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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo July/Dec. 2022  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.12 

Cinema

MANIFESTO É PRECISO CONHECER LUIZ GAMA, É PRECISO ENFRENTAR O RACISMO

Gustavo Gil Alarcão1 

Psiquiatra, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutor em Ciências pela FMUSP. São Paulo

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo


Toda lei que contraria o direito em seus fundamentos é uma violência; toda violência é um atentado; o legislador que o decreta é um tirano; o juiz que o executa um algoz; o povo que o suporta, uma horda de escravos

(Luiz Gama, 1880)

Ninguém ‘tá ligando pra pretos morrendo Se não é com você, que que ‘tá acontecendo?

Sentado no muro, conforto, isento

(Criolo & Tropkillaz, 2021)2

É preciso conhecer Luiz Gama. Com esse título pretendemos iniciar discussões sobre temas importantíssimos e pouco desenvolvidos pelas lentes da psicanálise: racismo e escravização. Gama é um homem de biografia impressionante, pelas agruras e dores enfrentadas, pela coragem e potência demonstradas. A constatação de que poucas pessoas conhecem sua história é perturbadora, resultado dos processos ativos de apagamento da memória daqueles que efetivamente combateram as injustiças em nosso país. Não podemos mais tolerar tamanha injustiça em nossa sociedade, injustiça essa que tem cara e cor, e que imputa à população negra prejuízos reais e simbólicos. Não bastam palavras de afago, como nos mostra a história de Gama.

O filme Doutor Gama conta a história de Luiz Gonzaga Pinto da Gama, personagem da história brasileira cuja vida precisa ser conhecida e discutida. Militante antirracista já em meados do século 19, Gama foi protagonista de uma série de ações concretas para combater o racismo e a escravização em São Paulo. Através do filme, debateremos alguns aspectos do racismo e das consequências da escravização no Brasil.

Ainda não há literatura que tenha apontado com consistência as questões relativas à escravização e ao racismo no seio da psicanálise, é fato, que muitos de nossos grandes autores não redigiram sequer uma linha sobre esse tema, provando que o laço cultural tem total relação com os temas postos em evidência pela psicanálise. Freud escreveu muito sobre a questão judaica, mas nada sobre o racismo contra negros e negras. Não podemos exigir nada de Freud, mas podemos refletir e preencher tal lacuna. Se a questão do racismo contra negros não era uma questão para Viena da época freudiana, ainda que os nazista e fascistas tenham perseguido ativamente negros e negras, ela é intransponível para a realidade brasileira.

Como diz José Moura Gonçalves Filho: “O exame da intimidade faz momentos em que os psicanalistas arriscam deixar tudo abstrato e sem história, entregando-se a uma metapsicologia sem origem nos outros” (2021, p. 177). É, nessa direção, crucial assumir a importância da história e da sociologia para abordar questões raciais e escravagistas. A metapsicologia tem potência necessária para não se coadunar com discursos que culpabilizam vítimas, apontam para suas identificações com o agressor ou silenciar-se. O espaço necessário de uma fala reparadora e assertivamente esclarecedora é nítido: pessoas são vítimas de racismo; racistas e escravizadores não podem ser naturalizados e nossas instituições têm o dever e o papel de reparar injustiças históricas, como o reduzido acesso de negros e negras ao atendimento psicanalítico e à formação psicanalítica.

O parágrafo acima é fundamental para a compreensão deste artigo, uma vez que aqui a metapsicologia dialogará com a cultura tendo o filme como apoio, e a história através dos autores, como questionadora sobre o papel de nossa comunidade frente à estas questões. Todos se posicionam contra o racismo, mas porque então, poucos efeitos concretos são observados? Em uma das últimas cenas do filme, Gama interpela veementemente a plateia que acompanhava o julgamento no qual atuava dizendo “vocês estão cometendo esses crimes e dormindo como anjinhos … quando um escravo mata seu senhor ele não está cometendo um crime, ele está agindo em legítima defesa” (De, 2021, 1:18:00). É impossível presenciar tais cenas com neutralidade. Vidas têm sido sistematicamente tiradas, por assassinatos, humilhações e restrições impostas por uma lógica perversa que se ajeita entre nós: a lógica de uma sociedade racista.

