Há pouco tempo, numa viagem conheci uma pessoa que fazia parte de uma organização internacional de ajuda humanitária. Ela contou que havia trabalhado na África e nesse período tinha uma funcionária nativa que a ajudava no cuidado da casa. Depois de certo tempo sentiu a necessidade de contratar outra pessoa e assim o fez. Relata que logo no primeiro dia da nova empregada aconteceu algo completamente inimaginável. De repente, as duas funcionárias que não se conheciam absolutamente, agarraram-se e, aos gritos, desferiram golpes descontrolados uma contra a outra. Disse que ficou assombrada sem entender o que estava acontecendo e conseguiu separá-las a muito custo com a ajuda de pessoas vizinhas. Soube então que as funcionárias pertenciam a tribos diferentes, que tinham um histórico de violências e disputas de território. Morava havia quase três anos na região e achava que conhecia bem os conflitos, as guerras, mas não esperava testemunhar impulsos destrutivos de maneira tão direta e paranoica. A guerra entrara em sua casa! A guerra também entrou na minha família e provavelmente na de algumas pessoas que estejam lendo este artigo. Nós desembarcamos no Brasil em dezembro de 1951, como refugiados da Segunda Guerra Mundial graças à ação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (acnur), fundado um ano antes.
Em 1919, meu pai havia sido soldado do Exército ucraniano que foi derrotado um ano depois pelos bolcheviques. Fugiu para a Polônia, onde fez parte da Cavalaria Polonesa, ainda contra os bolcheviques. Depois viveu em Praga, durante 20 anos, e ali estudou, formou-se em Engenharia, tornando-se cidadão tchecoslovaco e servindo o Exército da Tchecoslováquia.
As forças nazistas invadiram Praga na noite de 15 de março de 1939, e mais de um ano depois meu pai, devido a suas críticas ao regime numa reunião em seu trabalho e a outras recriminações, foi denunciado e preso em Berlim na Central da Gestapo, polícia secreta nazista, junto com outro prisioneiro. Após a condenação à morte de seu colega, ele foi em seguida transferido para uma das celas solitárias nos subterrâneos dessa Central. Desde o final da guerra esse local encontra-se em ruínas e faz parte do chamado Museu da Topografia do Terror. Da história do meu pai, eu soube que sua irmã foi uma sobrevivente do chamado Holodomor (morte pela fome na Ucrânia, entre 1932 e 1933), chegando à inanição e perdendo dois filhos menores, que não resistiram à falta de alimentos.
O Holodomor foi um dos maiores crimes contra a humanidade, e nele, segundo o Volodymyr Serhiychukda, professor e pesquisador da Universidade Nacional de Kiev e diretor do Departamento de História da Ucrânia, aproximadamente 10 milhões de pessoas perderam a vida. Esse horror só começou a ser conhecido a partir do fim da União Soviética em 1991, mas continua ainda hoje ignorado por muitos. Só poucos anos atrás livros, artigos, filmes, palestras começaram a surgir. Na verdade, em 1933 um jornalista do Reino Unido, Gareth R. V. Jones, de maneira surpreendente, após visitar Moscou para realizar entrevistas com as autoridades do regime, arriscou-se, usando um passaporte diplomático, numa viagem de trem até a cidade de Kharkiv, na Ucrânia. Descreveu pela primeira vez com muitos detalhes o que vira. A reportagem causou repercussão, mas logo perdeu seu impacto devido à polaridade política que fervilhava nos países ocidentais. Atualmente a Ucrânia presta solidariedade às vítimas do chamado Genocídio do Povo Ucraniano (Holodomor) em todo o quarto sábado do mês de novembro.
A história da minha mãe também testemunha os horrores da guerra. Ela nasceu junto às montanhas do Tirol austríaco e viveu separações familiares traumáticas que se refletiriam tragicamente em seus dias futuros. Tenho ainda duas sobrinhas, que conheci muitos anos atrás numa viagem à Ucrânia, quando buscava informações sobre minha família paterna. Elas e seus filhos estão refugiados desde o início da invasão russa em duas diferentes cidades da Alemanha. Uma delas estava grávida e, com todo o estresse da situação, teve um parto prematuro aos seis meses de gestação. Pude acompanhar diretamente todo o sofrimento desses parentes refugiados que deixaram para trás seus maridos, suas casas, seus amigos queridos, seus projetos profissionais e suas fontes de sustento.
