Nosso entrevistado neste número da Ide é Marcus Mazzari, professor de Teoria Literária na usp e especialista no escritor Thomas Mann. Nosso convidado foi recentemente condecorado pela Sociedade Goethe (Goethe-Gesellschaft) com um dos mais importantes prêmios culturais da Alemanha, a Medalha de Ouro Goethe, vigente desde 1910. O professor Mazzari escreveu o posfácio de Mário e o mágico - uma experiência trágica de viagem, tradução de José Marcos Macedo e editado pela Companhia das Letras neste início de ano.
Thomas Mann redigiu a novela Mário e o mágico em 1929. Sua atualidade motivou esta entrevista. O autor traz o surgimento dos primeiros vagidos do fenômeno do fascismo, captando com exatidão o que aconteceria na década de 1930, quando da instalação de um regime totalitário na Alemanha - na Itália, aliás, Mussolini já havia subido ao poder em 1922. Thomas Mann primeiramente parece focalizar em sua obra os aspectos éticos e morais, deixando os políticos em segundo plano. Mas volta aos aspectos políticos 15 anos mais tarde em Doutor Fausto, seu grande confronto de velhice com o nacional-socialismo.
Mário e o mágico tem substrato autobiográfico: Thomas Mann transfigura as férias, cheias de percalços, que passou com sua família em uma estação balneária na Itália em 1926. “A lembrança de Torre di Venere evoca uma atmosfera desagradável. Raiva, irritabilidade, tensão exacerbada pairavam no ar.” A narrativa inicia-se descrevendo um clima de persecutoriedade, já preparando o leitor para um desfecho sombrio. A tempestade vai se anunciando pelo relato do incidente que obriga a família a mudar-se de um hotel para outro, pois um dos filhos tossia de noite, irritando hóspedes italianos, sobretudo uma empertigada aristocrata de Roma (mussolinista, como sugere-se nas entrelinhas). Segue-se outro constrangimento, ocorrido na praia, quando a filha de 8 anos tira o maiô para lavar a areia, e a família é multada por atentado ao pudor. Assim Thomas Mann aborda em sua ficção a consolidação de uma mentalidade de suposta superioridade de um povo, também a xenofobia, o patriotismo exagerado, falta de espírito democrático - enfim, o fascismo.
Mais adiante a narrativa concentra-se no espetáculo de um hipnotizador e ilusionista (Cipolla), oferecido aos turistas... Não continuaremos com o resumo da história contada nessa novela, associada ao “evento inaudito”, como grande parte das novelas na tradição literária alemã.
Ide - Segundo os críticos literários toda novela tem de ter um “falcão”, isto é, uma silhueta que a torna inconfundível e inesquecível para o leitor. Qual seria o “falcão” nessa novela? Seria o fascismo? Por que Mário e o mágico inscreve-se indelevelmente na memória de quem o lê?
MM - Na Alemanha há algumas teorias sobre o gênero “novela”, e uma delas é justamente a “Teoria do Falcão”, comentada no posfácio que fiz para Mário e o mágico. Ela postula, apoiando-se numa narrativa de Boccaccio, que toda novela genuína deve apresentar um “falcão”, uma “silhueta” que a torne inesquecível ao leitor. No caso de Mário e o mágico, o “falcão” se delinearia no fecho da história, com os tiros disparados por Mário. Goethe, que também esboçou uma teoria da novela, teria posto esses tiros sob a rubrica “acontecimento inaudito” (unerhörte Begebenheit) - expressão que ele usa, numa conversa com Eckermann, para ressaltar o elemento distintivo do gênero “novela”.
Ide - Em sua opinião, a novela é irmã do drama?
MM - É o que postula outro grande novelista da tradição alemã, Theodor Storm (1817-1888). Ele formulou essa concepção numa carta ao narrador e poeta suíço Gottfried Keller, autor da “imperecível novela” (na visão de Walter Benjamin) Romeu e Julieta na aldeia. Esse postulado talvez elucide por que extraordinários dramaturgos também brilharam na arte novelística, como Heinrich von Kleist ou Luigi Pirandello.
Ide - Podemos pensar que o ilusionista Cipolla, que captura e aterroriza o público do balneário, condensa as qualidades de um líder de massas? Em sua história exprimem-se aspectos da mentalidade que propiciou o fascismo? Delineia-se agora a ameaça de novos Cipollas?
MM - O filósofo Theodor Adorno considera, em sua Teoria estética, que o teor de verdade das grandes obras de arte realiza a “historiografia não-consciente” de sua época histórica. Em parte, essa caracterização mostra-se válida também para Mário e o mágico, pois Thomas Mann captou nessa novela, com surpreendente clarividência - de maneira intuitiva e lungimirante, como se diz em italiano -, a ascensão da mentalidade, baseada em ampla escala no “nacionalismo”, que não só consolidou o fascismo na Itália como levou o nacional-socialismo ao poder na Alemanha e atuou funestamente também em outras partes do mundo, como na Espanha de Francisco Franco ou no Japão, que em consequência se aliou na guerra a Hitler e Mussolini.
