estava produzindo em mim aquele tremendo impacto estético. Afinal, as relações entre literatura e psicanálise são antigas.
Ali eu estava testemunhando três outras coisas.
Primeiro, a literatura não estava a serviço da psicanálise, nem a psicanálise a serviço da literatura. O que era novo era a desconstrução das fronteiras entre esses dois gêneros feitas pelos três colegas, a apresentadora do caso clínico e os dois comentadores. Por isso ultrapassa o que conhecemos como “conto clínico”. Esses colegas estavam inventando um gênero híbrido, tornando fluidas as fronteiras entre literatura e metapsicologia, dentro do mais puro espírito da pós-modernidade.
Além disso, o tríptico que eu estava presenciando não estava acontecendo em um sarau, na casa de alguém. Nem em uma seção do congresso destinada a trabalhos sobre a interface entre psicanálise e literatura. Era uma mesa oficial sobre psicopatologia - patologias do vazio - num congresso brasileiro de psicanálise.
Por fim, não eram apenas três excelentes apresentações em forma de conto. Havia um diálogo propriamente psicanalítico entre elas. Eram dois comentários sobre um caso clínico, como estamos acostumados a ver. Mas eu estava testemunhando uma quebra de paradigma: aquele tríptico era uma apresentação científica na forma de performance.
O gesto dos três colegas me remeteu a Marcel Duchamp, que em 1917 faz entrar um urinol em um museu, intitula sua obra de “Fonte”, e inventa o ready made. As fronteiras entre a vida e a arte estavam sendo desconstruídas. Como sabemos, o gesto do artista quebrou um paradigma e abriu um campo imenso de possibilidades no campo da arte.
Naquele dia, naquele encontro científico, o tema do congresso - Novas Configurações - estava sendo “executado/realizado” em uma mesa, produzindo impacto estético na plateia, e, ao mesmo tempo, discutindo as patologias do vazio. Era uma verdadeira performance científica. Havia um trânsito fluido, uma porosidade entre psicanálise e arte. Espero que essa quebra de paradigma abra novas possibilidades e propicie vida longa à psicanálise.