Anne Lise de Moisè Scapatticci, atual editora do Ide, convidou-me a republicar o artigo sobre as origens poéticas da obra de Bion, escrito há 11 anos para o Jornal de Psicanálise, também a convite das então editoras, Candida Sé Holovko e Miriam Malzyner. Resultado de estudos anteriores sobre as raízes do trabalho de Bion (Sandler, 2002b, pp. 59-87), contemplou mais amplamente uma delas - a literatura -, que já havia chamado a atenção de psicanalistas e críticos literários no Brasil e no exterior, entre os quais destaco Meg Williams e Mary Jacobus (2006), que os citaram em suas publicações.
O modo com que posso expressar gratidão pela oportunidade dada por Annelise é similar ao que penso que todos nós, analistas, adotamos, quando algum paciente nos procura para obter uma análise; observamos algo, tentamos dizer aquilo que observamos e vivemos, e o paciente retorna, dando-nos nova oportunidade de descobrir algo mais, ou de reformular aquilo sobre o que havíamos conversado antes. Isso pode ocorrer em uma sessão, na segunda ou alguns minutos depois. Ressalto que há similaridade, mas não equivalência: a solicitação de Annelise para republicar um artigo inserido na atividade de falar sobre psicanálise difere do exercer-se psicanálise. Analogamente, a função do paciente em análise será feita pelo próprio artigo, “Bion e poesia”, que será submetido a uma autocrítica, pela oportunidade dada por Annelise, que pode ser expressa pela frase, “no entanto... onze anos depois, vejo isso diferente...”. Poderei corrigir, por supressões ou acréscimos, aquilo que não me foi claro há onze anos.
Instrumentos de um psicanalista: objetivos de uma análise
Psicanálise é um ofício prático, e para toda prática faz-se necessário o uso de ferramentas. Proponho que façamos como os músicos: usam o nome “instrumento” como variação do termo “ferramenta”. Não tinha isso claro há onze anos. Suponho que um psicanalista necessite ter clareza sobre seus instrumentos de trabalho. Não poderei elencar os instrumentos que fui descobrindo ao longo dos últimos onze anos, que resultam em um livro (Sandler, 2021h). Limito-me aos que me parecem vinculados ao nosso tema; a ordem não é apenas alfabética, implica prioridade:
Instrumento autocrítica
Pacientes nos procuram, em parte, por autocrítica, embora quase sempre inconsciente, por sentirem-na desprazenteira (indo contra o princípio do prazer-desprazer): negam-na assim que se manifesta, fantasiam que podem expeli-la, por identificação projetiva, no ambiente externo: familiares, amigos, médicos, que lhe dizem, “você precisa fazer análise”. Ou fantasiam que pode ser expelida para seu próprio corpo, o ambiente interno, sob forma de queixas somáticas; a divisão é esquemática, usualmente as duas formas aparecem conjugadas. Enfatizo que inicialmente a autocrítica é do paciente, para com ele mesmo, mas, quando procuram por análise, ficou fantasiosamente expelida. Usualmente, vão fazê-la a partir daí direcionada ao que eles pensam ser seu analista, através do fenômeno alucinatório denominado por Freud transferência. Alguns pacientes reabilitam-se para a autocrítica durante uma análise minimamente bem-sucedida. Alguns, que já a tinham experimentado de modo ego-sintônico, podem desenvolvê-la durante o processo de análise.
Existe alguma outra atividade científica que se possa comparar à psicanálise no que se relaciona ao exercício de autocrítica, como instrumento de trabalho cotidiano? Penso que sim: cientistas e artistas o fazem, e o método científico de ensaio e erro é uma das manifestações de autocrítica. Para se tornar um analista, é necessário submeter-se a uma análise pessoal, para detectar e lidar com o fator “equação pessoal” (Freud, 1926/1990j, p. 220). Psicanálise parece ser uma das ciências cujo caminho foi apontado por Kant em pelo menos dois aspectos importantes: a aplicação do “criticismo” ao próprio “sentido interno da alma” (“alma”, no jargão da época, corresponde ao que hoje denominamos o aparato psíquico individual), vindicando na prática um projeto que lhe pareceu impossível na época, uma “psicologia empírica” que encontraria um lar não na filosofia, mas em uma “Antropolologia detalhada correspondente à doutrina empírica da natureza” (Kant, 1781/1980, p. 412).
No artigo original, tive a pretensão de definir essa [coisa-não-coisa], ou a sublime compactação de realidade material e psíquica (Freud, 1900, pp. 611-613) chamada “Poesia” (p. 157). A definição foi apenas para efeito operacional, específica para os leitores do artigo. Todos os nossos atos mesclam graus variáveis de realidade material e psíquica (imaterial).
Na época em que escrevi “Bion e poesia”, escrevi apenas “apreensão da realidade psíquica”. Estava em dúvida se o termo mais adequado era esse. Atualmente, penso que ao falarmos - ou se escrevermos - apenas realidade psíquica, estaremos contribuindo para a falta de noção entre os membros do movimento psicanalítico do conceito de Freud, e, principalmente, da realidade que ele tentou observar. Estaremos coonestando a falsa clivagem entre “matéria” e “mente” que, parece-me, tem empobrecido em demasiado a filosofia, atualmente, desinteressada de investigar dois “temas”: mente e verdade (Rorty, 1982, Cap. 6).
Nessa época, também não tinha uma noção mais ampla sobre a obra de T. S. Eliot, mencionada pela primeira vez por James Grotstein (1981) como inspiração para Bion. Preferi não a inserir no estudo escolhido por Annelise. Nesses onze anos, percebi a presença de situações homônimas (na realidade e verbalmente) nas obras de Eliot e Bion. Por exemplo, o uso das palavras “Memória” e “Desejo” no capítulo “The burial of the dead” (“Enterrar os mortos”), provocado pelo fenômeno da Primeira Guerra, que inicia a poesia The wasteland (Terra arrasada). Mais do que isso: as duas obras se caracterizam por tentativas de apontar a existência de algo que transcende tempo e espaço; formalmente, há mescla de muitos autores em uma mesma página. No entanto, isso não é original de Eliot, e os dois o compartilham com outros autores, como Bacon e Goethe - citados por Bion. A biblioteca de Bion tinha uma cópia do Collected poems - mas não havia anotações à margem quando a examinei. Mais do que essas situações homônimas, encontrei na obra de T. S. Eliot uma observação que me parece útil para psicanalistas, e pode ser encontrada, sempre em desenvolvimento, na obra de Bion, como um todo. A utilidade verifica-se em sessões de análise e também na possível evolução, e não extinção, do movimento psicanalítico. Parece-me algo introjetado na obra de Bion: “autocrítica produz poesia; heterocrítica produz retórica” (Eliot, 1923/1963). Autocrítica é necessária para a tentativa de ver o que não é possível olhar, ouvir o que não se escuta, para procurar “o que será que me dá, que me bole por dentro” (Holanda, 1976), para ir aquém e além das aparências, para lampejar alguma invariância em uma psicanálise real. O “aqui e agora” fornece validação empírica, materializando, “de repente, não mais do que de repente” (Moraes, 1938), o que até então era prevalentemente imaterial.