Nesse contexto, o prestidigitador Cipolla, com seu poder hipnótico e o chicote que põe as pessoas a dançar, pode ser visto retrospectivamente como uma figuração dos ditadores fascistas, que com seus “chicotes” invisíveis lograram trazer as massas sob seu controle. (Essa visão foi explicitada pelo próprio Mann após a guerra.)
E, ao mesmo tempo, o vigoroso caráter de advertência dessa novela estende-se ao século 21, alertando-nos em relação às catástrofes que podem advir de políticas populistas de extrema-direita, as quais jamais operam de maneira racional, mas apelam sempre aos impulsos regressivos do ser humano, ao ressentimento, ao ódio, à inveja - enfim, a toda espécie de frustração. Adorno tratou em profundidade desse mecanismo social desvelado em Mário e o mágico num ensaio intitulado “A teoria freudiana e a estrutura da propaganda fascista”.
Ide - O clima do balneário, tão bem descrito por Thomas Mann, o exacerbado nacionalismo, poderia ser comparado com eventos ocorridos entre nós recentemente?
MM - Entre os aspectos negativos que Thomas Mann ressalta no cotidiano do balneário italiano está o exacerbado patriotismo - um nacionalismo cego e agressivo que historicamente foi fomentado por Mussolini e seu partido. Também no pequeno balneário a bandeira fascista (que figura o feixe de lenha com um machado) tremula onipresente, e a Itália está sempre “falando grosso”, como lemos num verso do poema “Rondó dos cavalinhos”, de Manuel Bandeira.
A eclosão da Primeira Guerra Mundial na Europa encontrou Thomas Mann imbuído de concepções fortemente nacionalistas, mas nos anos subsequentes ele foi se conscientizando cada vez mais da inocuidade e mesmo dos perigos do nacionalismo bélico e de toda e qualquer manipulação patriótica. Nesse aspecto, o leitor da novela encontrará semelhanças com uma mentalidade que grassou no Brasil nos últimos tempos, quando se deu a manipulação ideológica da bandeira brasileira por uma parcela da população doutrinada, de forma consciente ou ingênua, na extrema-direita. Um dos aspectos mais relevantes na trajetória de Thomas Mann, como artista e cidadão, consiste na aversão que foi desenvolvendo ao nacionalismo, que acabou precipitando seu país na catástrofe da Segunda Guerra Mundial. Nesse ponto, o autor de Mário e o mágico encontra-se muito próximo de Goethe, que também tinha aversão a todo tipo de manipulação patriótica, como a que se alastrou pela Alemanha durante as guerras contra Napoleão. No romance Lotte em Weimar (1939), o próximo título a ser publicado na coleção que coordeno na Companhia das Letras, Thomas Mann trata também dessa postura esquiva de Goethe, personagem principal no enredo romanesco, perante o “espírito do tempo” (Zeitgeist).
Por suas posições democráticas e republicanas, Mann foi violentamente atacado pela máquina de ódio e de fake news do regime nazista. E os ataques mais virulentos tinham fundo nacionalista, visando o sangue não “ariano” do escritor, filho da brasileira Julia da Silva Bruhns. Em 1932, por exemplo, o jornal Der Angriff, fundado por Goebbels, escrevia: “Precisamos exigir com toda a veemência que essa miscigenação letrada de índios, negros, mouros e sabe lá o diabo mais o quê - que essa mistura racial não possa mais nomear-se escritor e poeta alemão”. (Apenas essa vociferação racista deveria ser suficiente para afugentar o espantalho da extrema-direita de um país como o Brasil...)
Ide - Freud pergunta de onde os escritores retiram suas ideias. Thomas Mann intuiu em 1929, com base na criação do personagem de Cipolla, que uma figura como Hitler poderia tornar-se possível na Alemanha. Como vê isso?