Cada geração tem diante de si dilemas e a escolha sobre a necessidade, a validade e o modo de enfrentar tais dilemas. Luiz Gama foi um homem que escolheu enfrentar os seus (Alarcão, 2019). Aquilo que conhecemos de sua vida, e que foi retratado com bastante fidedignidade no filme, mostra a coragem de ir em frente. Encarou questões sempre muito cruciais para qualquer pessoa, que diziam respeito à sua própria vida, à sua liberdade e à sua dignidade. Gama não recuou. Quando adulto, tomou seu lugar na vida social. É muito fácil reconhecer o caráter heroico de muitas de suas ações, mas evitemos esse caminho, pois ele não informa sobre as complexidades do mundo como ele é.

A fácil constatação da presença do racismo e a magnitude de suas consequências em nossa sociedade contrasta com o investimento dedicado para solucioná-lo. No caso da psicanálise, esta é uma verdade incômoda. Uma busca no banco de dados da Biblioteca da SBPSP Virginia Leone Bicudo revelará a pequena presença de textos sobre o tema racismo ou escravização. O mesmo ocorre no portal de Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), fonte de informação da Biblioteca Virtual de Psicologia (BVS-Psi). Ainda que recentemente esse interesse tenha crescido, é necessário assumir que se trata de movimentos localizados.

Por que as discussões contra o racismo despertam pouco e tardio interesse em nosso grupo analítico? Os versos do rap de Criolo são provocativos: “se não é com você, que que tá acontecendo?” (Criolo & Tropkillaz, 2021). Enfrentar essa questão com palavras, mas, sobretudo, com ações é emergencial. “Dá para ficar sentado no muro, isento?”. Se em seus 70 anos de história, ideias e ações tivessem circulado com maior vigor dentro de nossa instituição, tenho poucas dúvidas de que nossa contribuição ao enfrentamento do racismo seria mais clara e perceptível, o que, com certeza, teria produzido benefícios para todos.

Abordaremos o tema em duas perspectivas: primeiro o filme como Doutor Gama e partes da biografia de Gama, afinal. Segundo: uma articulação de algumas ideias de Frantaz Fanon e Primo Levi, com críticas à certa postura vaga diante dos horrores dos campos de concentração e da própria escravização. Emprestamos as críticas desses autores para provocar a metapsicologia: ela precisa ter cor e história3 se quiser ser levada a sério no enfrentamento do racismo e da escravização.

Um breve resumo do filme

Contar uma história é sempre transformar uma história. Logo no início do filme, quando Luiz Gama ainda era uma criança, filho de uma mulher negra com um homem branco, dois fatos decisivos ocorrem: a fuga de sua mãe e sua venda como escravizado, como forma de pagamento de dívidas do pai. Chorando, ele é transportado com demais escravizados da Bahia, para Santos, para ser vendido. Já na embarcação, registra-se uma cena de violência sexual contra uma mulher negra, elemento onipresente no filme e em muitas vidas reais.

Gama não é comprado, sob justificativa de ser “baiano”.4 Caminham longamente pela mata. O protagonista havia se aproximado de José, um senhor mais velho que lhe protege, mas logo os dois são separados pela logística do tráfico. Luiz é, então, mantido em cativeiro por uma família branca, como um escravizado que realizava trabalhos domésticos. Em determinado momento, essa família recebe a visita de um jovem advogado, que dá livros a Gama e estimula sua alfabetização. Além disso, esse advogado recupera um documento que comprova o nascimento de Gama como homem-livre, o que impediria sua escravização. A família branca queima os livros de Luiz e recusa esse documento, mas ele decide ir embora, sai andando pela porta da frente, de cabeça erguida.

Há um salto no filme, e temos Luiz apaixonado por uma bela jovem negra, para quem escreve poesias. Eles se casam e têm um filho. O protagonista se torna um rábula e passa a advogar em São Paulo, e em outras cidades, adquirindo notoriedade, principalmente entre a população preta. Na sequência, temos a cena central da trama: ele é procurado por José, aquele mesmo homem com quem havia viajado anos antes, para atuar na defesa de um jovem preto, escravaizado, chamado Francisco, que havia assassinado, seu proprietário, que violentava, estuprava e humilhava constantemente a esposa de Francisco. José era pai de Francisco. Hesita em assumir a causa, mas, no fim, decide trabalhar nela. Mostrase uma cena em que, durante uma viagem, é atacado por um bando de homens brancos que pretendem assassiná-lo. É salvo por um grupo de pretos, liderados por Juliana, que o havia visitado antes, oferecendo-lhe proteção, já que corriam boatos de sua atuação junto aos escravizados.