É com essa herança que escrevo sobre guerra e paz. Nesses últimos anos surgiram na mídia muitas imagens tristes e de horror vividas por refugiados de países dilacerados por guerras e outros conflitos. Homens, e principalmente mulheres e crianças, movidos pelo desespero de escapar com vida, abandonam seus lares em busca de um lugar de paz e segurança.
Estamos distantes, as notícias chegam e vão, a rotina do cotidiano quase faz desaparecer o choque inicial das imagens e informações, e logo entramos novamente em nossas preocupações imediatas. Os jornais, os noticiários mostram em geral apenas uma parte visível e coletiva da terrível jornada de fuga dos refugiados. As tragédias individuais e familiares que acontecem nesse trajeto não são reveladas, em parte pelo medo e vergonha que essas pessoas sentem em contar suas histórias, e tampouco nos revelam os comportamentos destrutivos que muitos refugiados desenvolvem contra si mesmos devido ao sentimento de não serem aceitos, de se sentirem estranhos, desprezados e até odiados. Perguntamo-nos o porquê de tudo isso. Por que os ponteiros do relógio da humanidade sempre passam pelos mesmos números?
Guerra, ódio, loucura coletiva, impiedade, vidas prematuramente eliminadas, relacionamentos inesperadamente cortados, famílias despedaçadas, pessoas afastadas à força de suas raízes territoriais e de suas casas, corpos e corações violentados. Georges Benjamin Clemenceau, primeiro-ministro da França, disse no Discurso da Paz, em Verdun, em 20 de julho de 1919, após o final da Primeira Guerra Mundial: “Fazer a guerra é, de longe, mais fácil do que fazer a paz”.
Memórias de tantas guerras, de tantas tragédias e sofrimentos não parecem ser suficientes para que, em horas de crise aguda, o diálogo, a reconciliação, a solidariedade e a paz prevaleçam. Será que essas memórias que nos poderiam redimir serão continuamente esquecidas pelas próximas gerações, novamente incitadas pelo coletivo a destruir? Aqui podemos citar Aldous Huxley (1894-1963), o qual disse: “Que os homens não aprendem muitas coisas com as lições da História é a mais importante de todas as lições da Historia”. Infelizmente essas lembranças ficam quase limitadas a museus, filmes, livros… quando, na verdade, tinham que ser utilizadas como motivo de reflexão repetidamente ao longo dos anos em escolas, na educação familiar, em universidades, colégios militares, exército, partidos políticos, sindicatos, igrejas, comunidades, redes sociais, agendas de governo, o que soa como utopia e ingenuidade no mundo em que vivemos. Todas essas instituições deveriam continuamente e de forma sistemática pautar-se por uma frase citada em novembro de 1945, em Paris, quando da fundação da unesco, braço executivo da onu, inspirada na Liga das Nações, e que dizia: “Uma vez que as guerras se iniciam nas mentes humanas, é nas mentes humanas que precisa ser construída a ideia da paz”.
Uns desconfiam dos outros, partidos políticos demonizam-se uns aos outros, governos inspiram ódio em suas populações dentro do próprio país e contra outros países, justificando guerras, governos aumentam a cada dia seu poder bélico destrutivo, e a paz está sempre caminhando à beira do abismo. Um exemplo disso foi um líder de uma das três maiores potências mundiais que em 2018, ao apresentar seus poderosíssimos mísseis, disse que seu país não seria mais ignorado e desvalorizado. Hoje esse país invade a Ucrânia. Isso nos faz concluir que para sermos ouvidos pelo outro neste mundo é necessário que estejamos apontando uma arma em sua direção. É uma triste linguagem que parece não mudar na história da humanidade. A crueldade passa a dominar o comportamento das pessoas sem que haja qualquer questionamento crítico. E, quando surgem no interior de muitas pessoas sentimentos críticos sobre suas lideranças políticas que mobilizam o ódio nas populações através do uso criminoso da propaganda, estes sentimentos são muitas vezes quase que imediatamente sufocados pelo medo de punição, pela repressão à liberdade e aos direitos humanos. É difícil de imaginar e de aceitar que tenham existido pensamentos de líderes de países, idolatrados pelas suas populações, do tipo: “Todos os soldados que se tornarem prisioneiros traem o seu próprio país”.