MM - Freud nos legou extraordinários trabalhos sobre arte e textos literários, começando com sua interpretação da novela Gradiva, de Wilhelm Jensen. No mesmo ano dessa publicação, 1907, ele faz em Viena (6/12/1907) uma palestra, publicada pouco depois com o título de “Der Dichter und das Phantasieren”, literalmente “O poeta e o fantasiar”. A teoria que ele apresenta nesse trabalho sobre a gênese dos textos “criativos” é muito instigante e constitui - a exemplo de trabalhos posteriores, como a exegese da narrativa O homem da areia, de E. T. A. Hoffmann - extraordinária contribuição à teoria literária. Mas é certamente insuficiente para elucidar a gênese de obras como A montanha mágica, Doutor Fausto ou da própria novela Mário e o mágico, para citar apenas títulos de Thomas Mann, por quem Freud, aliás, tinha imensa admiração. Em parte, isso é reconhecido pelo próprio Freud, quando assinala, naquele ensaio sobre as fontes da fantasia artística, que vai considerar apenas “narradores mais modestos”, die anspruchsloseren Erzähler, que costumam narrar aventuras de um indestrutível herói, “Sua Majestade, o Eu”, a quem “nada pode acontecer” (Es kann dir nix g’schehn, nas palavras de um escritor austríaco menor, Anzengruber, citado por Freud).
Elucidar narrativas como Doutor Fausto ou Mário e o mágico com base em associações com o sonho, o devaneio, pulsões sexuais ou impulsos narcisistas seria, sem dúvida, algo problemático, em face do que foi exposto acima, e também do teor da sua pergunta, que se refere ao caráter premonitório da novela que alerta para o potencial destrutivo que emana de figuras como Mussolini, Hitler e, saltando para o nosso tempo, populistas de extrema-direita como Donald Trump nos Estados Unidos, que ganhou as eleições retrasadas com a poderosa assessoria de seu ideólogo, Steve Bannon, o qual também exerceu influência (em larga escala oculta) sobre as eleições brasileiras em 2018. (Thomas Mann, aliás, já alertava para esse tipo de ideologização maligna na Montanha mágica, mediante a figura de Naphta.)
Mas talvez possamos - quem sabe! - fazer uma especulação em relação ao desfecho da novela e relacionar, na perspectiva de Freud, os tiros disparados pelo jovem garçom Mário ao desejo, em parte inconsciente, de Thomas Mann no sentido de interromper pela violência a ascensão de líderes fascistas, ou seja, esmagar no nascedouro o “ovo da serpente”, como nos versos do drama Júlio César, de Shakespeare: “And therefore think him as a serpent’s egg ... And kill him in the shell”. Por isso o novelista fala de um final terrível, mas sobretudo “libertador” em relação às manipulações degradantes do hipnotizador Cipolla: “não pude e não posso deixar de senti-lo assim!”
Em vários de seus discursos contra o nazismo (Deutsche Hörer!), transmitidos pela BBC durante os anos de guerra, Mann conclamou os alemães a eliminarem Hitler com as próprias mãos, por exemplo: “Se vocês não lograrem se desvencilhar, num último instante, dessa corja que infligiu tanta infâmia a vocês e à humanidade, então tudo estará perdido, a vida e a honra”.
Quando o escritor soube que Hitler havia sobrevivido ao atentado de 20 de julho de 1944, registrou palavras de desalento em seu diário. Em seguida, incorporou essa tentativa frustrada ao enredo ficcional do Doutor Fausto: “No ano passado, aquele homem sinistro conseguiu sobreviver a um atentado de patriotas desesperados, ansiosos de salvarem os últimos restos da substância e o futuro. Conservou sua vida, uma vida doravante louca, vacilante, confusa”.
Ide - Por outro lado, o senhor fez várias associações entre dois autores alemães, Thomas Mann e Günter Grass, pois ambos tratam da vulnerabilidade à sedução do nacional-socialismo. Poderia falar-nos um pouco mais sobre a disseminação do fascismo na óptica desses escritores? Eles seguem uma linha coincidente ou abordam esse fato distintamente?
MM - É possível traçar alguns paralelos entre os romances O tambor de lata (1959) e Anos de cão (1963), de Günter Grass, e Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann. O tambor, por exemplo, entrelaça, tal qual o Doutor Fausto, dois planos temporais que, à medida que a narrativa avança, vão se aproximando cada vez mais. O tempo da narração, no romance de Mann, estende-se de 1943 a 1947 e, no de Grass, de 1952 a 1954. Nesse período temporal o eu-narrador (Serenus Zeitblom e Oskar Matzerath) constrói um amplo painel dos anos hitleristas. São duas das maiores representações literárias do fascismo. O grande diferencial da ficção romanesca de Grass é, contudo, a tendência a contrapor-se à “demonização” dos nazistas, o que não se verifica em Thomas Mann. Tratei dessa questão no doutorado que fiz em Berlim, intitulado justamente Die Danziger Trilogie von Günter Grass: Erzählen gegen die Dämonisierung deutscher Geschichte. Nesse sentido, a literatura de Grass pode ser aproximada à tese de Hannah Arendt sobre a “banalidade do mal”.