Positivismo
Quando escrevi “Bion e poesia”, pensei que o leitor poderia ter ciência a respeito do avanço, no mesmo espaço-tempo histórico, feito pela psicanálise e também pela física quântica e relativística sobre as pregações da religião positivista inventada por Auguste Comte (1896/2000), intitulando-se a única ciência possível. Antes de publicar esse estudo, tive a oportunidade de divulgar quais são as raízes científicas da obra de Bion - não tenho dúvida, e a evidência tem base empírica de investigação, de que essas são suas origens mais fundamentais, elementares. O detalhamento crítico - incluindo exemplos clínicos - pode ser examinado em outros locais, lançado sob a forma de artigos em periódicos2 e em livros, no Brasil e no exterior; e também como verbetes em um dicionário, que se tornou referência mundial e será publicado em português (Sandler, 1994; 2000c; 2001a; 2002a; 2005/2020a, pp. 348, 413, 417, 446, 567, 696; 2006; 2008a; 2008b; 2011; 2015/2021a, p. 69; 2015/2021b, p. 155).
Hoje, esse pensamento me parece um preconceito. Então, talvez seja útil fazer a tentativa de sintetizar algumas conclusões desses estudos: Comte desprezou o exercício da intuição, misturou nacionalismos3 com o exercício excludente de “razão pura” sobre qualquer alternativa. Marcou o clímax de uma tradição iniciada por São Tomás de Aquino e Descartes, elevando os critérios positivistas à condição de árbitros absolutos para julgar o que seria científico, ou não, o mero esgrimir de racionalismos (Freud, 1911/1990i)4 em que não é possível “distinguir profundidade, de palavreado superficial” (Kant, 1783/1980b, p. 7), tentando extinguir o método crítico de Kant, dedica uma frase para desprezar toda sua obra:
Kant dividiu as ideias humanas em duas categorias: quantidade e qualidade. Se isso fosse verdade, destruiria a universalidade da Matemática, mas a concepção de Descartes da relação do concreto com o abstrato em Matemática aboliu tal divisão, provando que todas as ideias de qualidade são redutíveis para ideias de quantidade. (Comte, 1896/2000, p. 64)
Para isso, a tradição cartesiana erigiu divindades superiores, com o nome de “postulados”, sobre causas e efeitos totalmente materializados; sobre predições de eventos, assim que se elucide uma causa. Entronizou a inanição de instrumentos adequados para observar e lidar com a natureza humana, e de seus sofrimentos e vicissitudes - atividade reservada para autoridades eclesiásticas do cristianismo. Ciência cuidaria apenas de fenômenos materializados. Embora tenha tentado estudar a obra de alguns teóricos da ciência, citados em outros estudos, foi apenas na obra de Bion que pude descobrir mais um fator: teorias de casualidade sempre são apresentadas sob formas narrativas (Bion, 1962/2021a, pp. 110-114). O exemplo dado por Bion é a forma de apresentação dos mitos; essa concretização, facilmente visualizável por imagens antropomórficas dos fatos. Bion recomenda explicitamente que “se ignore a forma narrativa” para prosseguir a investigação sobre o complexo de Édipo (Bion, 1963/2004, p. 57). Experiência em análise permite-me fazer a hipótese de que pretendem deixar a atividade científica do exame da natureza humana e de suas vicissitudes esterilizada de sua real complexidade, ao negar sua plenitude de paradoxos irresolvíveis, idêntica à da vida real:
P. A. - Mistério é vida real; e a vida real é o interesse da análise real. O jargão passa por psicanálise, assim como se substitui música por som, poesia e literatura por fluência verbal, pintura por trompe l’oeil. Não se observa “autoassassinato” real, e o suicídio acidental passa por coisa real, planejada, elaborada economicamente até o último detalhe para criar efeito real. (Bion, 1977/1996, p. 80)
Não se podem ver literatos como os escritores de mitos, Dante, Shakespeare, Goethe, Racine, Verlaine, Machado de Assis (apenas exemplos entre centenas), fazendo parte do grupo dos esterilizadores da complexidade, nas representações que tentaram fazer da vida. Teria sido por coincidência, ou engano científico, ou engano artístico, que Freud observou a existência - por exemplo - de um “complexo de Édipo” (Sandler, 2014)?
