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vol.44 issue74O ANÃO E O GIGANTEPROTESTO author indexsubject indexarticles search
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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo July/Dec. 2022  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.15 

Ateliê

UMA NOTA ACERCA DE CRÊUZA DE MÄ, DE FABRIZIO DE ANDRÈ1

Giacomo Gaggero2 

Psicólogo, psicoterapeuta e musicoterapeuta. Docente e terapeuta em escolas e instituições italianas e em outros países. Presidente da Associação Progetto Espresso, que reúne profissionais com interesse no uso de diversas linguagens expressivas em processos terapêuticos. Coordena o curso de formação profissional em Arteterapia e Musicoterapia promovido pela Anffas Onlus de Gênova. Gênova

Luca Trabucco3 

Psiquiatra, psicanalista, membro da Sociedade Psicanalítica Italiana (SPI) e da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise. Supervisor e terapeuta de uma comunidade para adolescentes psicóticos. Gênova

2instituições italianas e em outros países

3Sociedade Psicanalítica Italiana, Associação Psicanalítica Internacional


Umbre de muri, muri de mainé

Dunde ne vegnì, duve l’è ch’ané

Da ‘n scitu duve a l’ûn-a se mustra nûa

E a nuette a n’à puntou u cutellu ä gua

E a muntä l’àse gh’è restou Diu

U Diàu l’è in çë e u s’è gh’è faetu u nìu

Ne sciurtìmmu da u mä pe sciugà e osse da u Dria

A funtan-a d’i cumbi’nta cä de pria

E ‘nt’a cä de pria chi ghe saià

Int’à cä du Dria che u nu l’è mainà

Gente de Lûgan facce da mandillä

Quei che du luassu preferiscian l’ä

Figge de famiggia udù de bun

Che ti peu ammiàle senza u gundun

E a ‘ste panse veue cose ghe daià

Cose da beive, cose da mangiä

Frittûa de pigneu giancu de Purtufin

Çervelle de bae ‘nt’u meximu vin

Lasagne da fiddià ai quattru tucchi

Paciûgu in aegruduse de lévre de cuppi

E ‘nt’a barca du vin ghe naveghiemu ‘nsc’i scheuggi

Emigranti du rìe cu’i cioi ‘nt’i euggi

Finch’ou matin crescià da puéilu rechéugge

Frè di ganeuffeni e d’è figge

Bacan d’a corda marsa d’aegua e de sä

Che a ne liga e a ne porta ‘nte ‘na crêuza de

Sombras de rostos, rostos de marinheiros,

De onde vem, aonde está indo,

de um lugar onde a lua se mostra nua,

e à noite apontou a faca na garganta,

e é deixado Deus para montar o burro,

E o diabo está no céu e fez seu ninho lá,

Deixamos o mar para secar os ossos por Andreia (Dria)

a fonte dos pombos na casa de pedra,

E na casa de pedra quem estará lá,

Na casa do Andrea que não é marinheiro,

Pessoas de Lugano, rostos de batedor de carteiras,

aqueles que do robalo preferem a asa,

Moças de família, cheiro bom,

Quem pode admirá-las sem condom,

E para este estômago vazio o que darão,

Coisas para beber, coisas para comer,

Fritura de peixe e branco de Portofino,

Cérebro de cordeiro no mesmo vinho,

Lasanha para ser cortada com quatro molhos,

Torta em agridoce de gatos,

E no barco do vinho navegamos sobre os recifes,

Emigrantes do rindo com pregos nos olhos,

Até que a manhã cresça para poder recolhê-lo,

Irmão dos craveiros e das moças,

Mestre da corda marcha de água e sal

Que nos une e nos leva a uma ruela de mar

(Creuza de mâ)

Fabrizio de Andrè é considerado por muitos o mais importante dos cantores/autores italianos, e pela qualidade dos seus textos, também um dos maiores poetas italianos do século 20.

Pertencente à, assim chamada, escola de Gênova, (que inclui Bruno Lauzi, Gino Paoli, Umberto Bindi e Luigi Tenco), desenvolveu sua própria atividade artística entre 1960 e 1999, ano do seu falecimento.

Nascido em 1940, filho de um importante empresário genovês, estudou direito, mas abandonou o curso faltando poucos exames para sua formatura, quando iniciou a sua atividade musical.

Teve uma relação difícil com seu pai. Manteve uma vida desregrada com problemas com o alcoolismo, viveu durante um ano com uma prostituta, frequentava pessoas de qualquer nível social, causando grande conflito com a família.

Aos 22 anos casou-se com uma mulher sete anos mais velha do que ele, de uma das famílias mais influentes de Gênova, e nasceu o filho Cristiano.