Antes do julgamento, o protagonista tem contato com a história de Francisco, já que decide passar pela fazenda onde vivia a família do homem branco assassinado por ele. Lá, uma cena emblemática: o diálogo entre Luiz e a viúva do branco fazendeiro que estuprava e seviciava escravizadas pretas, o que levou à morte da mulher de Francisco, que, revoltado, matou o criminoso. A viúva trata Luiz com desdém absoluto, comparando-o aos cavalos quando ele lhe pede, educadamente, um copo d’água. Ela sugere que ele poderia matar a sede no riacho, como fazem os animais.

Durante o julgamento, é recontado o brutal abuso vivido pela mulher de Francisco. As cenas transitam entre a argumentação de Luiz e do promotor Pedro, que já conhecera Luiz no passado, tendo demonstrado por ele e pelos pretos desprezo e rejeição. Agora, os dois duelavam no tribunal, cada qual evocando seus argumentos.

Ao final, Luiz consegue a absolvição de Francisco, dizendo que o júri faria história, porque enfrentava a realidade cruel da situação dos pretos e pretas, escravizados ou não no país. O protagonista escancara a hipocrisia da sociedade da época, conivente com as barbáries praticadas contra a população negra e absolutamente punitiva e radical contra atos praticados por pretos. Desenvolve-se a tese da legítima defesa do escravizado, em que a morte de seu proprietário seria um assassinato, mas não um crime.

Traços da biografia de Luiz Gama

Ligia Fonseca Ferreira tem se dedicado ao estudo da vida e obra de Luiz Gama, é a organizadora de Primeiras trovas burlescas e outros poemas de Luiz Gama (2000) e Com a palavra Luiz Gama (2011). Somando-se a esses trabalhos, temos os resultados das pesquisas de Bruno Rodrigues de Lima, que conseguiu reunir praticamente todo o conjunto dos textos publicados por Gama em suas Obras Completas (2021a, 2021b). Trata-se de uma pesquisa fundamental, na qual a obra de Gama foi organizada cronologicamente em 11 volumes, que ainda estão sendo publicados pela editora Hedra. Até o momento contamos com dois volumes: Democracia, com textos de 1866-1869 (Lima, 2021a) e Liberdade, que abrange o intervalo entre 1880-1882 (Lima, 2021b).

Desse acervo, o principal documento histórico sobre a biografia de Luiz Gama é uma carta redigida por ele próprio para seu amigo Lúcio de Mendonça, em que narra sua trajetória. Alguns desses fatos estão presentes no filme e não iremos repeti-los. Mas vale a pena destacar alguns dados como o fato de ter sido rejeitado por alguns compradores de escravizados por ser baiano. Como refugo, ficou na casa de Antônio Pereira Cardoso em São Paulo, quando, aos 17 anos, conheceu um jovem advogado Antônio Rodrigues do Prado Júnior, que o ajudou a obter papéis que comprovavam indubitavelmente sua condição de homem livre (Lima, 2021b, p. 78).

Após sua fuga, serviu como soldado até 1854, chegando ao posto de cabo, mas logo tendo seu cargo rebaixado por insubordinação, por ter reagido a um oficial que o insultara. Foi preso por isso, dedicando-se à leitura e à poesia. Fez-se, em seguida, copista do escrivão major Benedito Antônio Coelho Netto, que posteriormente o indicou para o trabalho, em que ficou até 1856. Em seguida, trabalhou como amanauense (funcionário de repartição pública que faz cópias e envia correspondências) na Secretaria de Polícia até 1868, foi demitido por turbulência (Lima, 2021b, p. 67).

Passou a escrever em jornais, com alguns pseudônimos como Afro, Spartacus e John Brown, e a trabalhar como advogado abolicionista, ficando conhecido como “o terror dos senhores de escravos”. Trabalhou em várias causas conseguindo a libertação de centenas de escravizados. Participou do Partido Liberal, casou-se e teve um filho. Em 1859, publicou seu primeiro livro, Primeiras trovas burlescas, utilizando o pseudônimo Getulino. Morreu em 1882, em São Paulo.

