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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo July/Dec. 2022  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.13 

Cinema

A FILHA PERDIDA1

Luciana Saddi2 

Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psicanalista, escritora e mestre em Psicologia pela PUC-SP. Autora de Educação para a morte (ed. Patuá). Fundadora do Grupo Corpo e Cultura. Coordenadora do programa de cinema e psicanálise da diretoria de cultura e comunidade da SBPSP em parceria com o mis e a Folha de S.Paulo. São Paulo

Raquel Plut Ajzenberg3 

Psicanalista, membro efetivo e docente da SBPSP. Autora de artigos publicados em revistas de psicanálise. Debateu no Ciclo de Cinema e Psicanálise (15/02/2022) o filme A filha perdida. São Paulo

2Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

3SBPSP


A filha perdida, de Maggie Gyllenhaal, é um filme adaptado do romance homônimo de Elena Ferrante, põe em evidência a complexa relação mãe/filha ao abordar questões e conflitos do universo feminino, como maternidade, sexualidade e casamento, profissionalização, juventude e envelhecimento, liberdade e obrigação.

Idealização da maternidade

A maneira de conceber o amor materno sofreu transformações históricas influenciadas pelo contexto social, político e econômico. Até pouco tempo atrás, a sacralização da maternidade prescrevia um amor incondicional aos filhos e era parte integrante do imaginário social - maternidade como realização máxima da mulher. Ser mulher, sinônimo de ser mãe. Pairava, como ameaça, que a mulher sem filhos estaria condenada à solidão e à incompletude. O filme questiona esse amor incondicional e a idealização da maternidade e traz o lado obscuro e intrigante atribuído, por vezes, ao feminino. A mulher que não se submete aos ideais sociais, ao papel atribuído a ela, é julgada e condenada.

São indispensáveis o cuidado e o amor que os outros nos dedicam, porém, esse amor não é garantido pela biologia ou pelo “instinto materno”, nem é incondicional. Existem variados modos de viver a maternidade. A capacidade de amar dependerá de cada indivíduo e das relações entre eles - o amor, construído numa dupla singular, não é necessariamente imediato, imutável e eterno. Se cada mulher percorre um caminho singular e contínuo no seu modo de ser mulher, isto se repete no processo de tornar-se mãe.

No filme, Leda, professora universitária, madura, discreta e solitária, de férias na Grécia, vê-se obrigada a conviver com uma família grande e barulhenta que frequenta a mesma praia. O encontro desperta em Leda memórias afetivas e dolorosas referentes ao casamento, já terminado, e às filhas, agora crescidas. O filme nos leva ao passado da protagonista, e antigas vivências, adormecidas, retornam. Momentos de ternura com as filhas pequenas entrelaçam-se a cenas que sugerem o difícil amor possessivo de sua filha mais velha, bem como o abandono afetivo do marido, preocupado com a própria carreira.

De volta ao presente, a trama foca a atenção especial que a professora dispensa, ainda que a distância, à relação conturbada da jovem mãe que encontrou na praia, Nina, com o marido e a filha, Elena, insistente no desejo pelos cuidados da mãe. Assediada pelo marido, Nina se esquece por alguns segundos da filha, que desaparece. Acompanhamos o desespero da família em procurá-la e o empenho de Leda, que a encontra. Leda é então reconhecida pela família, que passa a sentir uma consideração especial pela estrangeira. Logo em seguida, a garotinha perde a boneca e fica inconsolável. Todos a procuram sem sucesso. Paralelamente ao desespero da menina pelo sumiço do brinquedo, Leda parece atormentada e evasiva. Ela havia encontrado a boneca perdida - e a esconde.

A boneca perdida é uma personagem fundamental, que sustenta a trama ao condensar o desejo de possuir por completo o objeto de amor, oportunidade de elaborar a ambivalência afetiva, terror pela objetificação e dor diante de desilusões, separações e perdas.

O filme apresenta oscilações da professora, movimento de proximidade e afastamento dos outros personagens da trama. Há alguma interação, mas, imediatamente, Leda parece se arrepender e então evita, constrangida, qualquer tipo de relação. Talvez se afaste por medo da paixão avassaladora que viveu no passado e que a levou a deixar filhas e marido. Talvez o afastamento se dê pela ambivalência de sentimentos amorosos e agressivos, presentes na trama por meio de elementos da natureza que agridem, assustam ou se estragam. Talvez, pela culpa e vergonha por abandonar a família. Percebe-se que na solidão e em suas leituras encontra sossego para uma intensa perturbação. O movimento de aproximação e afastamento também ocorre em relação à boneca que Leda ocultou. Às vezes, esquecida no armário para depois ser recuperada e limpa e novamente esquecida em algum cômodo do apartamento. A professora age com a boneca como se estivesse cindida, e tal movimento lembra o jogo de esconde-esconde e revela o aspecto sombrio e enigmático da personagem.