Nos anos 1970 o casamento terminou. Alguns anos depois conheceu a cantora Dori Ghezzi, filha de um famoso goleiro de futebol, Giorgio Ghezzi, que nos anos 1950 e 1960 atuou nos times da Inter, Gênova e, por fim, no Milan, com o qual, em 1963, venceu a primeira Copa dos Campeões da Europa, a primeira de um time italiano, com a participação de dois jogadores brasileiros, Dino Sani e José Altafini.

Da relação com Dori Ghezzi, que durou até o fim de sua vida, nasceu uma filha, Luvi. De Andrè e Dori adquiriram uma propriedade agrícola na Sardegna, onde, em agosto de 1979, foram sequestrados pela “Anônima sequestros”. Era uma prática que naqueles anos, estava presente na Sardenha, onde atuou por cerca de 30 anos. Após quatro meses de cativeiro, foram liberados após o pagamento de um valor de 550 milhões de liras, pagos pelo pai de Fabrizio.

Durante o processo, De Andrè confirmou o perdão aos seus carcereiros, mas não aos seus mandantes, porque já eram pessoas economicamente poderosas. Considerava que seus carcereiros eram quase tão vítimas quanto ele mesmo. O seu interesse e dedicação à situação das pessoas mais humildes e mais desesperadas não atinge apenas as suas canções. O caráter “subversivo” da sua vida, a simpatia explícita para com as organizações anárquicas, fizeram com que ele fosse investigado por ser um apoiador das Brigate Rosse, a organização terrorista responsável por inúmeros ataques armados, além do sequestro e assassinato de Aldo Moro, entre outros. Morreu, um mês antes de completar 59 anos, por um carcinoma pulmonar.

Ao longo da sua longa carreira, inspirou-se inicialmente na atmosfera dos “cantautores” franceses, traduzindo algumas canções de Brassens, e depois teve influências de anglo-saxões como Bob Dylan e Leonard Cohen.

Os arranjos e orquestrações também passaram por diversas fases. Inicialmente se manteve próximo ao clássico modelo cantautor, violão e voz, às vezes associado a instrumentos acústicos. Sucessivamente se aproximava de sonoridades e arranjos mais modernos e estruturados, que incluíam instrumentos elétricos e eletrônicos, além da colaboração com outros artistas (entre eles, Mina, Nicola Piovani, Ivano Fossati e Francesco De Gregori) e grupos da cena italiana de rock progressivo da época (New Trolls, Premiata Forneria Marconi, Tazenda).

O álbum Crêuza de mä representa uma guinada na carreira do artista, inteiramente cantado em dialeto genovês, que até o século 17 era uma das principais línguas empregadas para usos comerciais, na área mediterrânea. Foi definido pela crítica como uma pedra seminal da música étnica e uma obra que antecipa em muitos anos o que posteriormente foi definido como world music. O álbum foi realizado em 1984 com a colaboração de Mauro Pagani (ex PFM, poli-instrumentista, compositor, produtor discográfico, profundo conhecedor da música tradicional mediterrânea). Pagani é também coautor das músicas e contribuiu notavelmente ao colorido “étnico” dos arranjos.

Crêuza de mä é o trecho que dá o título ao álbum e torna-se o mais conhecido. Nele são usados instrumentos típicos da bacia do mediterrâneo, como o oud (instrumento parecido com alaúde, com alça curta, da tradição árabe), o bouzouki grego, o saz (espécie de alaúde chamado também “violão sarraceno”) e a viola a plettro.

O trecho se abre com o som contínuo da gaida macedônia, uma espécie de gaita de foles comum em muitas regiões do mediterrâneo (trata-se de um fragmento obtido da Ária para uma gaita só, de Dona Samiou); sobre a nota prolongada da borda, desenvolve-se uma melodia com características árabes, fortemente evocativa que induz à atmosfera mediterrânea da “cena”.

Precedida de um glissando sobre as notas baixas de um “cordofono” chegam, portanto, as percussões que, com seu pulsar rítmico, parecem representar o início da viagem (coincidentemente todas as situações descritas nos primeiros oito versos são de movimento). O trecho se desenvolve alternando o tempo previsível e reassegurador dos tempos 4/4 aos tempos espaçados como ondas anômalas, dos 5/4 e 6/4 dos refrões e dos intervalos musicais, rompendo, assim, a tranquila e melancólica regularidade do trecho musical.

O registro digital das vozes dos trabalhadores do mercado de peixe da Piazza Cavour de Gênova (registrados “ao vivo” e cujas vozes, por uma feliz coincidência, estão perfeitamente harmonizadas com a tonalidade do fragmento em ré maior), oferece o sabor de um acontecimento presencial.

