Do esquecimento à redescoberta: obras completas de Sabina Spielrein
No segundo semestre de 2021, a editora Blucher publicou, em língua portuguesa, os dois primeiros volumes das obras completas da psicanalista russa Sabina Spielrein. A publicação foi organizada por Renata Udler Cromberg, pós-doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), psicanalista e especialista no pensamento de Spielrein. Além dos textos, traduzidos diretamente do alemão, com rigor e elegância, por Renata Dias Mundt, os volumes contêm vários ensaios, nos quais Renata Cromberg brilhantemente comenta e contextualiza as obras da autora. O livro conta ainda com um texto de Sabine Richebächer, a principal biógrafa de Spielrein, além de dois lindos prefácios. O do primeiro volume foi escrito por Silvia Leonor Alonso e o do segundo, por Adela Judith Stoppel de Gueller.
O valor dessa publicação é incomensurável. Em primeiro lugar, por resgatar a história e o pensamento de uma das primeiras e mais importantes psicanalistas, que permaneceu esquecida durante grande parte do século XX, e torná-lo acessível aos leitores de língua portuguesa. Em segundo lugar, por trazer o extenso e riquíssimo material de pesquisa, proveniente dos trabalhos de mestrado, doutorado e pós-doutorado de Renata Cromberg, o qual ilumina e contextualiza o pensamento de Sabina Spielrein que, por sua profundidade e complexidade, é, muitas vezes, de difícil apreensão em uma primeira leitura.
Sabina Nikolayevna Spielrein nasceu em 25 de outubro de 1885 na cidade russa Rostov. Em 1904, foi internada no Hospital Psiquiátrico Burghölzi, da Universidade de Zürich, para tratar de um quadro de histeria. Na época da internação de Spielrein, o diretor do Burghölzi era Eugen Bleuler, quem criara um clima propício para a psicanálise no hospital, incentivando colaboradores e praticantes a lerem os escritos de Freud e a experimentarem as novas ideias psicanalíticas (Cromberg, 2021a). O seu tratamento foi realizado por Carl Gustav Jung, com quem acabou se envolvendo afetivamente no ano de 1908. Spielrein foi a primeira paciente que Jung tratou com o método psicanalítico.
No primeiro semestre de 1905, ela ingressou no curso de Medicina da Universidade de Zürich e, em 1911, obteve o grau de doutora, tendo se especializado em psiquiatria e se interessado, sobretudo, pela psicanálise. Sua tese médica, Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (Dementia praecox), publicada em 1911, foi uma contribuição pioneira no terreno da investigação sobre a psicose. Segundo Richebächer (2005/2012), Spielrein foi a primeira mulher a se formar como doutora em Medicina abordando um tema psicanalítico. Em 1912, publicou o artigo “A destruição como origem do devir”, o qual ficou conhecido, sobretudo, pela apresentação da hipótese do instinto de morte. Em 1912, publicou o texto “Contribuições para o conhecimento da alma infantil”, seu primeiro trabalho sobre psicologia infantil, campo ao qual dedicou grande parte de suas atividades nos anos seguintes. Até 1931, a psicanalista redigiu vários artigos, os quais versam, principalmente, sobre a linguagem e o pensamento da criança e os processos subconscientes.
Entre outubro de 1911 e março de 1912, Spielrein frequentou a Sociedade Psicanalítica de Viena, tendo sido a segunda mulher a participar dessa associação (Balsam, 2003). Em 1914, regressou à Suíça e, após passar um ano em Zürich e cinco em Lausanne, mudou-se para Genebra, em 1920, onde atuou no Instituto Jean-Jacques Rousseau, ao lado de Jean Piaget. Piaget se tornou diretor desse instituto em 1921 e, assim como ela, seu principal objeto de pesquisa, na época, eram o pensamento e a linguagem da criança. Além disso, ele estava muito envolvido com a psicanálise e foi analisado por Spielrein durante oito meses. Gainotti (2012) comenta que uma relação de simpatia e de intercâmbio científico, em torno do interesse pela psicologia infantil, se estabeleceu entre Piaget e Spielrein. Vários autores consideram que ela exerceu uma influência significativa sobre o pensamento psicológico inicial de Piaget.2
Em 1923, Spielrein retornou para a Rússia e se tornou membro da Sociedade Psicanalítica Russa, que havia sido recentemente criada e teve como membros pesquisadores importantes como Alexander Luria e Lev Vygotsky, entre outros. Após passar um ano em Moscou, mudou-se para Rostov, onde viveu até sua morte nas mãos dos nazistas, em 1942. No inverno de 1928, Sabina proferiu uma palestra para a Sociedade de Pedologia na Universidade do Norte do Cáucaso, em Rostov. Essa palestra foi publicada em alemão, em 1931, com o título “Desenhos infantis feitos com olhos abertos e fechados: investigações de ideias cinestésicas subliminares”. Essa é sua última publicação conhecida. Com a ascensão de Stalin ao poder, a psicanálise começou a ser perseguida na União Soviética e, em 1933, foi proibida. A partir de então, pouco é conhecido sobre o seu percurso (Angelini, 2008).