Persistem afirmações exaltadas, como se fizessem parte de alguma competição olímpica para ser dono de alguma verdade absoluta que ficasse isenta de dúvida: de um lado, o fascínio entusiasmado de muitos membros do movimento psicanalítico (Sandler, 2015/2021a, p. 70) por manifestações artísticas; implicitamente ou não, advogam que psicanálise poderia ser substituída por literatura e filosofia. Seria uma reação ao mesmo fascínio entusiasmado, mas por manifestações científicas, em que psicanálise poderia ser substituída por neurociência, ou psicologia cognitiva, em uma “compulsão à repetição” (Freud, 1920/1990b), ou o “eterno retorno” a outras alternativas prometidas como “superiores”, paradisíacas, que já foram propagandeadas, formando tradição daqueles que não podem aprender da experiência - iniciando-se com as “dissidências” de Jung, Adler e Stekel? Podem ser agrupadas por duas tendências aparentemente opostas, que proponho denominar “realismo ingênuo” e “idealismo ingênuo” (Sandler, 2003a)5. A primeira abriga pessoas que acreditam poder conhecer a realidade (o mundo, o universo, externo e interno a nós) baseando-se apenas nas percepções oferecidas pelo nosso aparato sensorial - legalizando produções alucinatórias concretizadas, de natureza esquizoide, por clivagem forçada entre “corpo” e “mente”, negando a realidade psíquica. Odeiam literatura: um fascínio negativo (-L, na notação sugerida por Bion) (Sandler, 2013/2021c, p. 13). A segunda abriga pessoas que acreditam conhecer a realidade apenas através do que a mente de cada pessoa individual fantasia que essa realidade é, legalizando produções alucinatórias paranoides, negando a realidade material e privilegiando produções “mentais”. Adoram literatura, mas não a apreendem: fascínio positivo (L). As duas posturas expressam a mesma invariância básica, não observada, expressa por fascínios e entusiasmos: subserviência ao princípio do prazer-desprazer, configurando onipotência e onisciência destrutivas, fortemente sexualizadas, por “onipotência do pensamento” observada por Freud (2011b, p. 87). Essas tendências podem ser exemplificadas nas obras de Paul Ricœur (1977, p. 835) e Adolf Grunbaum (1984), cujos escritos, absolutamente virgens de experiência clínica em psicanálise, parecem-me evidências de manipulações advocatícias engenhosas de símbolos verbais, para provar o que antecipadamente já estava “provado”? Igualam-se e unem-se na alegação de que psicanálise é uma forma de literatura, uma narrativa. Tornou-se prevalente na intelligentsia, com o advento dos pós-modernistas (Lyotard, 1979/1984), a roupa nova do imperador idealista, impondo privilégio das “formas narrativas”, disfarçadas de semiótica - o combustível do que hoje em dia se denomina, na mídia política, fake news, mentiras. A união equivale à de dois partidos políticos, como os “aliados” e “soviéticos” contra os “nazistas”: instável, se desfaz assim que o inimigo comum - nesse caso, psicanálise - tenha sido vencido. Passam a guerrear contra si mesmos, pois o impulso - superioridade - é guerreiro.
Nos últimos trinta anos tem havido uma espécie de paz, as guerras verbais cedem espaço para um pseudodiálogo, com o surgimento de duas novas disciplinas substitutivas: “neuropsicanálise”, afirmando que psicanálise nunca levou em conta neurologia; e “neurociência”, dizendo que neurologistas não eram cientistas antes dela; seus expoentes exibem condescendência superior com a obra de Freud (Kandel, 2012), outorgando-lhe uma “antevisão” daquilo que hoje é defendido pela “neurociência”, mas que “não dispunha dos modernos métodos de investigação da neurociência”, desqualificando a metodologia e instrumental psicanalítico. Ecoam os vários transplantes de disciplinas filosóficas já propostos, como substitutivos: fenomenologia, existencialismo, estruturalismo, pragmatismo, heideggerianismo, e muitos outros “ismos”.
Os dois “partidos” foram discriminados por Freud em várias ocasiões, e antes mesmo de descobrir uma metodologia que denominou psicanálise: percebeu a ausência do instrumental que fascina “realistas ingênuos”, conforme pode-se constatar no estudo sobre afasia (Freud, 1891/1953b). Desenvolveu-o praticamente em A interpretação dos sonhos e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Em relação aos que proponho denominar “idealistas ingênuos”, podem-se considerar os alertas para André Breton (Kaplan, 1989) em relação à confusão de psicanálise com o “surrealismo”. Em relação a confusões com literatura: “A questão da análise leiga” (Freud, 1926/1990j, p. 198). Em nosso meio, alguns tentaram enfocar a situação de complexidade, um conceito criado pelo matemático Gregor Chaitin (Sandler, 1997b, pp. 290-291), mas isso se deu apenas na obra de Bion, baseando-se no trabalho de um divulgador (Chuster, Soares & Trachtemberg, 2014)6. Complexidade seria reserva de alguém, ou de alguma disciplina? O aparato psíquico tem menor complexidade do que a de todos os aparatos humanos, como o neurológico, endócrino, ósteo-muscular etc. (Sandler, 2003b)?
Instrumento formulações verbais
Há uma questão científica fundamental: nenhuma ciência, nenhum ofício, pode dispensar o uso de formulações verbais. Matemática e física usam formulações matemáticas; química, formulações químicas; música, formulações musicais, mas sempre introduzidas e auxiliadas por formulações verbais: palavras, sintagmas, metáforas.
Também me parece absolutamente fundamental que possamos emular, ainda que minimamente, o cuidado que Freud nos legou: uso de formulações verbais o mais precisas possíveis para tentar comunicar suas observações participantes (Sandler, 2009/2021, p. 53) nos fatos a serem observados. É a condição sine qua non de qualquer ciência - depois reconhecida por Bronislaw Malinowsky na antropologia e por Werner Heisenberg na física. Desse modo, para examinar as raízes literárias na obra de Bion, usarei os termos origem, raiz, auxílio e subsídio, evitando o termo mais usual: influência. Afirmar que alguém foi “influenciado” por outro presume íntimo conhecimento pessoal, ou acesso igualmente íntimo à biblioteca do autor, no caso de ele ter falecido. Sem os quais mergulha-se, sem saber nadar, no poço sem fundo das ilações idiossincráticas, imaginosas e autoritárias. Típicas de leitores apressados que tentam substituir desinformação por presunções ideológicas; ou preferências puramente pessoais - assunto de análise pessoal.
Não me parece útil, psicanaliticamente, afirmarmos, a posteriori, o que nos dá a sabedoria mais fácil e barata possível, afirmar que as “origens” e “raízes” do trabalho de alguém sejam aquelas que cismamos que seriam, ou que inventemos que seriam. Nossa sociedade, assim como outras antes dela - por exemplo, a de Viena, na época de Freud -, abriu as portas para pessoas com várias formações, sem preconceitos; um efeito colateral, talvez ecomicrossocial, do evento macrossocial guerra é que algumas pessoas sempre tentam “puxar a brasa para sua sardinha”, fazendo defesas apaixonadas de seus preconceitos pessoais, demasiadamente vinculados às suas formações pessoais. Pertencimentos a grupos são falsos; a fortiori, quanto outorgados por outros grupos, posteriores no espaço-tempo. Concentrações de grupos em movimentos sociais não caracterizam as contribuições de autores; a nomeação dos grupos é sempre arbitrária. Será que o Século das Luzes, criando os enciclopedistas na França, terminou, se observarmos os contínuos desenvolvimentos da ciência ocorridos desde então? (Sandler, 1997a, p. 359). Inexistia algo similar ao movimento romântico na antiga Grécia, ou na Inglaterra elizabetana, cantada pela obra de Shakespeare, mas sem os nomes? Acabaram? Estudiosos nutrem dúvidas sobre essas localizações no tempo, negando a transcendência da verdade, dos princípios básicos da biologia e da física, e da atemporalidade do inconsciente. Esse tipo de localização temporal tem finalidades políticas - não artísticas, nem científicas. A falsa ciência denominada “eugenia”, o movimento social dela derivado, da “higiene mental”, e o movimento cultural do “modernismo” surgiram no mesmo espaço-tempo histórico no qual se descobriu a psicanálise. Servem de exemplos dessas classificações: roupagens para arbitrariedade política. Um crítico literário no Brasil, outrora afamado, afirmou haver um tipo de célula comunista na obra de Machado de Assis; alguns clérigos afirmam que o primeiro comunista teria sido Jesus Cristo; exemplos de defesas de falsa pertinência (Sandler, 2001b) a grupos.