No Posfácio a Mário e o mágico cito um trecho da resenha pioneira de Hans Magnus Enzensberger sobre O tambor e também comento o que essa visão do crítico pode significar para o Doutor Fausto. Por exemplo, essas palavras de Enzensberger: “Eu não conheço nenhuma representação épica do regime hitlerista que se possa comparar com a que Grass, como que despreocupadamente e sem fazer o menor alarido antifascista, oferece no Tambor. ... Sua cegueira perante tudo o que seja ideológico o resguarda de uma tentação à qual sucumbem muitos escritores, isto é, demonizar os nazistas”.
Mas na comparação entre os dois grandes épicos é preciso considerar que mais de meio século os separa. Assim, quando Mann publica sua novela “sismográfica” sobre Cipolla, Grass ainda nem chegara aos 3 anos de idade... Essa é outra significativa diferença entre ambos, pois Thomas Mann captou intuitiva e profeticamente a ascensão do fascismo e os horrores inauditos que estavam por vir.
Ide - Além da principal lição que nos deixa Thomas Mann nessa novela (não basta entrincheirar-se numa postura de “não querer”, não basta apenas não pactuar com o fascismo ou seus avatares populistas-demagógicos), haveria outras eventuais mensagens transmitidas por Mário e o mágico?
MM - Essa grande “lição” que pode ser depreendida da novela foi explicitada claramente pelo crítico alemão-brasileiro Anatol Rosenfeld (19121973) num artigo publicado no Estado de S. Paulo. Apontando para o caráter de advertência da novela, Rosenfeld escreve que “em certas condições um povo inteiro pode ser hipnotizado”. Em seguida: “Um hipnotizador poderoso, que encontra as condições adequadas, é suficiente para fazer com que um povo inteiro dance ao estalar do seu chicote. Não tenhamos ilusões; o que resta fazer é evitar que aquelas condições se repitam”.
Thomas Mann contribuiu extraordinariamente com sua obra para impedir o surgimento de “condições” propiciadoras do autoritarismo e para adensar a resistência ao fascismo. Essa contribuição é ainda hoje da máxima importância, no Brasil e em vários outros países.
E, como formula sua pergunta, tal resistência não pode ser apenas “pela metade”, não pode restringir-se tão somente à atitude de recusa, de apenas não pactuar com as forças escusas encarnadas na novela pelo sinistro prestidigitador Cipolla, com seu poder hipnótico de degradar as pessoas.
A própria trajetória política de Thomas Mann parece ilustrar a lição veiculada pela novela, pois, abandonando as posições nacionalistas e não democráticas que acalentou até a Primeira Guerra, ele foi se transformando nos anos subsequentes num inimigo cada vez mais ativo de Hitler, do fascismo e, por extensão, de toda tendência autoritária e antidemocrática.
Ao lado dessa mensagem de advertência e resistência, o leitor da novela encontrará certamente outras, algumas delas relacionadas de maneira mais ou menos direta com a “lição” principal - por exemplo, a denúncia da exploração ideológica, isto é, falsa e hipócrita, do nacionalismo. Nessa perspectiva, a atividade hermenêutica do leitor atento poderá encontrar muito mais riquezas do que o próprio Mann pôde pôr em Mário e o mágico de maneira consciente.
Ide - Nossa última pergunta seria sobre uma recomendação de leitura; como também estudioso dos clássicos, especialmente da literatura alemã, quais obras você julga importantes para os nossos leitores? E, também, qual obra de Thomas Mann recomendaria para um psicanalista ler?
MM - Entre os clássicos da literatura alemã, o primeiro lugar caberia evidentemente ao Fausto de Goethe, do qual Freud foi um dos mais contumazes leitores, citando abundantemente, de maneira explícita e implícita, versos desse drama em seus próprios trabalhos.
Quanto a Thomas Mann, uma excelente introdução à sua imensa obra épica seria, na minha opinião, a narrativa Tonio Kröger, publicada em 1903 e apaixonadamente admirada, por exemplo, por Franz Kafka.
Para um leitor ligado à psicanálise, eu sugeriria em primeiro lugar A montanha mágica, que certamente vai exigir muito, mas muito mesmo desse leitor, recompensando-o, porém, prodigiosamente, sobretudo numa segunda leitura. Esse romance colossal é uma das primeiras obras literárias a tematizar o advento da psicanálise, que no enredo romanesco aparece sob a designação Seelenzergliederung, na verdade, uma tradução fiel da palavra “psicanálise”: Seelen como equivalente à psyche grega e Zergliederung, a análise. É graças à influência dessa Seelenzergliederung que Thomas Mann abre amplo espaço para a narração de sonhos (como no final do 1º e do 3º capítulo). E vale lembrar também as palestras dadas pelo dr. Krokowski no sanatório Berghof, onde o herói Hans Castorp passa sete anos internado. Intituladas “O amor como fator patogênico” e narradas no subcapítulo “Análise”, essas palestras baseiam-se nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, que Freud havia publicado em 1905.