A hipocrisia social da época

Em várias cenas do filme, notamos a denúncia de uma sociedade amplamente racista. A história da escravização se constrói com base em alguns pilares e o racismo é um dos principais. Não podemos nos contentar com explicações que imputam responsabilidades e explicações exclusivamente ao contexto da época, por um fato simples e incontornável: não existe unanimidade absoluta na história humana. Desse modo, ainda que a sociedade fosse amplamente racista e que tais práticas fizessem parte do modus operandi da época, a existência de exceções deve nos fazer pensar nas complexas condições envolvidas que levam pessoas a decidir por essa ou aquela escolha, e deve também nos fazer compreender que não devemos apenas naturalizar fatos.5

O filme denuncia a hipocrisia em parte da sociedade, mostrando sob diferentes perspectivas a estrutura de uma sociedade racista, na qual brancos detentores do poder e da lei vigente exploram continuamente pretos e pretas. A estes é negado qualquer direito, ainda que os próprios documentos (“dentro da lei”) os garantissem. A hipocrisia é mostrada de diversas formas: com a venda de Luiz, com a queima dos livros, na visita de Luiz à viúva e durante todo o julgamento.

Contudo, ao assumir que a sociedade da época poderia ser caracterizada como racista, precisaríamos verificar individualmente o quantum de racismo entranhado em cada pessoa, para não sermos injustos e evitarmos saltos-mortais explicativos. Não basta dizer “sociedade racista”, mas, também, não se pode deixar de dizer “sociedade racista”. Aqui o filme nos ajuda imensamente, porque entramos no universo psicológico dos personagens, ainda que em breves cenas, e nelas que nos apoiamos.

Utilizamos a noção de hipocrisia de Chomsky que nos diz que “hipócritas são aqueles que aplicam aos outros padrões que se recusam a aceitar em si mesmos” (2003). Estamos em um tema no qual dissimulações, ocultações e deslocamentos para lá de problemáticos operam a todo momento. Quem entraria em contato com a dor do escravizado Francisco presenciando as humilhações reiteradas que ele e sua mulher sofriam? A quem reclamar: aos céus, à natureza ou ao lentíssimo inconsciente?

Diante dos efeitos da hipocrisia, o filme nos mostra algumas saídas: Luiz Gama não retruca as palavras da viúva, mas interrompe a conversa ao ser comparado ao cavalo com sede; Francisco decide matar o branco-abusador que estuprara sua mulher; José, pai de Francisco, aceita a recusa do tribunal quando lhe entrega comprovações de que Francisco não poderia ser julgado daquela forma, pois nascera livre; e, por fim, Luiz Gama discursa fortemente contra a plateia que clamava pela condenação de Francisco.

Quantas pessoas buscam análise para que tenham possibilidades de agir contra situações de hipocrisia? Qualquer um que já tenha presenciado ou escutado o relato de alguém que se sentiu humilhado simplesmente pelo olhar de desdém de outro que se julga superior, simplesmente por reproduzir automaticamente o que lhe foi transmitido direta ou indiretamente pela estrutura social racista na qual vive, sabe o que significam as consequências sobre aquela vida.

Mas quantos de nós concordariam com o argumento de Gama: “Francisco assassinou um homem, mas não cometeu um crime?”. Aqui residem aglutinadas e condensadas várias questões das mais importantes sobre esse tema. Estamos dispostos a tocá-las ou temos nos aproveitado do pulsante interesse pelo tema apenas para produzir palavras, palavras e mais palavras? Novamente, não se quer acusar ninguém, talvez e tão somente aqueles que sem pudor se afirmam racistas.

Psicanálise pode transformar o status quo?

Habituados a examinar intimidades e histórias, psicanalistas contribuem para a desconstrução do status quo, este que reproduz indefinidamente naturalizações equivocadas. Precisamos demonstrar que o racismo estrutural de nossa sociedade tem se mantido ativo pelas escolhas de indivíduos e instituições. A naturalização da crueldade, ou a banalização do mal, para usar expressão de Hanna Arendt é central na manutenção da estética do racismo. Nessa operação de estética-retórica abafa-se gravidade da realidade. Lembremo-nos sempre: pretos e pretas estão sendo violentados, humilhados e mortos, mais do que os outros.