Alguns autores afirmam ter sido influenciados por outros, reconhecendo-os sob a forma tradicional em ciência, ao terminarem os estudos com citações bibliográficas. Foi o caso de Bion, do modo parcimonioso que lhe era típico:
Robin - Pensei que o senhor diria ser é um psicanalista freudiano. Ou é um kleiniano? P. A. - Gostaria de reconhecer meu débito para com Freud e Melanie Klein; no entanto, os dois poderiam sentir-se afrontados por tal atribuição.
(Bion, 1977/1996, p. 144)
Alguns de nossos instrumentos
Todo instrumento contém graus variáveis de materialização. Em nosso caso, um deles é a compaixão interessada por pessoas que sofrem, denominadas “pacientes”; em si, uma primeira materialização. Nós, psicanalistas, e nossos pacientes nos constituímos como materialização de uma atividade, em si, imaterializável: a psicanálise. Toda atividade o é, em graus variáveis: puro movimento.
Psicanálise se constitui geneticamente de um modo idêntico ao que fez uma época constituir a medicina, antes de ela ser clivada em centenas de atividades: enfermagem, histologia, neurologia, psiquiatria, psicanálise, genética, fisioterapia, fonoaudiologia, bioquímica... E muitas outras: algumas das quais nem sequer são praticadas mais por médicos.
Qual seria essa constituição genética que permite um exercício de psicanálise que possa ter como consequência a obtenção dos objetivos dessa disciplina, tornando-se indistinguível desses objetivos (Sandler, 2020b)? Preciso de uma frase para nomeá-la: amor e consideração a uma verdade específica, a realidade de que nossa natureza humana se caracteriza por sofrimentos; alguns, danosos; outros, necessários à manutenção da vida (Freud, 1937/1990a, p. 248; Bion, 1960/2000b). Isso inclui autocrítica quanto a percepções de graus individuais de um ódio a essa mesma verdade: obtenível, até certo ponto, em nossa análise pessoal. Se a pessoa quiser desempenhar o ofício de analista, essa atividade tem de ser denominada, pela interferência de Carl Jung na burocracia do movimento psicanalítico, aceita por Freud, “análise didática” (Ellenberger, 1970).
Aproximações sob o vértice psicanalítico à realidade material e psíquica, que totalizam nossa natureza humana (Winnicott, 1954-1967/1988), possibilitaram lidar, em graus variáveis, com os modos de reação às vicissitudes e aos sofrimentos, destrutivos ou não. E permitir desenvolvimento ou degeneração (intensidade) a esses modos, seja útil, seja destrutivo (qualidade). Usando o esquema teórico proposto por Freud, inspirado na medicina, das séries complementares (Freud, 1917/1990g, pp. 37, 362, 379), pode-se dizer que há incrementos ambientais na constituição genética, inata. Não é privilégio de psicanalistas.
Há dois métodos que nos permitem aproximações à realidade material e psíquica (Sandler, 2000a):
Similaridades entre esses dois métodos
Em uma analogia com a teoria de fotografia, há um “círculo de confusão”. Pode-se representá-lo matematicamente pelos diagramas de Euler,7 em que se visualizam, teoricamente, áreas de intersecção.
Uma área de intersecção é que ciência e arte são atividades práticas. Outra similaridade é que tanto cientistas como artistas fazem uso de um instrumento imaterializado, que pode ser denominado “intuição sensível” (Sandler, 2000b); em nosso caso, uma intuição analiticamente treinada (Bion, 1965/2004, p. 32).
Diferenças
Paradoxalmente, no entanto, há uma diferença de raiz, inconciliável, entre ciência e arte: são práticas diferentes, com métodos diferentes e objetivos diferentes. Nós, psicanalistas, tentamos apresentar uma pessoa a ela mesma, no que se refere à sua própria natureza humana, e oferecer-lhe uma perspectiva sobre vicissitudes e sofrimentos diferente daquelas que a própria pessoa possa ter. Isso, no caso das pessoas que obtiveram alguma perspectiva pessoal que lhes pareceu desfavorável. Freud (1920/1990b; 1924/1990c) e depois Abraham, Klein e Bion, apoiados em Freud, demonstraram que, para algumas pessoas, há simpatia e empatia por vicissitudes e sofrimentos: os casos de sadismo psicopático, não delinquente (Sandler, 1969, p. 263), inato, por narcisismo e inveja primários (Klein, 1957). O intuito de todos nós, analistas, é o de auxílio, individualmente, para descobrirmos (área da cognição, nas funções de ego), em casamento com o paciente, alternativas nos modos de lidar com essas vicissitudes e sofrimentos, antes desconhecidas por ela e por nós. Nossa audiência é feita de duas pessoas reais: o paciente e nós mesmos (Rickmann, 1950). Há uma tentativa de ajuste da pessoa a ela mesma; mas nunca um ajuste social - que pode até ocorrer, mas como efeito colateral.
Artistas tentam representar a natureza humana e seus sofrimentos, mas de modo grupal: não podem fazê-lo, nem se interessam por isso, voltados para indivíduos enquanto estão sendo artistas; nem ajudar pessoas especificamente, em que pesem argumentações advocatícias sobre o “papel social da arte”. De qualquer modo, sendo papel, trata-se de representação, e não apresentação (Flavell, 1984). A diferença entre as duas é séria, em psicanálise; Freud foi o primeiro a apontá-la. Parece-me ter sido pouco ouvido; o movimento psicanalítico ficou fascinado com representações. A audiência do artista é grupal, não individual - mesmo que alguns sejam benevolentes e recebam o público antes ou depois de sua arte.