Os textos de Di Andrè são quase todos referidos aos personagens de uma vida que se passa nos subterrâneos sociais, uma “outra” vida em confronto àquela que é aceita na burguesia: prostitutas (Via del Campo), transexuais (Bocca di Rosa), assassinos passionais (La ballata del Michè, “que tinha matado quem queria lhe roubar Marì”), assassinos inconscientes (O pescador: “ Chegou na praia um assassino, dois olhos grandes de menino, dois olhos enormes de paura, não eram o espelho de uma aventura”, e todos os personagens da sua transposição de Spoon River: homens vencidos pelo destino, protagonistas de uma vida roubada. Em Creuza de mä os protagonistas são os pescadores, no retorno de seu trabalho humilde, cansativo.

Crêuza de mä é uma pequena ruazinha, para pedestres, que desce da colina, em Gênova está bordejada pelo mar, exatamente até o mar, um atalho comumente circundado pelos muros ou casas que ladeiam o seu percurso. O termo Crêuza parece derivar do termo céltico croesio, croesus, “buom sangue”; grande parte das crêuzas genovesas e da Ligúria, de fato, é constituída de um lajeado central de tijolos vermelhos e arredondados ao lado. O perfil de Crêuza de mä é convexo para permitir a drenagem da água. A imagem completa, vermelha e cinza, oferece uma possível similaridade com um rio de sangue; enquanto o reflexo da luz sobre o mar pode lembrar, em certos momentos, a forma e as cores do ladrilho. As crêuzas, assim como os campos em terraços, as chamadas fasce, caracterizam a paisagem de toda a Ligúria, frequentemente cantado por famosos poetas, como Eugenio Montale, Camillo Sbarbaro e Dino Campana.

Mas em uma visão poética, essas crêuzas na realidade provêm do mar e adentram pela terra, ou então da terra continuam no mar. Através de um fenômeno meteorológico, em geral calmo, submetido a rajadas de vento, assume a aparência de listras contorcidas argênteas ou escuras, semelhantes a estradas fantásticas a serem percorridas como caminhos, crêuzas de mä, justamente, a fim de percorrer viagens, reais ou imaginárias.

Os caminhos do mar e aqueles da terra representam uma continuidade: parecem nos fazer sentir no fundo aquilo que nos diz Bion, que há mais continuidade entre a vida pré-natal e pós-natal, de quanto a impressionante cesura do nascimento nos faça supor.

O nascer e o viver, portanto, em uma visão amarga, na qual frequentemente as coisas são ao contrário de quanto gostaríamos de imaginar (e Deus é deixado para montar o burro, o diabo está no céu e fez seu ninho lá).

E andando sob o sol que ofusca

Sentir tristemente maravilhado

Como é feita a vida e o seu labor

Neste seguir sobre uma muralha

Que tem no seu alto cacos de vidro.

(de Caminhar ao meio-dia, pálido, absorto, em Ossos de sépia)

Os muros que circundam as crêuzas têm sempre cacos de vidro em cima, como dispositivo contra invasão, de modo que o percurso é obrigatório, o caminho está traçado, a possibilidade de desvio não é permitida.

A relação com um destino que não se curva à necessidade ou ao desejo parece ser o fator que aproxima Montale e De André, ambos genoveses. Uma visão amarga da vida, aparentemente sem esperança.

Mas creio que na última frase da música, como no fundo da poética de Montale, o valor das relações seja aquele pouco que permite transcender o destino, e tornar a vida digna de ser vivida.

Desci, segurando-te pelo braço, pelo menos um milhão de escadas

E agora que você não está,

é o vazio em cada degrau.

Mesmo assim foi breve a nossa longa viagem.

A minha perdura ainda, nem são necessárias mais

As coincidências, as prenotações,

As armadilhas, os enganos de quem acredita

Que a realidade seja aquela que se vê.

Desci milhões de degraus segurando-te pelo braço

Seja porque com quatro olhos pode-se ver melhor.

Com você desci porque sabia que de nós dois

As únicas verdadeiras pupilas, embora muito ofuscadas,

Eram as tuas.

(Satura, Montale, 2009)

A memória de sua esposa cega e agora falecida que, além de sua cegueira, é um autêntico guia. Assim De André, mestre de corda marcha de água e sal, que nos une e nos leva a uma ruela de mar (Crêuza de mä). A corda marcha de água e sal, que nos une e nos conduz a uma creuza de mä que, neste momento, na contenção do vínculo, de um caminho obrigatório do destino torna-se, em vez disso, um recipiente familiar e benevolente. Descoberta do sagrado que está em nós.

1

https://www.youtube.com/watch?v=78YNQ7zzxvQ As regiões na Itália, possuem dialetos próprios. Na Liguria, fala-se o genovês. Os dialetos falados nas famílias, e por isso constituem a primeira língua materna do italiano. Nas escolas aprende-se o italiano culto.

Tradução de Edoarda Anna Giuditta Paron

Revisão de Flavio Verdini

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