GUERRA E PAZ, UMA ODISSEIA
A Ide, em sua missão de focalizar a interface entre a psicanálise e a cultura, vem se ocupando, nesse pensamento editorial, do contemporâneo no extemporâneo, isto é, dos dilemas psíquicos que atravessam a nossa história e a história da humanidade. Como disse Fassbinder, as fake news existem desde os tempos dos egípcios. a crueldade e a maldade são traços inerentes à natureza humana, conforme observou Hannah Arendt durante o julgamento de Adolf Eichmann. A psicanálise pode nos ajudar a evitar a alienação e a manter a lucidez, e compreender as diversas manifestações do ser humano na contemporaneidade, como os sintomas que surgem na eterna luta pela humanização e o reconhecimento de sua natureza psíquica. Espero que o tema aqui proposto estimule o leitor a refletir sobre sua própria jornada, a odisseia de cuidar de si mesmo, e manter contato com o grupo de pares pode se tornar uma verdadeira odisseia. Essa luta constante é inquietante e difícil, como se estivéssemos em uma guerra na qual não é possível ter baixas.
Quando iniciei essa escrita veio-me à lembrança outra referência clássica da literatura, o poema dramático do alemão Johann Wolfgang von Goethe que começou a ser composto em 1775, Fausto.
Essa obra foi inspirada em Johann Georg Faust (1480-1540), mago, astrólogo e alquimista do Renascimento alemão. Existiram várias histórias na cultura popular em torno dele, foi acusado de bruxaria, creditando-lhe que teria feito um pacto com o demônio para ter acesso aos poderes do mundo oculto.
Vários escritores, entre eles, Thomas Mann, Mikhail Bulkákov, debruçaram-se sobre o assunto, entretanto, a mais célebre de todas as versões desse mito humano sobre a sedução do poder é o texto de Goethe. É a narrativa sobre um homem sábio e de sucesso que pretende aprender e experienciar o máximo que puder. No entanto, encontra-se permanentemente frustrado com as limitações humanas e procura também respostas no universo mágico. Seu caminho sofre uma reviravolta quando conhece um demônio que vem à Terra para corromper a sua alma, depois de ter feito uma aposta com o próprio Deus. Não é por meio da força, mas graças a esperteza, sedução e manipulação, que Mefistófeles consegue corromper a alma do protagonista. Após segui-lo até sua casa, sob a forma de um cão, o demônio aparece diante do estudioso com uma proposta que ele não consegue recusar.
Considerada uma das maiores obras da literatura alemã, Fausto tornou-se uma referência por simbolizar o dilema do homem na modernidade. Desde o começo, aquilo que motiva Fausto é a busca incessante pelo conhecimento. Como Édipo, ele almeja entender de maneira onipotente o mundo no qual se encontra. Aliás, o personagem fictício parece-nos mais real, vivo, do que muitos que conhecemos. Mas nos remete ao funcionamento regido pelo princípio do prazer, à intolerância de que, por sua própria natureza, o conhecimento não é rápido e sem sofrimento mental. Conhecer não é uma atividade visando a posse, mas sim uma busca que requer tolerância à frustração e um espírito apaixonado e abnegado. Atualmente, a velocidade com que obtemos informações pode sobrecarregar nossa mente, impedindo-nos de processar e sentir as emoções para poder pensá-las. Nosso funcionamento grupal é rápido e questiona a frustração da espera, da demora. A capacidade de esperar com paciência é uma habilidade fundamental para um psicanalista, dada a natureza de sua ciência.
Neste número da revista, vários autores escrevem sobre as manifestações diabólicas do ser humano ao defender a guerra, o fascismo, a destruição. Agradame pensar na interface entre a música e a literatura atingindo uma forma que em conjunto dá conta do psiquismo. No caso do Fausto, temos Robert Schumann (1810-1856), em suas Cenas de Fausto de Goethe, e Hector Berlioz, que se referia a sua obra A danação de Fausto como uma “ópera de concerto”. Thomas Mann explora novamente a interface entre música e literatura. Em seu Fausto, o protagonista faz um pacto com o diabo para terminar sua teoria dodecafônica. Mefistófoles oferece a Adrian pela renúncia ao calor do amor, em troca, 24 anos de vida como um gênio - justamente o período suposto de incubação de sua sífilis.
Pensando nas manifestações artísticas da guerra, Sergei Rachmaninov, diante da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da revolução (Revolução Russa, 1917), que expulsara o compositor de sua terra natal, escreve seu Quarto concerto:
A instabilidade permeava tudo, e nada (social, político ou musical) era certo, sendo o Quarto concerto a reação de Rachmaninov a tais mudanças; era tanto a tentativa de se manter a par das tendências quanto a expressão do profundo desconforto diante do desaparecimento de um mundo que amava. Em sua fragmentação, sua melancolia e seu profundo desassossego, o Quarto concerto é uma “Terra desolada” musical, uma evocação da alienação análoga ao poema de T. S. Eliot (1888-1965), publicado quatro anos antes. Enquanto a nostalgia do Segundo concerto é afetuosa e reconfortante, a do Quarto é pungente, dolorosa: um vislumbre do compositor exilado, solitário nos bastidores, sob a luz crua de seu camarim, e não banhado nos holofotes do palco. (Hough, 2023, p. 22)
O poeta Wordsworth refere-se à poesia como a emoção relembrada com tranquilidade, precisamos desse recurso para publicar nossas guerras. Vários intelectuais e poetas que participaram da Primeira Grande Guerra tiveram necessidade da escrita poética e da publicação em antologias, especialmente na Inglaterra: Rupert Brooke, Siegfried Sassoon, Isaac Rosenberg, Edward Thomas, William Butler Yeats, Wilfred Owen. Na guerra matar e morrer era uma ocorrência anônima, e, portanto, sobreviver ao anonimato é como matar e ser morto inúmeras vezes. Em seu artigo “O estranho encontro entre o fantasma de Wilfred Bion e a alma de Wilfred Owen”, Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho escreve: “nada disso importa muito na guerra; ali, é preciso reconhecer que o terror é a origem primordial da mente, como já intuído por Wordsworth, que, referindo-se a sua alma, sugere que ela cresceu alimentada tanto por beleza quanto por medo” (2015, p. 59). A escrita é a saída do anonimato e, assim, a chance de o soldado (do humano) deixar de ser desconhecido e trilhar seu rumo ao ser.
Este livro não é sobre heróis. A poesia inglesa ainda não está preparada para falar deles.
Ele também não é sobre façanhas, domínios, nem qualquer coisa sobre glória, honra, poder, mas sim de guerra.
A poesia está contida na consternação. (Bion, 1933, citado em Junqueira Filho, 2015)
Um aviador irlandês prevê a sua morte
Sei que encontrarei meu fado
Em meio às nuvens e ao vento;
Não odeio quem combato
E não amo quem defendo;
De Kiltartan Cross eu vim,
Minha gente são seus pobres;
Tanto faz da guerra o fim, Não lhes encherá o alforje.
Por lei ou dever não luto,
Ou quem me aponte o que fazer; Um afã levou-me ao tumulto Das nuvens, de puro prazer.
Passado e porvir, na mente
Tudo pesei, de tal sorte
Que, sem alento igualmente,
Para tal vida, tal morte.
(Yeats)