Nesse aspecto, há uma diferença entre psicanalistas e outros cientistas: também têm necessidade de audiência grupal. Um trabalho não public-ado (o hífen foi uma ênfase gráfica dada por Bion) não é um trabalho científico (Bion, 1959/2000a, p. 37). Estendo a observação de Bion ao trabalho artístico; e a resiliência dos cientistas e artistas reais é sempre testada: Bach só conheceu algum reconhecimento social um século e meio depois de falecido; o mesmo ocorreu com Van Gogh. Reconhecimento social pode ser prova de falsa ciência e falsa arte. A única relação que nós, psicanalistas, temos com os grupos, é que precisamos tomar enorme cuidado com as reações grupais à psicanálise. De forma geral, têm sido francamente hostis, subservientes ao princípio do prazer-desprazer, e raramente ao princípio da realidade (Freud, 1910/1990e). Favorecem idolatria, por esperanças expectantes infundadas precocemente, valorizando efeito placebo, misturadas com iconoclastia, que surge quase sempre na hora em que a expectativa é frustrada: duas faces da mesma moeda destrutiva.
Há outros métodos? Só consegui perceber a existência desses dois, ao longo das últimas dezenas de milênios anos, desde a introdução do que antropólogos e biólogos denominam espécie humana (homo). Isso pode ser apenas indicação de minhas limitações.
Há evidências de que ciência antecede arte (Sandler, 2016), mesmo que formas científicas primitivas tenham tido, na observação filológica de Vico (1744/1979), que ser expressas verbalmente, por poesia. Bion, baseado em Vico, Shakespeare, Nietzsche e Freud, observou que mitos são “ferramentas” científicas primitivas, para “encontrar fatos” (Bion, 1963/2004, p. 65):
Freud reconheceu, como cientista, estar enfrentando um problema; para resolvê-lo, teria que usar o mito de Édipo; o resultado não foi a descoberta do complexo de Édipo, mas da psicanálise. (Ou seria o ser humano, ou a psique que foram descobertos, quando esses elementos tornam-se conjugados de modo constante? Nesse sentido, acredito que é necessário usar os mitos de Babel, ou Édipo, e da Esfinge como ferramentas, comparáveis às formulações matemáticas. (Bion, 1960/2006, p. 203)
Seria possível enumerar os nossos instrumentos? E nomeá-los, para melhor discriminar o ato de usá-los, no que tange a elucidar os graus variáveis de materialização que possam ter? Vou tentar: precisamos do instrumento que Bion denominou “intuição analiticamente treinada” para lidar com pacientes, como expressão fenomênica daquilo que descrevi à página 6: Amor. O ato, decorrente dessa intuição, é denominado atenção. Que vai se materializando por meio do aparato sensorial humano. Com base na atenção, materializamos uma interpretação, que se dá por meio de formulações verbais: palavras, sintagmas. Interpretação configura nossa comunicação com um paciente - e pode usar de outros métodos, não verbais, como mudanças de semblante e atitudes motóricas. A materialização fundamental é dupla: a análise pessoal do analista e o analisar de outras pessoas. Se tomarmos psicanálise como uma situação total, tratar-se-á nesse caso de um ato científico: aproximações transitórias à realidade, que tenho proposto denominar ato de apreender a realidade material e psíquica.
É necessário, sob o vértice científico em psicanálise, claramente expresso por Freud como postura fundamental para o exercício psicanalítico, e por outros depois dele, tentarmos obter a maior precisão possível em nossas formulações verbais (palavras). Freud tentou fazer esse exercício. E eu estou tentando falar de uma das descobertas de Freud, essa que me parece, sem incorrer no risco de exagero, talvez a mais importante, em termos de teoria da ciência: que nós, seres humanos, abrigamos uma determinada realidade, correspondente a uma formulação verbal a mais precisa que ele pode obter, extraída da medicina interna (Gross, 1998). É um aparato psíquico capaz de apreender realidades materializadas e imateriais; que funciona segundo dois princípios (do prazer-desprazer e da realidade) e três sistemas (consciente, pré-consciente e inconsciente); e que a realidade é material e psíquica: “duas formas diferentes” de uma mesma “existência”, ou seja, da mesma realidade (Freud, 1900/1953a). Freud, pela formação e ofício médico - cuidar de indivíduos com sofrimentos -, trabalhava com a noção de que temos vários aparatos e sistemas (neurológico, endócrino etc.).
Foi por mera coincidência ou por ser mau escritor que Freud - homem que recebeu o mais valorizado prêmio de literatura alemã (Freud, 1930/1990f) - escreveu sobre sua observação clínica com a maior clareza possível, nesses mesmos termos que estou escrevendo agora: unindo as duas “formas de uma mesma existência” pela conjunção “e”? Não usou a conjunção “ou”. Temos aqui um obstáculo, observado por Bion como o exercício que podemos fazer de “-K”: a crença na superioridade do ato de des-entender, sobre o entender. Bion observou a situação em análise de indivíduos. Proponho examiná-la nos grupos (Bion, 1962/2021a, p. 152). Expressa-se pela questão do pouco saber, dos mal-entendidos e falsas controvérsias presentes naquilo que tentam impor os pós-modernistas: “leituras”. Em que podem desprezar a apreensão do sentido original dos vários autores, ficando apenas com sua própria interpretação do texto. Isso não me parece ser uma questão de psicanálise, mas no movimento psicanalítico - pelo menos naquilo que dele conheci, até hoje. Uma impressão pessoal, baseada em experiência de quase meio século de frequência a seminários, congressos, grupos de estudo e associações de pessoas que se interessam por psicanálise, em alguns países, e na leitura de centenas de trabalhos em periódicos e livros. Não pude, até agora, fazer estudo estatístico que quantificasse a prevalência dos membros do movimento que insistem, sem jamais ter lido o original, que Freud tivesse escrito “ou”.
A conjunção “ou”, ilusória, baseada em pouco saber - que figurou como mote do trabalho de onze anos atrás -, cria uma situação social análoga à de dois lutadores ou partidos políticos para ver qual ganha do outro; a consequência é que muitos desses membros ficam na posição de estarem fazendo uma atividade superior - “psicanálise” - a todas as outras atividades que cuidam do ser humano, por exemplo, medicina, psicologia, enfermagem, engenharia etc. Junto com Gley Pacheco Costa, tentei deixar essa situação mais clara, recentemente, em um estudo patrocinado pela ipa (Sandler & Costa, 2018/2021, p. 255).