Diz Bourdieu, sociólogo, em Razões Práticas “a experiência primária do mundo do senso comum [nem precisaria dessa expressão] é uma relação politicamente construída, como as categorias de percepção que a tornam possível” (2017, p. 119). Como psicanalistas, lidamos com experiências primárias do mundo. Habituados à microscopia relutamos em aceitar a presença de elementos político-sociais em nossas atitudes psicanalíticas.

Como encarar o gigante racista se ele, espertamente, se difunde e se esconde dentro, e somente dentro, de cada pessoa? Se duvidamos que as experiências primárias de mundo sejam politicamente construídas, como enfrentar a situação dessa perspectiva? Fazer o que temos feito: esperar, esperar e, simplesmente, aceitar. Novamente valeria indagar: quantos racistas procuraram análise por serem racistas? Quantas feridas racistas foram tocadas por interpretações psicanalíticas? Algumas certamente, mas poucas, definitivamente muito poucas.

Bourdieu insiste ao dizer que “o principal efeito da evolução histórica [e aqui não se precisa criticar evolução] é o de abolir a história, remetendo ao passado, isto é, ao inconsciente” (2017, p. 120). Exatamente, encravados e entranhados no inconsciente [ah, diria qualquer psicanalista] estão as fontes de manutenção dessa estrutura. Mas de que adianta saber isso? Quantos momentos racistas foram problematizados em análises? Poucos destes vieram à tona em textos psicanalíticos.

Não baniremos a crueldade da experiência humana. Mas, isto não é justificativa válida para refutar a inquietação. Essa tem sido uma desculpa-conveniente evocada sempre que as tensões aumentam. Que aumentem as tensões, a situação é calamitosa. Gama aponta o dedo para a público que presenciava o julgamento de Francisco, dizendo sem medo, “vocês têm o poder de mudar, mas, até agora têm sido hipócritas e convenientes. E, aqueles que não o são, que nos ajudem a engrossar o coro de vozes e ações para transformar essa realidade sombria” (De, 2021). Sim, devemos sempre repetir e lembrar que isso não é tarefa fácil, e que muitos têm tentado, não estamos aqui a inventar a roda.

Diz-se com efeito que o racismo é estrutural. A psicanálise pode ajudar a explicar essa situação. Se o próprio sociólogo evocou o inconsciente para assinalar o lugar onde a história habita sendo sentida e vivida, antes de ser nomeada, representada e apreendida, podemos reforçar essa argumentação, concordando que todos nós somos submetidos ao processo de socialização, mas se quisermos dar outro nome como simplesmente crescimento, amadurecimento ou desenvolvimento [nunca linear - nem precisaríamos lembrar disso, mas…], podemos, que é ao mesmo tempo, individual e coletivo. O trânsito entre essas instâncias, permanente e incessante, configura todos nós, mas, é certo - e para nós, psicanalistas, facilmente observável - que os princípios dessa configuração, sejam eles internos ou externos, dificilmente são reconhecidos. Veja que se precisou criar todo um campo de saber e prática dotado de métodos - ainda controversos para muitos -, o campo psicanalítico, no qual se evidencia, através de transferências e contratransferências, a complicação que é perceber e ser percebido como regido por “leis” ativas e, ao mesmo tempo, desconhecidas, ou, reconhecidas, mas recusadas.

Pois bem, ao desvelar a estrutura racista fundamental da sociedade sem negá-la, sem refutá-la contundentemente - e é aqui que a psicanálise por vezes escorrega-, contribuímos para essa reconfiguração. Dito de outro modo, é necessário ser cautelosíssimo com o modo de lidar com as consequências do racismo. É preciso lembrar que temos, na maioria das vezes, reiterado a força da estrutura, apontando os “complexos e masoquismos” das vítimas, algo que faria Fanon e Primo Levi espumarem, no que estariam certíssimos.

O status quo é antes de tudo coletivo. Precisamos inundar esse coletivo com reflexões e críticas sobre o seu modo de organização associando ações afirmativas que mostrem claramente a direção de nossas palavras e ideais, fornecendo, por exemplo, bolsas de formação para psicanalistas pretos e pretas, bem como aproximando a possibilidade de experiência psicanalítica dos que se interessarem por ela e que dela não se aproximam por razões quaisquer que não a falta de vontade e interesse. A psicanálise deve abrir-se incessantemente aos que se interessam por ela e não somente aos que podem frequentá-la, por qualquer razão (por exemplo: medo de se sentirem inferiorizados ou falta de recursos materiais para tal).

