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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.75 São Paulo Jan./June 2023  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n75.06 

Guerra e paz, uma odisseia

O PORQUÊ DA PAZ

The why of peace?

David Léo Levisky1 

Membro efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) com especialização na infância e adolescência. phd em História Social. Membro fundador da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família. Autor e organizador de livros e artigos nacionais e internacionais: Meu pai, um desconhecido? São Paulo

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo


Resumo

O autor, parafraseando Freud: “O porquê da guerra”, desenvolve algumas reflexões sobre as condições que envolvem o binômio guerra e paz como intrínsecas à natureza humana, mas que podem ser melhor compreendidas e terem suas consequências atenuadas ao serem considerados alguns conceitos da psicanálise clássica e da teoria da psicanálise vincular.

Palavras-chave: guerra; paz; psicanálise; vínculos; continente; narcisismo

Abstract

The author, paraphrasing Freud’s “The why of War?”, develops some reflections on the conditions surrounding the binomial war and peace as intrinsic to human nature, but that can be better understood and have their consequences mitigated when some concepts of classical psychoanalysis and the theory of linkage psychoanalysis are considered.

Keywords: war; peace; psychoanalysis; linkages; continent; narcissism

Vivemos uma época de incertezas econômicas, políticas e sociais agravadas pela pandemia e guerra entre russos e ucranianos, entre outros conflitos mortais dispersos pelo mundo. Talvez sempre tenha sido assim, com alternância entre períodos de guerra e paz em diferentes regiões, que agora nos chegam facilitadas pela globalização. Eventos que afetam o dia a dia e nossos imaginários. Deseja-se a paz, mas se faz a guerra. Inicia-se a guerra para conquistar a paz. Fala-se em amor a Deus e por amor a Ele se faz a guerra, como foi durante as Cruzadas. Matase pela expansão do islamismo; ainda hoje, ouve-se o ruidoso silêncio da Igreja durante a Segunda Guerra Mundial. Guerra e paz, reflexos do paradoxo humano intrínseco à nossa natureza.

A história da humanidade mostra que paz e guerra são estados que se alternam, na dependência de múltiplos fatores objetivos e subjetivos, conscientes e inconscientes. (Blucher, 2022), Dicionário de psicanálise de casal e família (Blucher, 2021).

A guerra é uma manifestação humana equivalente aos cataclismos da natureza, quando revoluções ambientais ocorrem promovidas por dilúvios, inundações, tsunamis, queimadas, explosões vulcânicas, quedas de meteoros e procrastinação humana frente às questões climáticas. Conjuntura de múltiplos fatores que alteram a geografia, a morfologia da terra, sua ecologia. Fenômenos que promovem caos e transformam o meio ambiente, imprimindo destruições e adaptações criativas, com a busca de novos equilíbrios ao novo conjunto que se forma. Inclui transformações nas formas de existência e de ser no mundo mineral, vegetal, animal ou cósmico. Seria um novo estado de equilíbrio o qual denominamos paz? Estado temporário, transitório, distinto da ausência de tensões, até que surjam novas forças capazes de alterá-lo, lenta ou abruptamente, com novos cataclismos ou guerras.

Leon Tolstói publicou em 1869 o livro Guerra e paz, que trata com profundidade conflitos e desuniões da vida cotidiana da natureza humana que podem chegar a estados de guerra. A exposição Guerra e Paz, realizada em 2013 no Museu de Luxembourg, em Paris, apresentou imagens do pintor Marc Chagall (Vitebsk, 1887-Saint-Paul-de-Vence, 1985), que, de forma onírica e surrealista, expressou com maestria e criatividade vivências dos costumes judaicos, perseguições e recordações nostálgicas de sua infância e juventude, antes de migrar para Paris. O pintor, cenarista, autor de vestuário teatral revelou em suas telas momentos contraditórios da vida, entre eles, guerra e paz. Fenômenos da condição da humana, que, apesar de toda sua capacidade cortical, crítico-analítica, reflexiva, intuitiva, se esvai diante de certas conjunturas psicológicas, econômicas, sociais, políticas, históricas e, eminentemente, de poder. Elementos capazes de quebrar a paz, aumentar a tensão relacional entre grupos ou países ao provocarem a eclosão de conflitos que podem caminhar para a guerra.