Foi o caso da Guerra da Finlândia em 1939, poucos meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, quando Stalin ordenou que as tropas soviéticas, prevenindo-se de uma provável invasão alemã, que realmente ocorreria em 1941. Havia uma determinação de Stalin segundo a qual quem recuasse em combate ou se tornasse prisioneiro, fosse soldado ou oficial, seria tido como traidor e covarde. Svetlana Aleksievitch (2016a), Prêmio Nobel de 2015, conta, por meio de depoimentos, que no final dessa guerra, em 1940, quando da troca de prisioneiros, os finlandeses detidos foram recebidos com abraços e gritos de alegria pelos seus compatriotas. Já os prisioneiros soviéticos, felizes por terem sido libertados, foram recebidos como traidores, com armas apontadas para eles, e muitos foram fuzilados ou tratados brutalmente. E suas famílias também eram punidas com abandono e desprezo da população.
O papa Paulo VI, no final de 1967, propôs a criação do Dia Mundial da Paz, para ser celebrado pelos amigos da paz, independentemente do credo, etnia e outras diferenças. Essa proposta entrou em vigor em 1° de janeiro de 1968: assim, o primeiro dia de cada ano é o Dia Mundial da Paz. Há mais de 50 anos existe um momento no calendário em que cidadãos de grande parte do mundo poderiam celebrar e reforçar suas convicções pela paz, mas as pessoas nem sabem disso. A própria onu, por sua vez, criou a partir de 1981 o Dia Internacional da Paz, sempre em 21 de setembro. As religiões também poderiam ser fortes instrumentos para a paz, entretanto, elas mesmas podem inspirar ódio entre seguidores de crenças diferentes.
Em 1915, Sigmund Freud (1915/1976) escrevia: a ênfase posta em todas as culturas sobre o mandamento “Não matarás” é justamente o que nos oferece a segurança de que descendemos de uma extensíssima série de gerações de assassinos que tinham o prazer de matar, como talvez ainda nós tenhamos, correndo fundo nas veias. O final da Primeira Guerra Mundial soava a muitas pessoas como uma grande lição para a humanidade, que, depois de tanto sofrimento e miséria, certamente aprenderia a não repetir tamanha loucura. O presidente dos Estados Unidos da América à época, Thomas Woodrow Wilson, ao dar justificativas para seu país entrar no conflito e convocando os americanos para a luta, o que ocorreu a partir de abril de 1917, disse: “Esta é uma guerra para acabar com todas as guerras”.
Infelizmente não acabou. Vinte e um anos depois veio a guerra mais catastrófica da humanidade até então - a Segunda Guerra Mundial. Aquele mesmo presidente, após a Primeira Guerra Mundial, atuou decisivamente para a criação, em 28 de abril de 1919 em Versalhes, da Liga das Nações, que teria como objetivo maior assegurar a paz entre as nações.
A ideia de uma guerra justa é algo que pensadores como Aristóteles (384322 a.C.) e Cícero (106-43 a.C.) já aceitavam na Antiguidade. Santo Agostinho (354-430 d.C.) foi o primeiro na tradição cristã a definir a doutrina de uma guerra justa como aquela que tem por fim combater o mal e chegar à paz. A paz é usada para justificar a guerra. O inimigo é representado como o mal, e ele deve ser combatido. Essas duas guerras mundiais somadas causaram algo em torno de 100 milhões de perdas de vida entre militares e civis. É difícil ter a noção do que significa esse número. Às vezes é tão sofrido tentar compreender uma perda - parece que não existe espaço em nós para elaborarmos mais perdas -, o que dizer de tantos milhões? Acabam não tendo significado, sendo banalizados na indiferença. Assim, tudo passa e tudo é esquecido. Mas não é esquecido pelos sobreviventes e refugiados.