Em sua vida, Luiz Gama encarou os tribunais sem medo de ser humilhado. No filme, o personagem também enfrentou a viúva branca, sedenta por humilhar, sem abaixar sua cabeça. Ele deixa, assim, o ônus do mal-estar com aquele que tenta humilhá-lo. Isso é efeito da autoestima. Isto é efeito de alguém que não se curvou ao status quo. Efeito de alguém que escreveu diversas vezes para juízes e desembargadores apontando os inacreditáveis fatos racistas de sua época: prender pessoas que simplesmente faziam festa, aceitar assassinatos e estupros de escravizadas sem nada fazer, deportar pessoas (não somente pretos) por razões juridicamente banais, dentre outros. Todas essas ações estão retratadas em Obras completas (Lima, 2021a, 2021b) que precisam ser lidas.

Psicanálise para reforçar o status quo?

Jessé Souza em Como o racismo criou o Brasil afirma que o “racismo destrói o núcleo moral do indivíduo” (Souza, 2021, p. 130). Para investigar o racismo estrutural do país, ele diz que muito dos problemas e do desconhecimento do racismo advém precisamente da falta de análise de formas maia abrangentes de racismo: “se a reflexão é reduzida ao aqui e agora não somos capazes de reconstruir os elos que ligam os fenômenos sociais entre si” (Souza, 2021, p. 135). Nesse sentido, Souza demonstra a presença de um racismo global na qual uma raça, a “branca” imbuiu-se de dominar o planeta, portanto, a raça “negra” (e as demais raças). O racismo como fato-social foi traduzido em linguagem científica, tendo sido amplamente difundido pela academia do século 19 e início do 20.

O racismo foi primeiramente legitimado pela ciência, ainda que vozes dissonantes sempre tenham se manifestado contrariamente à tal pensamento. A psicanálise não contribuiu praticamente em nada no debate contra o racismo. A decisão de trazer Levi e Fanon para esse debate é justamente apontar para esse buraco na história da psicanálise, que sabemos, vem sendo preenchido ao longo dos últimos anos. Entretanto, nos parece fundamental assumir a ausência estrondosa do potencial psicanalítico para pensar e transformar a realidade racista de nossa sociedade.

Diz Primo Levi em Os afogados e os inocentes:

Não entendo muito do inconsciente ou do profundo, mas sei que poucos entendem disso e que esses poucos são mais cautelosos: não sei, e me interessa pouco saber, se em meu profundo se aninha um assassino, mas sei que fui vítima inocente, e assassino não; sei que os assassinos existiram, não só na Alemanha e ainda existem, inativos ou em serviço, e que confundi-los com suas vítimas [grifo nosso] é uma doença moral ou afetação estética ou um sinal sinistro de cumplicidade; sobretudo, é um precioso serviço prestado (intencionalmente ou não) aos negadores da verdade. Sei que no campo de concentração, e mais em geral no teatro humano, acontece tudo, e que por isto o exemplo singular demonstra pouco. Dito claramente tudo isto e reafirmando que confundir os dois papeis significa querer mistificar desde a raiz nossa necessidade de justiça. (2004, p. 37)

A história de Primo Levi não precisa de apresentações, e seu legado nos deixa testemunhos e reflexões viscerais sobre uma das experiências mais desorganizadoras de nossa história: os campos de concentração e extermínio nazista. Levi investiga minuciosamente os aspectos daquela realidade, indagando-se sobretudo, e o título de sua obra mais conhecida não deixa dúvidas: “É isto um homem?”. Frase que vale para pensarmos tanto a condição degradada das vítimas quanto a condição impensável dos sadismos dos torturadores e assassinos. Impressiona na obra de Levi, a franqueza e a busca pela verdade da reflexão: ele quer entender como pessoas comuns tornaram-se o que se tornaram naquelas condições humilhantes. Como pessoas comuns puderam seviciar, torturar, humilhar e assassinar com tamanha facilidade e prazer? A passagem que trazemos acima nos impactou, Levi cita em alguns momentos o fato de ter sido indagado algumas vezes as razões de não ter havido um levante ou uma rebelião nos campos de concentração, frases que aludiriam à certa passividade das vítimas diante daquele horror.