Origens e raízes da obra de Bion
Com a ajuda de um literato, Monteiro Lobato, por meio de sua personagem Emília, vou estreitar nosso foco: a raiz da obra de Bion, mesmo, “na batata” (Monteiro Lobato, 1936/1954), é a obra de Freud:
Estou convencido da força da posição científica da prática psicanalítica. Acredito que a prática dos psicanalistas em fazer da psicanálise uma experiência essencial de treinamento lida com as dificuldades fundamentais no momento, pois disponibiliza o consciente e o inconsciente para correlação; mas não considero menos premente a necessidade de investigar a fragilidade que se origina de uma construção teórica defeituosa, da insuficiência da notação e de falhas no cuidado metodológico e na manutenção do equipamento psicanalítico (“Cuidado”, “manutenção”, “equipamento” - novamente o modelo implícito). (Bion, 1962/2021a, p. 135)
Por falar em batatas... e não é que figuram como fulcro para mover uma alavanca, em uma obra fundamental de Bion? Precisou fornecer para seus leitores uma visão daquilo que lhe pareceu crucial para a tarefa psicanalítica, a obtenção do insight - ato princeps no qual o casal analítico expressa amor à verdade e consideração à realidade -, mas notou uma tendência prevalente de entendimentos racionais. O ato - insight - é predominantemente imaterial; pareceu-lhe possível através do que ele mesmo denominou, “transformações em O”. Lançou mão de uma analogia metafórica para comunicar esse ato: “não se pode conhecer a realidade, do mesmo modo que não dá para cantar batatas; pode-se plantar, arrancar e colher batatas, mas não se pode cantá-las” (Bion, 1965/2004, pp. 169, 162, respectivamente). O texto, como qualquer texto, permite qualquer leitura. Vou propor uma, cuja leitura fosse suficientemente superficial e parcial, e que tomasse uma parte - batata - pelo todo, em que a invariância fosse em literatura (Bion, 1965/2004, p. 17), e a literatura fosse de um dos três tipos seguintes: culinária, agrícola ou, se o leitor fosse acostumado à leitura de autores clássicos brasileiros, uma invariância em Quincas Borba, de Machado de Assis. Poderia levar o leitor a conclusões inexistentes no texto do autor. Nos dois primeiros casos imaginários, a possível não há vencedores nem perdedores. Esse tipo de alucinose fica por conta das elites autoritárias da meritocracia política (Sandler, 2012) no grupo, já apontado por Freud, que faz o movimento psicanalítico (Freud, 1914/1990h): “O pressuposto subjacente ... é que as personalidades do analista e do analisando podem sobreviver à perda de sua capa protetora de mentiras, subterfúgio, evasão e alucinação, e podem até ser fortalecidas e enriquecidas pela perda. É uma suposição fortemente questionada pelo psicótico, e a fortiori pelo grupo, que se baseia em mecanismos psicóticos para sua coerência e sentido de bem-estar” (Bion, 1965/2004, p. 129). Bion contrastava o que me parece ser uma apreensão parcial, transitória a “O” - a realidade última, o “tornar-se” (não pode ser confundido com o “vir a ser” filosófico existencialista) -, com a prática dos processos de conhecer: transformações em K. Em minha experiência, observo que se pode intuir e usar aproximações à realidade última, que permanece desconhecida - seja lá do que for, ou por quem for. Escolhi o termo “apreensão”, que não implica necessariamente conhecimento, mas reconhecimento: Freud observou que todo conhecimento é um reconhecimento.
Preciso agora de uma analogia biológica: um casal parental. Há uma raiz afluente na obra de Freud, secundária historicamente: a obra de Melanie Klein.
Parthenope Bion-Talamo, em conversa comigo e com Ester Hadassa Sandler, disse-nos de dois projetos de seu pai. Um deles encabeça o artigo “Bion e poesia”. O outro: um livro de 200 páginas, em que no cabeçalho de cada uma haveria o escrito “Obrigado, Freud”, deixando todo o resto das páginas em branco. Lembro-me de ter dito para Parthenope algo assim: “teria sido o caso de colocar, com o tempo, evocações sobre o que estivesse se recordando da obra de Freud?”. De modo típico, Parthenope sorriu e parou para pensar, em tom benevolente e terno. E exclamou algo que pode ter sido parecido com: “que pena... papai [Dad] não está mais aqui; bem pode ter sido isso mesmo!”.
Transdisciplinaridade
Há outras origens da obra de Bion? Se existem, podem ser encontradas segundo o testemunho dele? Sem dúvida. Não há geração espontânea; tudo tem uma história; psicanálise é baseada em historicidade. Quando preciso obter maiores aproximações à realidade e me defronto com alguns enunciados, ou afirmações, ou hipóteses e também teses, tento adotar o método de uma história transdisciplinar das ideias na civilização ocidental (Lovejoy, 1940), segundo o vértice psicanalítico, para verificar evidências do enunciado - seu valor-verdade. Penso que, se muitas pessoas, que nem sequer se conheceram, e viveram em tempos diversos, em culturas diversas, usando métodos diferentes, chegam à mesma conclusão, então aumenta a probabilidade de essa conclusão ser verdadeira. É um critério de cientificidade inverso ao critério de reprodutibilidade de experiências científicas proposto por Popper (1963/1974). A noção surgiu-me, como se fosse um tropeço, na observação de Francis Bacon: “toda novidade não passa de esquecimento” (1625/1985). Impactou-me ao ponto de torná-la mote de todos os meus livros desde então. Psicanálise me parece ter surgido por uma aplicação do método transdisciplinar na medicina neurológica e psiquiátrica, sob o vértice da historicidade: Freud estudou a ontogenética emocional dos indivíduos e a filogênese da espécie humana, levando em conta a história da religião e os mitos. O mesmo método é usado pela genética e embriologia; médicos e psicólogos clínicos guiam-se por historicidade para elaborar anamneses.
Freud nunca usou o termo “transdisciplinar”, pois faleceu onze anos antes da cunhagem desse termo por Robert Merton: o sociólogo mais influente nessa disciplina, após Durkheim e Lévi-Strauss (Merton, 1948, p. 2). No entanto, a noção só me ficou explícita após meu contato com a obra de dois autores, J. G. Miller (1965, p. 193) (em 1977) e Wilfred R. Bion (em 1981, principalmente após a leitura de Uma memória do futuro) que obtive uma espécie de guia de estudos transdisciplinares. Percorrendo um caminho em marcha à ré, ou retrospectivo, sob o vértice clínico fornecido pelo método psicanalítico, pareceu-me possível fazer o exame de uma história das ideias na civilização ocidental, cujo resultado foi elaborar algumas hipóteses operacionais. A mais geral é que os caminhos e descaminhos da ciência dão-se de um modo similar ao descrito por Melanie Klein: o movimento em tandem entre as posições esquizoparanoide e depressiva, mas em termos grupais. As evidências para essa hipótese estão na série A apreensão da realidade psíquica.