O que esperar do futuro se continuarmos sendo dominados por governos, por um pequeno grupo de pessoas que não se expõe ao perigo e que fomenta o ódio coletivo, dando espaço ao enorme potencial de destruição que temos em nós? Roger Money-Kyrle (1898-1980), psicanalista britânico, escrevia em 1934:
Eu não acredito que alguma nação moderna tenha iniciado uma guerra sem que o grande volume de seus cidadãos acredite na justiça de sua causa. A agressividade reprimida está presente, é claro; mas a consciência civilizada deve ser satisfeita antes que essa agressividade se exteriorize. O delírio persecutório fornece então a ilusão da causa justa. Assim como o indivíduo paranoico se torna homicida, assim a nação paranoica pode começar uma guerra que ela honestamente acredita ser necessária para sua autodefesa. (Money-Kyrle, 1934/2022, p. 670)
Não é muito animadora a frase de Albert Einstein (1879-1955), que disse: “Não sei com que armas a 3ª Guerra Mundial será lutada, mas a 4ª Guerra Mundial será lutada com paus e pedras”.
Quando será que veremos povos mais conscientes, mais preparados se recusando a atacar um ao outro, mesmo que suas lideranças políticas encontrem mil motivos para isso? Mahatma Gandhi usou a desobediência civil sem violência na luta pela independência indiana contra a repressão inglesa. Martin Luther King Jr. (1929-1968) usou a desobediência civil sem violência contra a legislação segregacionista americana. No dia 24 de outubro de 1975, sem violência, 90% das mulheres da Islândia recusaram-se a trabalhar nas empresas, nas instituições e nas suas próprias casas exigindo os mesmos direitos dos homens. Cinco anos depois esse país elegeu pela primeira vez uma mulher como presidente, e ela se tornou também a primeira presidente mulher eleita democraticamente no mundo.
No Natal de 1914, na frente ocidental da Primeira Guerra Mundial, depois de mais de quatro meses de combates violentos em trincheiras infernais e com enormes perdas de vidas humanas, soldados de ambos os lados fizeram algo inusitado, contrariando e enfurecendo os altos comandos e os políticos dos países envolvidos. Tudo aconteceu de maneira espontânea em diversos pontos da frente de combate, em que os soldados de um lado começaram a cantar as tradicionais músicas natalinas e passaram a ser acompanhados pelos inimigos, do outro lado das trincheiras, entoando as mesmas canções em seus próprios idiomas. Aos poucos, muitos soldados gritavam e mostravam cartazes com mensagens de Feliz Natal, e soldados mais ousados diziam: “Não atirem, e nós não atiraremos”. Levantavam-se em seguida das trincheiras com os braços erguidos e desarmados, caminhando com cada vez mais companheiros em direção do inimigo, que fazia o mesmo. Todos naquele momento arriscavam suas vidas, dando cada passo com medo e, ao mesmo tempo, com esperança nos corações. Ao se encontrarem, apertavam-se as mãos, diziam seus nomes, mostravam fotos, e inacreditavelmente até partidas de futebol chegaram a acontecer.
Foi uma desobediência de apenas um dia e que os soldados sobreviventes nunca esqueceram em suas vidas. Naquele memorável dia os soldados deixaram de ser robôs e sentiram por si próprios a estupidez da guerra. Ameaças e advertências logo surgiram de seus comandantes, e tudo voltou ao inferno anterior. Será possível algum dia que populações de países envolvidos em conflito mútuo, civis e militares, se unam em desobediência, sem violência, contra declarações e convocações de guerra?
Aristófanes (455-375 a.C.), comediógrafo grego autor de mais de quarenta comédias, escreveu uma peça em que as mulheres, cansadas e tensas com tantas lutas e mortes entre os combatentes de Atenas e Esparta, propuseram, sob a liderança de Lisístrata, uma solução para acabar com a guerra entre essas poderosas cidades. A resposta que encontraram foi realizar uma greve de sexo. Na comédia, os homens acabam não suportando essa pressão, e as mulheres atingem seu objetivo - a paz.