Levi é contundente ao afirmar que não se devem confundir vítimas com algozes e que por vezes a psicologia e a psicanálise foram usadas para isso. Quando ele diz que não interessa saber se em seu “eu profundo se aninha um assassino”, ele está justamente apontando para esse fato. A consagrada expressão freudiano “narcisismo das pequenas diferenças” dá margem à tais compreensões. Não se sabe de fato qual o nível de empatia nas relações humanas e nós, psicanalistas, precisamos demonstrar isso, não há nada que garanta a priori uma atitude que seja realmente empática e que vá a raiz das consequências do racismo.

Diz Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas:

Como psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais buscar uma lactificação alucinatória, mas a agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais. Em outras palavras, o negro não deve mais se ver colocado diante deste dilema: branquear-se ou desaparecer, mas deve poder tomar consciência de uma possibilidade de existir; dito de outra maneira, se a sociedade lhe cria dificuldades em razão da sua cor, se constato em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter distância”; ao contrário, meu objetivo será, uma vez elucidados os motivos, colocá-lo em condições de escolher a ação. (2020, p. 84)

Fanon é ainda mais contundente que Levi, porque ele delimita a questão de modo preciso. Racismo e escravização são questões sociais e coletivas, formadoras de mentalidades e subjetividades sociais e coletivos e devem ser enfrentados a partir dessa ótica. Portanto, a vítima de tais violências precisa ser reconhecida como vítima e ajudada a não confundir línguas. Ajuda a compreender o ódio legítimo que sente contra aquele que a agride e a humilha. Ódio-legítimo, portanto, que precisa ser reconhecido e auxiliado em qualquer forma de elaboração. Daí a capital importância de se conhecer a história e de se ter uma versão confiável dos fatos, não é possível equivaler os afetos. O ódio racista precisa ser diferenciado do ódio antirracista, eles não têm a mesma natureza. Tem raízes, motivos e destinos diferentes e precisam ser compreendidos em suas reais características.

Em dois autores fundamentais, encontramos críticas semelhantes à determinada maneira psicanalítica de abordar essas questões. Levi e Fanon, assim como outros, criticam uma postura estranha de culpabilizar as vítimas pelo terror a que foram submetidas. Esse tema merece aprofundamentos e, ainda que saibamos a importância dos conceitos de masoquismo e gozo, penso que tais críticas devem ser escutadas com muita atenção. A culpabilização ocorre de diferentes maneiras, que vai do silêncio complacente diante de pedidos clamorosos por apoio à simplificação dos sentimentos vividos nesses contextos. Como se esperasse da vítima outra resposta que não a passividade diante do horror e da humilhação. As análises precisam servir de fortes apoios para essas pessoas, porque em seus horizontes está o enfrentamento direto do status quo. Porque é ele que sustenta e alimenta a naturalização das crueldades. Crueldades isoladas não têm força suficiente para arrebatar grupos e sociedades.

O problema aqui não seria tão complexo, mas acaba se tornando. Levi e Fanon notaram que aas interpretações psicanalíticas que evocam “complexos de inferioridade” ou “masoquismos” nessas condições estão simplesmente erradas. São interpretações limitadas, que não alcançam as dimensões do problema em questão. Deixa-se de fora qualquer consideração sobre a sociedade circundante, na qual vivem as pessoas de carne e osso, nas vidas como elas são. Como hipótese, penso que isso possa decorrer de decisões voluntárias de alguns analistas, buscando isolar o individual e, com isso, assegurar condições favoráveis para determinada concepção metapsicológica. Pode ser adicionado relativo menosprezo pela história e pela sociologia, como saberes menores e, por vezes, pouco apreciados por alguns psicanalistas.