Analogias metafóricas e metonímicas
Retorno às semelhanças entre ciência e arte, mas de modo mais específico, para enfocar uma semelhança entre literatos (poetas e prosadores) e psicanalistas: ambos se utilizam do que vejo como o mesmo instrumento (Sandler, 2020b) básico, as formulações verbais, para se comunicar com suas audiências. Mas também aqui residem diferenças, fazendo uma analogia retirada da biologia e também tomando emprestada uma imagem de Winnicott (1961/1989): diferenças genéticas, determinando que literatos e psicanalistas (assim como filósofos e psicanalistas, mitólogos e psicanalistas etc.) não são irmãos. Nem parentes. Embora possam ser amigos, quando estão fora de sua atividade específica.
Vou emular uma tradição em teoria da ciência: proponho fazermos um espectro imaginário (até o ponto a que foi minha investigação) no qual podemos colocar marcos: as obras de Platão (c. 380/1994), Shakespeare e seu tradutor e continuador na língua alemã, Goethe (Eckermann, 1823-1832/s.d.) e Freud (1914/1990h), no que tange à recomendação explícita que fizeram a respeito da utilidade de apelo a analogias, quando precisamos comunicar um fato por meio de formulações verbais.
Analogias são um método artístico? Penso que não; sem dúvida, podem-se fazer analogias com alguma obra de arte específica, mas a própria analogia não o é. Proponho qualificá-las como artesanato. Entre nós, Antonio Sapienza aventou a hipótese de que nós, membros do movimento psicanalítico, somos artesãos. Alguns de nós, psicanalistas, usamos analogias para nos comunicar com nossos pacientes, e também com nós mesmos. Aquilo que Bion qualifica de “mito privado” (Bion, 1963/2002) é uma analogia científica que fazemos, para nós mesmos, sobre a estruturação pessoal de nosso próprio aparato psíquico.
Nesses últimos dez anos, constatei que todas as analogias verbais que possamos fazer contêm um componente visual intrínseco e intenso; e que duas de nossas capacidades humanas, a de que alcançamos a possibilidade de obter uma linguagem e a de que podemos produzir imagens visuais, foram as que mais impressionaram Freud, impulsionando-o (entre outros fatores) à descoberta da psicanálise. Tenho tentado demonstrar a situação materializada e imaterial (psíquica, emocional) de possuirmos essas duas habilitações em outras investigações transdisciplinares (Sandler, 2002c; 2013/2021e); são fatores na comunicação possível para Freud, Klein, Winnicott e Bion.
Qual seria a função do que chamo órgãos subsidiários? O exame científico - uma análise crítica - de uma história das contribuições de Bion permitiu demonstrar que existe na realidade o que denomino subsídios artísticos, enraizados - mas não são raízes - em sua obra, no que se refere a algumas das formatações dela. Usando uma teoria de psicanálise propriamente dita de Bion: fornecem alguns continentes, para um contido, é a obra de Bion (1962/2021a, p. 152).
Uma das contribuições de Bion foi uma revalorização dos mitos, desprezados antes de Freud e... depois dele também, por um método que proponho denominar o contínuo esquecimento, na prática analítica, de analisar-se a estrutura individual do complexo de Édipo. Green, há vinte anos, apontou o contínuo esquecimento da sexualidade, no movimento psicanalítico. Tenho acrescido à observação dele o contínuo esquecimento das verdades humanas que Freud nos legou - análise de sonhos, associações livres e a noção real de que o sistema inconsciente é um artefato teórico, útil na prática, mas não algo materializado, como se fosse uma coisa.
Parece-me que depois da publicação de Elementos de psicanálise muitos psicanalistas ficaram mais livres para usar observações míticas em seu vocabulário cotidiano, com pacientes. Notei, ao longo dessas últimas décadas, tanto quando escrevo como quando atendo pessoas em análise, que preciso lançar mão de obras de literatos como auxílio subsidiário para expressar em palavras algo que eu mesmo não posso, a não ser com esse empréstimo. Não posso dizer se isso ocorre com outros colegas, que nunca conheci, pois faleceram antes que eu nascesse, ou em uma época em que não tinha condições de contatá-los. Pude confirmar, com alguns poucos que também era o caso com eles, mesmo que não tenham pensado em definir a situação desse modo. Posso fazer a hipótese de que isso ocorreu com Freud, pois ele deixou a situação implícita, e, em outras palavras, lançou mão do mito de Édipo na versão de Sófocles, e de outros literatos: Shakespeare, Goethe, Schiller, Hoffmann, Heine, Nestroy, entre dezenas de autores. O mesmo ocorreu com Melanie Klein - com a obra de Shakespeare e de Julian Green -, com Winnicott, Bion e André Green - o único desses autores com quem tive contato pessoal. Foi um dos que concordaram, em correspondência pessoal, com esse meu modo de observar a origem subsidiária de seu trabalho através de manifestações artísticas e filosóficas.
Vou usar uma analogia, que me parece realística, usando a observação de Freud sobre a realidade material e psíquica: a obra de Bion seria análoga ao nosso corpo. As origens artísticas na obra de Bion têm função auxiliar, subsidiária, análoga às que os vários aparatos e sistemas funcionais auxiliares têm para com nosso corpo. Não são exatamente raízes, mas dirigem-se a elas - e as nutrem. Nossos nutrientes não são “nós”. Funcionam paradoxalmente, vestindo, “superjacentes”, como nosso sistema tegumentar, e embebem, subjacentes, do mesmo modo que funcionam, por exemplo, nossos sistemas vascular, linfático e nervoso: capilarizam-se no corpo; em nossa analogia, na obra de Bion. No entanto, o corpo - contido - não é seus subsídios, mesmo que deles dependa. A imaterialidade não é dada por nenhum deles. Em outros termos: a obra de Bion não é literatura, nem arte, nem música, a não ser como analogias.