Podemos esperar que a partir de algum momento do futuro teremos lideranças políticas verdadeiramente comprometidas com a paz e a busca do entendimento, investindo em ações práticas de aproximações de países e valorizando as diferenças existentes, tanto dentro como fora dos países? Sabemos que ideologias radicais apoiadas por propaganda maciça podem liberar nos homens os instintos mais violentos, rebaixando sua consciência moral, e fazendo alastrar-se a crueldade, sem encontrar limites.
Difícil aceitar que seres humanos sejam capazes de assassinar coletivamente, com bombas ou outras formas de terror, milhares de famílias indefesas e desarmadas! Numa entrevista, um piloto britânico disse que, ao participar de um enorme bombardeio sobre Hamburgo, não sentia culpa na época, pois a ideia presente entre todos os demais pilotos é que a população da cidade, ou seja, homens e mulheres, era nazista. Diz ele que, depois do bombardeio, veio um pensamento desagradável: “Mas… e as crianças? Eram nazistas? Elas tinham culpa?”
Como compreender o horror das ações de extermínio contra o povo judeu? E quantas famílias dessa etnia optaram por tirar suas próprias vidas e as de seus filhos para escapar de uma morte pior nas mãos dos nazistas? - como me contou uma amiga de origem judaica sobre seus parentes na Polônia. O mesmo desrespeito à vida humana pode-se presenciar na atitude destrutiva em relação a nosso planeta, com o desrespeito à terra, ao ar, aos rios, às florestas e ao mar. Os efeitos das guerras estendem seus braços cruéis sobre milhões e milhões de vidas animais, não poupando a própria natureza, o que passa despercebido para muitas pessoas.
Ou será que é a natureza intrínseca da humanidade caminhar em direção a sua própria extinção? O ser humano é capaz de produzir avanços significativos para seu desenvolvimento e bem-estar, e da própria sociedade em que vive. Existe, entretanto, no homem um outro lado tenebroso, reprimido, que fica escondido, adormecido, e que, em certas circunstâncias, manifesta-se brutalmente, cruelmente, para satisfazer seus instintos mais primitivos e pode comprometer os avanços alcançados pelas sociedades. É como se dentro de cada pessoa existisse um anjo e um demônio, inseparáveis.
O poeta austríaco, nascido em Praga, Rainer Maria Rilke (1874-1926) escreveu isso de maneira muito clara: “Se meus demônios me abandonarem, temo que meus anjos desapareçam também”. Durante as cerimônias do centenário do Armistício da Primeira Guerra Mundial, celebradas em Paris sob o Arco do Triunfo no dia 11 de novembro de 2018, com a presença dos líderes de 60 países, o presidente francês Emmanuel Macron alertou: “Os antigos demônios estão ressurgindo, a história ameaça retornar a seu caminho trágico”.
Em nosso cotidiano, a violência descontrolada pode acontecer a qualquer instante no trânsito, num jogo de futebol, no parlamento, numa discussão entre vizinhos, dentro da própria família… O que fazer para despertar nas novas gerações um sentido de compromisso para o futuro, de cuidar do mundo em que vivemos? Atualmente muitas redes sociais, com a grande presença de fake news, criam um clima de intolerância, de desrespeito, de agressividade, estimulando nossos demônios internos. Esse desrespeito é muito visível nas diferenças sociais, na discriminação de cor, raça, crenças religiosas, orientações sexuais etc.
Num dos livros da coleção de Sigmund Freud aparece uma troca de cartas no período de julho a setembro de 1932, entre este, já com 73 anos, e o físico Albert Einstein, então com 53 anos, época que as teorias e descobertas de ambos já eram mundialmente conhecidas. Einstein na correspondência escrita em 30 de julho expôs para Freud seus pontos de vista sobre os motivos das guerras e quais seriam as soluções políticas para erradicá-las. Aponta sua perplexidade diante da facilidade com que os homens são inflamados para a guerra e a sacrificar suas vidas, e pergunta: “Há alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?” e “Será possível orientar o desenvolvimento psíquico do homem de modo que supere a psicose do ódio e da destruição?”.