Mãe egoísta?

Por que Leda abandonara as filhas e as deixara sob os cuidados do pai, que não colaborava nem se dedicava às meninas? Por que escolheu viver com o amante? As respostas invariavelmente julgam a personagem. Mãe egoísta é a primeira condenação, depois, louca desnaturada! Julgamentos não parecem corresponder à linha traçada pelo roteiro. A trama permanece em aberto, evita conclusões; mas envolve o espectador em um clima de estranheza e bizarrice.

Na praia, Leda está maravilhada pela mãe que se dedica à filha. Capturada pelo olhar apaixonado em que ambas estão imersas, parece absorta em pensamentos. Como se dissesse: elas se bastam. É a plenitude narcísica. Mais à frente, presenciam-se outras cenas, em que aparecem os espinhos da relação mãe/filha. Dissabores das paixões: posse do objeto, fusão, tirania e voracidade. E a criança, antes doce, torna-se demandante e despótica. A relação mãe/filha, complexo emaranhado de desejos e impulsos, muitas vezes contraditórios, traz sentimentos concomitantes de amor e ódio. A criança lida com o medo da perda do amor da mãe e seus impulsos destrutivos. A mãe, com os encargos excessivos, estranhamento, desilusões e raiva. A intensa ambivalência entre a menina e a mãe é bastante explorada no filme. Freud, em Sexualidade feminina (1931/1974), aborda faltas e queixas, exigências e insatisfações tão presentes na relação entre mãe e filha. Aponta o fato de que angústias de separação, fusão e intrusão remetem à fantasia de devorar ou ser devorada. Quanto mais intensa a ambiguidade entre amor e ódio, mais difícil é a separação e, consequentemente, a construção de um caminho próprio e autônomo. Várias cenas ilustram a tensão e o conflito mãe/filha. Nem filhas, nem mães comportam-se como bonecas. Seres vivos não vestem facilmente os papéis a eles atribuídos e se chocam. Podem querer possuir o outro por inteiro, mas raramente aceitam ser possuídos de forma mortífera.

Leda, em vários momentos do filme, parece viver a maternidade como perda, prejuízo, infinidade de exigências insuportáveis, sexualidade frustrada, num eterno adiamento de ambições pessoais. Por isso a fúria e o desejo de fugir. Chama a atenção a reação do marido quando a professora anuncia que irá abandonar a família. Ele se desespera e ameaça entregar as filhas aos cuidados da mãe de Leda, que grita, em desespero, “uma mãe de merda”. Somos então apresentados ao horror à mãe rude, ignorante e amarga. Um mundo do qual ela sempre quis fugir. Constata-se a traumática relação com a mãe e o risco de reedição transgeracional.

Mulher-gincana

No universo feminino, as injunções, imagos e valores são excessivamente incrustados e pretendem aprisionamento/paralisação: uma menina deve; uma mãe tem; mulher não pode. Cada vez que a mulher sai dessas posições e do dever de cumprir o papel a ela atribuído, há produção de angústia, que se intensifica diante de escolhas. É tanto investimento em trama de expectativas entrecruzadas, que a mulher se vê num rodopio incessante. É a mulher-gincana (Ajzenberg, 2003), espécie de compartimentalização de diferentes “eus”, sem pontes de contato, que atuam de forma ultradimensionada. A mulher vive cada um desses “eus” (mãe, esposa, profissional etc.) de forma estanque, como se fosse um conjunto de canais que, a um simples toque, mudam a programação. Ou como uma boneca que tem a roupa trocada para cumprir papéis esperados. Numa espécie de gincana, acumula tarefas e acelera exigências e cobranças num ciclo infinito. Paradoxal situação: quanto mais se ocupa e realiza, mais corre o risco de se dispersar e se consumir. A vivência é de falha e erro, e, sob a atuação de um superego severo, ela se pune e se exaure. Fixada no cumprimento da cartilha da mulher “total”, estará lançada, frequentemente, à experiência radical de desamparo.

Repetição e estranhamento

Novamente na praia, retornam inquietação, mal-estar, taquicardia, suores. O desaparecimento de Elena remete à “perda” das filhas, que remete a tantas outras perdas. A intensidade afetiva das memórias aumenta a tensão e impõe excesso à Leda, que não se contém. Há descarga pela ação intempestiva no surpreendente e inquietante roubo da boneca. Mais tarde, dirá no estranhamento de si mesma: “Não sei por que fiz isso”. A ação funciona como tentativa de resgate ou repetição do trauma?

Em “Recordar, repetir e elaborar”, Freud (1914/1985b, p. 167) diz que o que o paciente não recorda expressa como atuação/acting out. Repete em forma de ação com base no que foi recalcado, sem saber que está repetindo, pois é incapaz de rememorar. Inibições, atitudes e traços psicológicos inconscientes podem formar um condensado capaz de irromper como ação diante de situações de maior carga emocional. A atuação também costuma ocorrer durante o trabalho analítico, quando resistências se acentuam e parecem intransponíveis.

