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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.75 São Paulo Jan./June 2023  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n75.02 

CARTA-CONVITE

GUERRA E PAZ, UMA ODISSEIA

Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci1 

1Tradução livre da autora.


Nada de novo no front, caro amigo leitor?

Inicio esta carta com a lembrança do refrão da música Caro amico ti scrivo, de Lucio Dalla, ou, ainda, de Meu caro amigo, música de Chico Buarque, ambas do período da ditadura militar. Ou seja, quando tínhamos e temos saudade de uma conversa verdadeira - afinal, nada é mera coincidência em nosso contexto atual.

Escrevo em primeira pessoa para contar-lhe um pouco a respeito do pensamento que imprimi na linha editorial desta revista até agora, como tenho me empenhado em cada uma das cartas aos leitores e nos editoriais para sair do senso comum e do já sabido, e enveredar por um caminho mais pessoal que o envolva de maneira mais próxima a participar da narrativa da revista. Tento imprimir a minha digital viva e alcançar a sua e, quem sabe, estimular o psicanalista dentro de você a aprimorar a sua forma de arte ou, ainda, que a arte o ajude a encontrar uma maneira pessoal possível de veicular o psiquismo, para comunicá-lo, publicá-lo. Durante os seminários em Paris, Wilfred Bion sugere que o consultório do psicanalista deve ser considerado como um ateliê e enfatiza a importância de descobrir que tipo de artista você é, um escritor, um ceramista, um músico, e acrescenta que, em sua experiência, a maior parte dos psicanalistas não sabe a resposta. Uma pessoa do público lhe pergunta: “e se o psicanalista não for artista?” Ele responde que, em tal caso, teria escolhido o trabalho errado…

Um psicanalista, como um poeta, deve ser capaz de usar uma linguagem penetrante e durável. Tolstói é considerado o Homero da Rússia, enquanto Dostoiévski faria as vezes de Shakespeare. Para George Steiner, as obras de Tolstói e Dostoiévski são exemplos cardeais da fé na literatura, afinal:

eles eram artistas religiosos no sentido dos construtores de catedrais, ou de Michelangelo, quando trabalhava em sua imagem de eternidade na Capela Sistina. Eles foram possuídos pela ideia de Deus e percorreram suas vidas como os caminhos de Damasco. A ideia de Deus, o enigma de Ser, capturara suas almas com força inconsciente e constrangedora. Em sua orgulhosa humildade feroz, eles se consideravam não como meros inventores de ficção, ou homens de letras, mas como videntes, profetas, vigias da noite. (Steiner, 2006, p. 178)

Pacifista e com experiência militar na Crimeia, Tolstói relatou a campanha de 1812 com tal veracidade, que seu romance sobrepujou os relatos históricos documentais. Para Homero e Tolstói, a vida transbordava como o mar, sua imagem da realidade é antropomórfica. O homem é a medida e o pivô da experiência no aqui e agora, o reino deste mundo - como na Ilíada, com a descida dos deuses entre os humanos, em que as características humanas e divinas ficam mescladas.

Meu caro amigo, nesses anos propus uma linha editorial com base no mito da odisseia como conceito, o que despertou em alguns surpresa, e até mesmo relutância em aceitar a princípio, mas que encontrou consenso maior com o passar do tempo. A odisseia é a base e o desafio para o crescimento individual e grupal, do pré-humano em busca de humanização. O mito como modelo focaliza a perene tomada de decisão entre ser ou não ser, sonhar, pensar, viver as emoções ou esvair-se. Espero que os temas que se sucederam tenham lhe servido de convite para participar com as asas da imaginação na viagem de Ulisses, de seu olhar, na odisseia antropofágica em seus movimentos centrípetos e centrífugos. Seguindo a linha editorial, como o fio de Ariadne, reflito a respeito do momento atual em seus vários contextos, em que movimentos de fanatismo, intolerância às diferenças e cisões binárias impostas por um superego ditador, moralista e antiemoção tentam ganhar primazia sobre estados de tolerância e de busca de verdade, ética, na errância da vida. Somos levados à temática de guerra e paz como estados mentais individuais e grupais dentro do indivíduo e da humanidade. Hanna Segal preocupou-se muito com o desarmamento nuclear, guerra e paz. Cita ideias de Freud - em seus artigos sobre grupos e em “Luto e melancolia” (1917), na intolerância frente à perene tensão entre pulsão de vida e pulsão de morte -, de Melanie Klein - na não aceitação de nossa ambivalência - e de outros autores como Glover, Fornari, Money-Kyrle e Bion. Este último salientou que nossas partes psicóticas estão fundidas em nossa identidade grupal, o que denominou de grupo de suposição básica. O funcionamento psicótico é um risco inerente dos agrupamentos políticos, nossos narcisismos nacionalistas e ideológicos. É irreal pensarmos, entretanto, que se possa ter uma sociedade, ou organização, sem política. Seria uma utopia pensar que um grupo humano possa lidar com tais tensões destrutivas? Reflito, caro amigo leitor, que temos algo especial para contribuir ao estimular o contato com a realidade psíquica, nossos aspectos violentos, nossa crueldade, afinal, qui tacet consentire videtur.

Bion, em meio a uma batalha, quando era capitão de tanques durante a Primeira Guerra Mundial, descreve de modo místico um estranho encontro. Penso que o jovem parece utilizar-se do refúgio poético ou ainda da alucinose para se manter vivo. Lembra- -me a Sonata ao luar, de Beethoven.

As nuvens se separaram, e um veio de luar nos revelou momentaneamente um ao outro. “Bom Deus! É você, Bion, não é?” “Bonsey! E. K. Bonsey!” Eu me lembrei dele na escola, um par de anos mais velho do que eu, estudioso, usando óculos; nem gostava nem desgostava dele.

Agora, 60 anos mais tarde, esse contato momentâneo ao luar está gravado em minha mente. Nós andamos algumas jardas. No silêncio, um gemido veio da lama ao longe, seguido por um grito mais distante. Eu estava escutando - mas não o que Bonsey dizia. Que estranho! Como pássaros do pântano, inúmeros alcaravões acasalando. Ou, talvez, uma visão mais confortável, a planície iluminada pela lua perto de Avignon, banhada em luz, viva com as canções alegres de rouxinóis espalhando uma teia de som.1 (Bion, 1982, p. 142)

Despeço-me aqui, caro amigo, com um abraço fraterno. Aproveito para agradecer a confiança em mim depositada e a rica interlocução. Declaro-me disponível para manifestações e ideias, e aguardo novos artigos e contribuições. A todo o pessoal, adeus!

Obs. As propostas deverão ser encaminhadas à secretaria da revista até o dia 24/1/2023 para fabiana.santos@SBPSP.org.br

As orientações encontram-se em “Orientação editorial e normas para publicação de artigos e resenhas na revista Ide” no final da revista ou no site da SBPSP.

Podcast: https://open.spotify.com/episode/3SEg8HBQGaRya4z5Wfg2s4?si=VmVFycxhSIaN 0wOeEIO7jQ

Referências

Bion, W. R. (1982). The long weekend. Karnac. [ Links ]

Steiner, G. (2006). Tolstói e Dostoiévski: um ensaio sobre o velho criticismo. Perspectiva. [ Links ]

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