Em sociedades tão desiguais e injustas como a brasileira, a falta de consideração sobre esses aspectos pode interferir consideravelmente em qualquer análise. Quem diz isso são os próprios analisantes pretos e pretas, que pouco se aproximaram da psicanálise brasileira ao longo do século 20. Na introdução de outro excelente trabalho sobre o tema, no livro A cor do inconsciente de Isildinha Baptista Nogueira, derivado de sua tese defendida em 1998, Abrão Slavutzky, psicanalista e escritor, narra as reações de Françoise Dolto à fala de Isildinha no congresso Rencontre Latino-Américaine de Psychanalyse: “Me perdoe, não tenho o que falar. Sua fala sangra. Sua fala é você, a psicanálise lhe deve isso, temos que pensar sobre isso” (Slavutzky apud Nogueira, 2021, p. 17).

Isildinha cruzava o Atlântico para poder ser escutada. Ainda que a sociedade francesa também tenha que se haver com seu histórico escravagista e colonialista, naquele momento, psicanalistas conhecidos acolheram a fala da jovem psicanalista brasileira, contribuindo decisivamente para que desse seguimento em suas pesquisas sobre raça e psicanálise. Dolto e Radmila Zygorius, psicanalistas presentes no evento, também não deixaram a fala sangrante de Isildinha no abstrato terreno da metapsicologia, sem história e sem origem, para fazer alusão ao belo posfácio do mesmo livro escrito por José Moura Gonçalves Filho (2021).

De igual monta, Levi e Fanon apontam para essa questão, para uma maneira usual e equivocada em que analistas recusam a história, ou nada falam sobre ela, silenciando-se em relação aos tenebrosos efeitos racistas sobre cada vítima. A recusa à assunção do ódio contra o agressor, o temor da não-integração e o pavor dos arcaísmos e dos “primitivismos” talvez contribuam para uma atitude defensiva, que utiliza a metapsicologia como passaporte para o silenciar-se, quando o outro clama pelo contrário. Quando, na verdade, o apelo é para que lhe sejam fornecidas sustentações tais que lhe retirem qualquer sentimento de culpa ou responsabilidade por algo que ele não poderia evitar, por algo que sistematicamente e estruturalmente lhe retira e incute a vivência simbólica de ser menos, de valer menos e ter que aceitar tal lugar.

Sem questionar a estrutura desigual e injusta do espaço-tempo em que se vive, sem assumir que há privilegiados e vítimas, com medo de dar voz aos que estão às margens dessa estrutura para não produzir “ganhos secundários”, o que se faz senão reforçar o status quo? Sub-repticiamente contribui-se para a manutenção das injustiças e explorações, aludindo-se indiretamente para certa meritocracia daqueles capazes de se salvar e, portanto, proteger-se dos efeitos dessa estrutura racista. Quando realizei minha tese de doutorado, entrevistei vários psicanalistas e em determinada conversa, sobre Virgínia Bicudo, indaguei eminente colega sobre sua cor e as reverberações de sua raça no meio psicanalítico, ao que ele me disse que “não era importante, dava-se mais importância à última exposição de arte que ela havia frequentado”. Encerramos com a coragem de Gama, atualizada nos versos de Criolo (2021), “quem está ligando pra pretos morrendo? Se não é com você que tá acontecendo?”.

2 A música Clenae, parceria entre Criolo e Tropkillaz, é uma homenagem à sua irmã, Cleane, vítima da pandemia de covid-19. Pode-se perceber também o inegável teor crítico à realidade social do país, principalmente no modo enfrentar a pobreza e o racismo contra negros.

3 Fazemos uma clara alusão à obra de Isildinha Nogueira A cor do inconsciente.

4 Os escravizados que vinham da Bahia tinham fama de rebeldes, o que dificultava sua negociação nos tenebrosos mercados de vidas.

5 Quando abordamos fatos passados, precisamos estar atentos aos riscos do anacronismo. Luiz Gama nos oferece uma interessante perspectiva: o risco de tomar o passado e seus contextos a partir de unanimidades. Constata-se, sem muita dificuldade, a magnitude da escravização como fato social preponderante da época referida, contudo, através do próprio exemplo de Gama, podemos afirmar que o passado escravocrata e seus desdobramentos não eram vivenciados com unanimidade, já que houve resistência e luta. Isto nos permite questionar as visões sobre o passado, as quais, ao assumirem a presença de determinados contextos, praticamente os naturalizam, tamanha a dificuldade de assumir categorias que iluminem a exploração e as condições desiguais de vida, sustentadas pelo uso do poder e não por confluências do tempo e dos contextos.

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