No fim da trama, com base na revelação do roubo da boneca, sucedem-se cenas de agressão física e psicológica entre Leda e Nina, inconformada com a bizarra atitude da professora, que causara tanto sofrimento à sua pequena filha. O filme ganha traços do gênero terror.

Laplanche e Pontalis (2000) afirmam que o termo acting out designa um caráter impulsivo, que toma, muitas vezes, uma feição auto ou heteroagressiva. Pode estar relacionado ao movimento de expulsão, como uma forma de descarga e alívio de tensão. Em geral, parece estar na ordem da surpresa, quando o inconsciente se faz presente na fala, no corpo e, sobretudo, emerge como estranheza. Cena enigmática que se apresenta endereçada a um outro, repetindo ambivalência afetiva, movimento de aproximação e distanciamento entre mãe e filha, abandono e punição esperada para aplacar a severidade do superego.

Acreditamos que há um duplo endereçamento no drama. De um lado, nos leva a pensar na complexidade da relação mãe/filha e, de outro, trata da relação do cinema (e literatura) com a figura da boneca. Figura esta explorada em centenas de filmes, em que, invariavelmente, observamos, perplexos, os contornos indissociáveis de ternura e terror, estranheza e familiaridade, vida e morte, coisificação e humanização. Freud (1919/1985a) referiu-se a algumas dessas características ao analisar o conto “Homem de areia”, de Hoffmann. A boneca Olímpia surge como duplo de Clara e provoca medo, angústia e horror no jovem Nathaniel. Tais aparições funcionam como sombras ou espíritos que deveriam permanecer no mundo dos mortos ou no inconsciente. O estranho nada mais é que o retorno do rejeitado pelo Eu a causar espanto e terror. Qualquer semelhança com os tormentos da personagem Leda ou a inconsolável perda da boneca não são mera coincidência.

Cultura e psicanálise

O modo de considerar o campo cultural reflete-se no fazer clínico, na formação do analista e em linhas de investigação psicanalítica. Desde Freud, observa-se entrelaçamento entre expressões culturais, sofrimentos individuais, manifestações sociais e produções artísticas. Questionar homem e cultura de forma indissociada é uma característica do espírito psicanalítico, que ressaltou e validou o saber profundo contido em fantasias, sonhos e obras de arte. As manifestações inconscientes abastecem a cultura de múltiplas possibilidades expressivas para as mais variadas formas de manifestações artísticas. Em relação à sétima arte, o contato com a dimensão inconsciente promoveu maior densidade psicológica dos personagens e das narrativas cinematográficas, bem como experiências estéticas inovadoras. Cinema e psicanálise, desse modo, estabelecem uma relação dialética, de influência mútua, vias de mão dupla que se retroalimentam. As múltiplas tipologias, comportamentos e dramas humanos vividos nas telas também suscitam novas possibilidades diagnósticas para a compreensão psicanalítica, além de inspirar narrativas de casos clínicos.

Ao analisar, ainda que sucintamente, o filme A filha perdida, a intenção foi iluminar alguns aspectos da obra, os que causaram maior impacto emocional, sem a pretensão de esgotar as possibilidades de leitura que obras artísticas carregam. Procuramos, na medida do possível, utilizar o método de análise implicada desenvolvido por Frayze-Pereira (2021). Método que não pode ser reduzido à simples verificação dos conceitos analíticos ou ao uso da livre associação por parte dos intérpretes. Trata-se de uma forma de pensar em que o método interpretativo da psicanálise constrói novos sentidos. Utiliza teorias consagradas, pois são referências importantes e, ao mesmo tempo, nutre-se de novas possibilidades de representar com base na experiência subjetiva dos intérpretes.

Referências

Ajzenberg, R. P. (2003). Clínica contemporânea: a mulher-gincana. Jornal de Psicanálise, 36(66/67), 259-272. [ Links ]

Freud, S. (1974). Sexualidade feminina. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 259-279). Imago. (Trabalho original publicado em 1931) [ Links ]

Freud, S. (1985a). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Imago. (Trabalho original publicado em 1919) [ Links ]

Freud, S. (1985b). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Imago. (Trabalho original publicado em 1914) [ Links ]

Frayze-Pereira, J. A. (2021). Estudo controverso permitiu a Freud pensar a psicanálise com Da Vinci: psicanálise aplicada, psicanálise implicada. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 55, n. 1, jan.-mar. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0486-641X2021000100011 . Acesso em: 3 set. 2022. [ Links ]

Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (2000). Vocabulário da psicanálise. Martins Fontes. [ Links ]

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Direção de Maggie Gyllenhaal, Grécia, 2021, disponível no Netflix.

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