Freud responde dizendo acreditar que exista dentro de nós uma pulsão de agressão, ódio, destruição e morte, que pode ser facilmente mobilizada em prol da guerra organizada, coexistindo com outra pulsão, também dentro de nós, que preserva e une, e esta nos traz a esperança tênue de que num futuro não muito distante a humanidade possa viver em paz.
Freud esclarece que ambas as pulsões são transfigurações teóricas do amor e do ódio, mas que não devem ser julgadas em termos de bem ou mal, uma vez que cada uma dessas pulsões é tão essencial quanto a outra. Todos os fenômenos da vida derivam de sua atividade, seja em conjunto, seja em oposição. Diz ainda que a total supressão das tendências agressivas humanas não é o que está em questão, mas sim como redirecioná-las a outras manifestações que não a guerra. Para Freud:
É verdade que tanto nossa inteligência quanto nossos sentimentos resistem assim a aliar o amor e o ódio: mas a Natureza, trabalhando com esse par de elementos antagônicos, consegue manter o amor sempre vigilante e renovado, protegendo-se contra o ódio, que sempre espreita em suas costas. Pode-se dizer, inclusive, que as mais belas florações de nossa vida amorosa são devidas a essa reação contra os impulsos hostis que sentimos dentro de nós. (Beust, 2006, p. 98)
O amor, diz Freud, pode ser entendido da mesma forma que na linguagem empregada pela religião, do amor ao próximo. Dentro da pulsão que preserva e une, Freud fala dos laços de sentimentos que se dão por meio da identificação e afirma que: “Tudo que põe em evidência as significativas semelhanças entre os homens mobiliza esses sentimentos de comunidade, de identidade”.
A frase de Freud que destaca os laços emocionais que se estabelecem entre pessoas, ou entre pessoas e lugares, e que podem contribuir para a paz, fazem lembrar-me de uma viagem para uma das mais preservadas e belas cidades medievais da Europa: Rothenburg, na Bavária, Alemanha. Quase no final da Segunda Guerra, no início de 1945 a cidade estava cercada pelos aliados. O comandante do cerco era um americano que em sua juventude havia visitado e se apaixonado pelo lugar. Criara laços emocionais com a cidade. Os habitantes de Rothenburg contam que a ação desse comandante evitou uma destruição maior da cidade.
Da mesma forma, o Parlamento Europeu, com o objetivo de fortalecer os vínculos entre os diversos países que formam o bloco, aprovou poucos anos atrás um projeto que estimula e custeia viagens de jovens desses países para conhecer as diversas culturas existentes dentro da Comunidade Europeia. É um investimento na juventude para a estabilidade do bloco no futuro, criando laços emocionais que aproximam os países entre si, permitindo que esses jovens desenvolvam uma identidade europeia e caminhem no sentido oposto às divisões regionais.
Um outro exemplo de aproximação de pessoas pela identificação aconteceu em 1966 em Verdun, na França, onde veteranos alemães e franceses sobreviventes da mais longa batalha da Primeira Guerra Mundial, que durou 303 dias ceifando mais de 700.000 vidas humanas, foram convidados pela primeira vez para estarem lado a lado. Os ex-combatentes reunidos olharam-se de frente, uns aos outros, perplexos, por alguns instantes e logo em seguida, tomados por uma grande emoção, caíram uns nos braços dos outros expressando sua solidariedade mútua e tristeza por tantas vidas perdidas.
Jacques Chirac, ex-presidente da França, falou sobre a Primeira Guerra Mundial de uma maneira direta e até surpreendente, em 26 de junho de 2000, numa visita de Estado à Alemanha: “Três milhões de soldados alemães e franceses morreram por nada”.
Quantas pessoas continuam e continuarão morrendo por nada? Obter consenso é algo extremamente difícil quando nações são tomadas pelo ódio, não aceitam nem respeitam mediadores que quase sempre não têm autoridade para impor a negociação.
Freud diz ainda que não devemos duvidar da força e importância das aspirações éticas dos homens e que o destino da humanidade civilizada depende mais do que nunca das forças morais que ela é capaz de gerar. Explica que o desenvolvimento cultural valorizando a ética colabora com as mudanças psíquicas que favorecem o decréscimo das reações pulsionais. Por outro lado, alerta-nos de que acabar com as guerras é impossível enquanto as condições de existência dos povos forem tão distintas e tão violentas as aversões entre eles.
