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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.74 São Paulo July/Dec. 2022  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v44n74.18 

RESENHAS

QRIA

Joaquim Pereira da Silva Junior1 

Médico, psicanalista, membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo. São Paulo

1Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.

Calixto, Malena. Livre (Baladeyra). 2021. p. 113


Luto e criação

A odisseia de Malena Calixto

QRiA é a estreia oficial em literatura da psicanalista Malena Calixto. Publicado em agosto de 2021, vinha sendo gestado há algum tempo e nasceu ao final de uma oficina de escrita criativa dirigida por Marcelino Freire.2 Pretendia ser uma coletânea de contos, que, adormecidos e acumulados numa gaveta, tornaram-se um romance.

Talvez uma das dificuldades em fazer uma resenha de QRiA, com a necessária distância que o processo exige, resida no fato de que a obra nos convoca a uma implicação além do sensorial, desde a sua primeira linha: “Tudo. Nasce e morre. Tudo. Morre e nasce.” E que segue com “Uma cidade feita de cheiro cor céu chão”.

Iniciando assim, o leitor não consegue imaginar o que o espera, mas percebe que deve se preparar para uma viagem curta (são apenas 113 páginas), mas densa, intensa, que o surpreenderá a cada instante até o fim.

Narrado em primeira pessoa, distribuído em 15 capítulos, que em sua maioria contam de personagens específicos, não nomeados, identificados pela data de nascimento e/ou morte, às vezes pelo símbolo matemático de infinito ∞, denunciando a eternidade de uma relação intrapsíquica, mas todos imbricados numa trama em cujo centro se encontra a menina da capa, vestida de vermelho. Malena? Sim, o leitor é levado a pensar tratar-se de uma produção autoficcional, a despeito das controvérsias que esse gênero em si carrega dentro dos estudos de teoria literária, desde a conceituação que lhe foi dada por Serge Doubrovsky,3 em 1977.

Assim, menina-Malena nos conta da sua cidade, da sua casa, da sua família, das mulheres marcadas pelas mortes dos homens no seu entorno e outras tantas. É a sua odisseia,4 sua tragédia peculiar autobiográfica, de uma heroína em busca e construção da sua verdade, como o Ulisses, de Homero.

Impossível não associar também a Freud, com seu estudo sobre “Luto e melancolia”.5 Caminhando com a autora, em meio a tantas mortes, tropeçando em tantos corpos defuntos, sob o risco da instalação de um estado melancólico, o luto vai sendo elaborado com suas possíveis novas construções, que se abrem para o infinito de possibilidades e transformações, deixando o odor fétido da decomposição dos corpos para trás.

A criação de QRiA começa na “orelha” do livro. Orelha que lê. Orelha que sente. Orelha que escreve. O inusitado de QRiA é seu convite para criar suas obras-criaturas, que vão se desenrolando e se parindo e se partindo com base neste criar original e originário, primário. Torna-se uma obra de arte com múltiplos vértices e que não para de acontecer. Não cabe na estante. Caberia na parede como obra de arte, mas ficaria estática e poderia perder seu destino: o movimento, o processo. Merece ficar como uma escultura que pode ser tocada, acessível. Talvez, melhor, como uma instalação, que pode ser habitada, mexida, compartilhada por cada um que dela se aproxima.

Acredito que assim foi com Ricardo Terto,6 criador da orelha, que não fala da autora, nem da obra em si, mas daquilo que se opera nele com base na mineirice “calista”7 de Malena.

Acredito que foi assim com Juliano Mazzuchini,8 criador da arte que abraça as palavras, que, mais que ilustra, captura e expressa o que o leitor encontrará e, sobretudo, viverá lá dentro do texto de Calixto. Esse texto que tenta encarnar toda a experiência emocional que se sente transbordar em cada página, em cada palavra, em cada ponto, em cada vírgula, em cada ilustração. Tentativa inútil, ao mesmo tempo que bem-sucedida.

Acredito que será assim com o leitor, convidado a não parar a leitura, a não voltar, a simplesmente se entregar e seguir, por conta do ritmo produzido pelo “excesso” de pontuação e suas frases curtas. É o inverso e paradoxalmente semelhante ao escritor português José Saramago,9 que, no seu estilo nada canônico de (não) pontuar o texto, facilita entrar no fluxo de pensamento e acompanhar, de forma mais íntima, o narrador. Talvez equivalente ao que ocorre em uma sala de análise. Talvez a marca da escritora que nasce dentro da psicanalista. Ou vice-versa. Mas, todas, Malena.

Que o leitor possa degustar esse publicar-se de Malena.

2 Editor, contista e romancista. Autor dos livros de contos BaléRalé, Contos negreiros e Rasif: mar que arrebenta.

3 Romancista, professor, tradutor, crítico e teórico da literatura. Cunhou o termo “autoficção” com a publicação de seu romance Fils, em 1977, como gênero de escrita diferente de autobiografia.

4 Poema épico do grego Homero, do século IX a.C. Narra as aventuras do herói Ulisses (Odysseus, em grego) na sua viagem de retorno para Ítaca, após a Guerra de Troia.

5 Texto freudiano, publicado em 1917, cuja elaboração remonta a 1914 e que trata do trabalho de luto, diferenciando-o do luto patológico e da melancolia.

6 Escritor, produtor, roteirista, editor de podcasts. Autor dos livros Marmitas frias (2017) e Os dias antes de nenhum (2019).

7 Calixto, do latim Calixtus, uma variante de Callistus, que tem origem no grego Kallistos, “o mais belo”.

8 Ator, artista visual e pesquisador do teatro épico.

9 José de Sousa Saramago (1922-2010) é considerado o responsável pela difusão internacional da escrita da prosa em português. Premiado com o Nobel de Literatura (1998) e o Prêmio Camões (1995).

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