Ao longo de sua obra, Spielrein construiu, progressivamente, uma teoria original sobre o funcionamento mental subconsciente, as psicopatologias, a linguagem, o pensamento e o simbolismo. Suas pesquisas iniciam com a investigação da esquizofrenia, dos sintomas neuróticos e dos fenômenos hipnagógicos. Em seguida, são agregados dados provenientes da investigação do pensamento e da linguagem infantis, dos sintomas afásicos, de estudos da área de linguística e neurologia. Ao utilizar, na construção de sua teoria, elementos provenientes dessas diversas fontes, a psicanalista adotou uma perspectiva totalmente inovadora no âmbito da psicanálise.
Apesar da originalidade de suas propostas teóricas e clínicas e de seu pioneirismo em várias áreas, por um longo período Spielrein foi lembrada apenas por ter sido mencionada em uma nota de rodapé do texto freudiano “Além do princípio do prazer”, publicado em 1920, como observa Ovcharenko (1999). Segundo esse autor, ela começou a reemergir na história da psicanálise após a publicação por McGuire, em 1974, da correspondência entre Freud e Jung, em que é várias vezes mencionada. No entanto, o interesse pela autora se intensificou principalmente após a publicação do livro Diário de uma secreta simetria: Sabina Spielrein entre Jung e Freud (Carotenuto, 1980/1984), o qual contém um comentário sobre a vida e o pensamento de Spielrein, assim como partes de um diário e algumas cartas que ela enviou a Jung e a Freud. Esse material tinha permanecido guardado na biblioteca do Instituto de Psicologia da Universidade de Genebra desde sua partida para a Rússia, em 1923, e foi descoberto, em 1977, por Carlo Trombetta, quem os entregou para Aldo Carotenuto (Bair, 2004). Richebächer (2005/2012) comenta que este último autor, além de outros como Bruno Bettelheim e Max Day, a caracterizou como histérica grave com características esquizoides e personalidade borderline, o que, certamente, não contribuiu para o reconhecimento de sua contribuição clínica e teórica.
O interesse por Spielrein despertado a partir da publicação de Carotenuto se concentrou, inicialmente, em sua biografia. Sua importância histórica como primeira paciente de Carl Gustav Jung a ser tratada pela psicanálise e, logo depois de seu tratamento, como sua amante e o papel que ela desempenhou na ruptura entre Freud e Jung foram enfatizados em diversas obras, peças teatrais e filmes (Cromberg, 2012). No entanto, o seu papel como clínica inovadora e criadora de conceitos inéditos no campo psicanalítico permaneceu em segundo plano, embora essa situação esteja sendo revertida nos últimos anos, com a publicação de trabalhos que enfocam sua produção teórica.
As pesquisas de Renata Cromberg sobre Spielrein e a publicação de sua obra completa em língua portuguesa - lançada, até então, apenas em russo e em alemão - representam uma enorme contribuição para esse resgate do seu pensamento e de sua história.
O primeiro volume contém as traduções dos textos “Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia”, “A destruição como origem do devir”, “A sogra”, e de uma carta que Spielrein enviou a Jung em 20 de dezembro de 1917, na qual ela apresenta algumas de suas principais hipóteses sobre as bases do psiquismo. Além desses textos de autoria de Spielrein, estão presentes nesse volume vários ensaios, nos quais Renata Cromberg comenta e contextualiza a vida, a carreira e os textos de Spielrein. O segundo volume contém as demais publicações da autora, que se estendem de 1913 a 1931, além de diversos ensaios, nos quais Renata analisa e comenta as ideias que Spielrein apresenta no período e as circunstâncias pessoais e históricas em que elas foram elaboradas. O terceiro volume, ainda em elaboração, será composto pelas traduções dos diários de Spielrein e das suas correspondências com Freud e Jung, além de textos comentando a sua relação com esses dois psicanalistas e discutindo as possíveis causas do seu esquecimento.
A riqueza e a originalidade do pensamento de Spielrein, somadas ao profundo conhecimento de Renata Cromberg e à excelente tradução de Renata Mundt, tornam a publicação dessas obras um magnífico presente para todos os que se interessam pela teoria, pela prática e pela história da psicanálise.