Politicamente tanto Einstein como Freud concordam na sua correspondência em que o ideal seria o estabelecimento, pelos estados nacionais, de uma autoridade legislativa e judiciária acima desses mesmos estados, e estes aceitassem e cumprissem as decisões tomadas por essa autoridade maior. Ambos, da mesma forma, concordam em que isso é algo difícil de acontecer, uma vez que nenhum dos estados atuais admite que suas autonomias sejam ameaçadas.
Finalmente, numa entrevista à revista Survey Graphic de agosto de 1935, quatro anos antes da Segunda Guerra, Einstein, ante a pergunta “Será que algum dia seremos capazes de abolir a guerra?”, respondeu:
Sim, acredito que sim. Na verdade, estou certo disso. Nossa esperança jaz na educação dos jovens para uma visão mais sã da vida. ... A maior aspiração do ser humano, e sua maior alegria, é trazer beleza e fraternidade à vida. Isto não será conquistado através do medo, mas desafiando o que há de melhor na natureza humana. (Beust, 2006, p. 101)
Acrescento ainda, do líder indiano Mahatma Gandhi (1868-1948), as seguintes palavras: “Não quero que minha casa seja cercada por muros de todos os lados e que as janelas estejam todas tapadas. Quero que as culturas de todos os povos andem pela minha casa com o máximo de liberdade” (Ghandi s. d).
Quando jovem, li uma história contada por um professor e escritor brasileiro chamado José Hermógenes de Andrade Filho (1921-2015), um dos introdutores e pioneiros da yoga no Brasil. O título do livro era Mergulho na paz (1970/2021), e um dos contos falava sobre duas ilhas, próximas uma da outra, que não paravam de se atacar por longos séculos, uma dizendo-se melhor que a outra. Um dia um desastre natural fez com que uma das ilhas afundasse nas águas do oceano. Muitos e muitos anos depois, um novo desastre natural fez com que a ilha restante, por sua vez, também tivesse o mesmo destino.
A ilha, à medida que ia afundando, já bem abaixo do nível do mar, foi percebendo, para sua surpresa, que esta e a outra ilha, que ela tanto amaldiçoava, faziam parte de um mesmo continente submerso. Não havia separação - só na superfície. Da mesma forma, os seres humanos agem como essas duas ilhas.
Svetlana Aleksievitch (2016b) reproduziu um depoimento de uma enfermeira soviética que, no meio da escuridão de um campo de batalha em Stalingrado, procurava salvar feridos de suas tropas e se viu arrastando dois soldados com ferimentos muito graves e que perdiam muito sangue. Aos poucos, puxava um de cada vez, até que percebeu, depois de sair da fumaça, que um deles era alemão. Ficou perplexa, estava salvando um inimigo, enquanto outros compatriotas precisavam de ajuda. “E, agora, o que eu faço?” - pensou ela, afastando-se do alemão por um momento. Contou a enfermeira que não pode existir um coração para amar e outro para odiar, que o ser humano só tem um e que ela sempre pensava em como salvar seu próprio coração. No final, resolveu salvar os dois.
Muito trabalho ainda tem que ser feito pela paz. Hoje as nações discutem juntas as questões climáticas, engajam-se no estabelecimento de metas a serem atingidas. Criam seus ministérios para o Meio Ambiente. Da mesma forma, países deveriam engajar-se no tema da paz e também poderiam criar seus ministérios para a Construção da Paz em seus próprios governos.
Estamos atualmente em uma época de grande perigo para a paz mundial, que avança cada vez mais para situações incontroláveis. Roger Money-Kyrle (1934/2022) afirma: “Uma vez que uma guerra se inicia, os últimos vestígios de sanidade desaparecem” (p. 671).
Os seres humanos encontram-se divididos tanto sobre seus pensamentos e ideias sobre a guerra e a paz, como dentro de si mesmos, e aí demônios e anjos disputam seus espaços. O grande desafio é não ser indiferente e não desistir jamais.