Toda a contribuição de Bion traz uma visão paradoxalmente binocular (1962/2021a, pp. 98, 102 e 148)8 da natureza humana e de suas vicissitudes - tanto nas sessões de análise, como na teoria. As origens científicas, na mesma analogia, são a realidade material e psíquica do corpo humano. Foi com a obra de Bion que descobri mais uma verdade descrita por Freud, algo que antes me era nebuloso: que o ego é corporal (Freud, 1923/1990d; Fontes, 2011).
Origens artísticas subsidiando uma psicanálise
Estreitando um pouco mais nosso foco sobre as origens subsidiárias artísticas da obra de Bion: proponho classificá-las do seguinte modo:
literárias, incluindo mitos hebreus, homéricos, cristãos, poesia teológica renascentista e romântica, e prosa renascentista e moderna
musicais, incluindo a obra de Bach, Mozart, Beethoven e Brahms3. pictóricas, incluindo a obra de Leonardo da Vinci e dos impressionistas.
O leitor pode se recordar que revi as origens científicas em outros trabalhos. Pois considero que psicanalistas não têm intuito idêntico ao dos artistas. Não precisam ser obrigatoriamente dotados da capacidade pessoal, habilidade e treinamento que permite aos artistas em literatura o manipular de formulações verbais, para evocar ou, no caso dos profissionais da propaganda, manipular emoções na audiência.
Seria lícito exigir ou presumir que todo psicanalista deveria ser um poeta? Essa questão me parece importante para a formação. Em São Paulo, a primeira analista didata, a dra. Adheleid Koch, analisada por Otto Fenichel, dividia os analistas em duas categorias: “analistas de divã” e “analistas escritores”. Afirmava preferir os primeiros, para se analisar; o fazia conhecendo a situação: o dr. Fenichel analisou oito pacientes em toda sua vida, e escreveu um livro de 850 folhas, Teoria psicanalítica das neuroses, antes visto como se fosse uma bíblia em institutos de formação, mas hoje esquecido.
Apreciar arte não é privilégio de psicanalistas, nem tampouco questão de superioridade de “formas expressivas”, seja de psicanálise ou de outra disciplina qualquer - como assinalou Ernst Cassirer, trazido a nosso meio por Isaias Melsohn (2001). Três dentre os autores naquele quarteto imaginário formado por obras que, a meu ver, mais se aproximaram da realidade material e psíquica - Platão, Goethe e Freud - nutriam restrições quanto à música por observarem que podia manipular emoções nas audiências (Sandler, 2002c); parece-me que não era à música em si, mas a certos músicos e intérpretes de música, que a utilizaram, e ainda utilizam, de modos destrutivos, como transes impensados por incitação à violência guerreira. Comparo “músicos” aos “membros do movimento psicanalítico”: ambos, materializações possíveis de música e de psicanálise, respectivamente. Músicos e psicanalistas não são a própria música nem a psicanálise; “tornam-se” (Bion, 1965/2004, p. 149), “de repente, não mais do que de repente”, transitoriamente, um “O-música”, ou um “O-psicanálise”, caso um músico esteja disponível para uma audiência - outros músicos e ouvintes; o mesmo para literatos, escultores etc. - e um psicanalista esteja disponível para um paciente.
Pensamentos sem pensador
Bion - até o ponto que foi minha investigação - foi a segunda pessoa, na história das ideias na civilização ocidental, a fazer a hipótese, útil na prática psicanalítica, da existência de “pensamentos sem pensador”: aguardam um pensador que as pense; e ao pensá-los, o pensador extingue o pensar e o próprio pensamento. A primeira foi Descartes (1637/1952), mas advogou o contrário: que seria racionalmente absurdo haver um pensamento sem um pensador. Bion fez uma análise crítica dessa advocacia racionalizante: pensamentos seriam “epistemologicamente anteriores” ao pensador (Bion, 1963/2004). Pensamentos são impostos ao aparato psíquico, por necessidade: marcam o início dos processos de pensar (Bion, 1961/2021b). Minha analogia pessoal: pensamentos são unidades que “vagam” no ambiente, como se fossem oxigênio no ar, aguardando um pulmão para inspirá-lo. Quem tiver pulmão poderá respirar; quem tem aparato de pensar poderá obter pensamentos. O desenvolvimento científico do conceito demorou oito anos para ser feito e pode ser revisto em outra contribuição (Sandler, 2021f, p. 803).
Suponho que o subsídio dado pelo que pode ser visto como origens literárias da obra de Bion constitui-se como pensamento-sem-pensador - quando surgem para analistas por associações livres (Freie einfallen), de modo espontâneo e não procurado conscientemente, nem justificado racionalmente, nem imposto por manipulações engenhosas de símbolos de acordo com modismos. Serão subsídios úteis ao ato analítico, como me parece que podem ter sido para Bion - e para Freud.
O que ocorre que faz um pensador assassinar o pensamento assim que o pensa? Minha observação é que o faz através do que denominei de “síndrome de senso-concretização” (Sandler, 1988, p. 62), pelo exercício da função antialfa (Sandler, 1997c, p. 43), nosso órgão interno operacional, que pode, movido pelo ciclo de avidez-inveja, executar materializações excessivas. Observei, em análise de pessoas genuinamente interessadas em arte, e especificamente em literatura - incluindo análises didáticas de candidatos à formação analítica -, que os fascínios entusiasmados materializam excessivamente a própria arte, tornando o que era um meio uma finalidade em si mesma. Certamente há técnicos que constroem ou reparam pincéis, máquinas fotográficas; isso difere de pintar ou fotografar. Nada impede que um analista seja um artista - poeta, prosador, o que for -, a não ser qualificação genética. No entanto, validar toda a produção idiossincrática que possa existir apenas por estar de acordo com as tendências preferidas pela intelligentsia e adotadas por membros da academia, ou de universidades, ou dos órgãos midiáticos, como tem sido o caso em nossos tempos, tão influenciados pelo pós-modernismo avesso às aproximações científicas à realidade. Negam o status científico não apenas da psicanálise, mas de toda a ciência. Pode fornecer fama secular (como dizem os religiosos) aos tendenciosos e à meritocracia política nos movimentos em torno do “O-arte” ou “O-ciência”. Essas atividades, que têm utilidade burocrática momentânea, quando são feitas sem tendenciosidades vantajosas socialmente a pessoas individuais, diferem de arte ou ciência. Comentei essa situação, que me parece desfavorável à ciência e à arte, em outros estudos, também feita a convite dos editores (Sandler, 2015; 2018).