Paz, processo almejado que se manifesta diante de variações do equilíbrio interior ou externo, individual ou coletivo. Condição emocional capaz de gerar harmonia, conciliação, solidariedade, compaixão, esperança, integração na crença de um mundo melhor, de um ser humano capaz de lidar com diferenças, interesses, individualidades, ao suportar tensões internas e externas. Quando esse estado de equilíbrio interno ou coletivo se rompe, causando o desequilíbrio do conjunto de forças que interatuam, rompe-se o envoltório da continência emocional e aumentam os riscos de promover-se a guerra. Emerge o poder dominador. Força mobilizada pelo desejo de opressão, domínio e, por fim, o extermínio. Inicia-se um processo de luta armada com o intuito de destruir o inimigo, ameaça real ou ilusória, que pode ser econômica, étnica, religiosa, a uma nação, povo ou um simples desejo de poder, de dominação.

Freud (1932/1973a), ao responder a Einstein sobre “O porquê da guerra?”, desenvolve uma série de ideias, em um momento histórico caracterizado pela expansão do comunismo após o término da Primeira Grande Guerra, a criação do populismo gerado pelas ideologias nazifascistas e o mundo capitalista. Conflitos que antecederam a eclosão da Segunda Grande Guerra, diante de uma Europa em estado máximo de tensão. Conhecemos as barbáries cometidas no Holocausto e a perda de 50 milhões de pessoas. O mundo ficou melhor após o acometimento dessas tragédias? A natureza humana melhorou? Evoluiu?

Reconheço evoluções na tecnologia, na formação de instituições que pretendem circunscrever os conflitos ao redor de uma mesa de discussão. Mas a essência da natureza humana não muda. O homem bárbaro nos habita e eclode em certas circunstâncias individuais ou coletivas. Freud enfatiza a presença do poder do mais forte sobre os mais fracos ou oprimidos. Fala também da relação entre direito e forças no sentido de se preservar ou atenuar por meio de códigos de coexistência, de preservação da vida e de compaixão pela dor humana, ao unir os mais fracos e gerar um conjunto suficientemente forte para opor-se ao agressor e demovê-lo de desejos de aniquilar os fracos (inimigos) e evitar a resistência e desejo de vingança que atinge os dominados e invadidos. Finalmente, aborda a dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte, presentes e intrínsecas à natureza humana e à vida, fatores presentes no indivíduo e na vida coletiva. Esse equilíbrio depende da atividade adaptativa e criativa dos elementos envolvidos. Entre os humanos existe a possibilidade de respeito, consideração, solidariedade, compaixão, diálogo, renúncia de desejos, acordos e regulamentações. Isto é, substituição das forças pelo direito, pela ordem, pela constituição que rege a vida relacional entre pessoas e nações, com seus diferentes atores em busca de maior integração e paz. Isto é, mudanças nas características das relações vinculares bem como do teor fantasmático que envolve as relações humanas.

Surgiram instituições e leis nas tentativas de atenuar os riscos da eclosão das guerras, como a Liga das Nações, sem grande sucesso. Hoje, o fenômeno se repete em relação à guerra entre russos e ucranianos, com a intermediação da Otan, das Nações Unidas e da Comunidade Europeia, ao tentar atenuar e evitar a eclosão de uma guerra nuclear.

Vivemos, hoje, a repetição da quebra da paz, com a eclosão da guerra Ucrânia-Rússia, que não está caminhando para a Terceira Guerra Mundial graças aos temores gerados pelas consequências de uma guerra nuclear capaz de eliminar as testemunhas que poderiam vir a contar a história da bestialidade humana. Resíduo animal de pulsões destrutivas que acompanham o ser humano. Em certas condições, a rede complexa de vínculos pode romper o estado de equilíbrio individual, coletivo, institucional ou entre países. Essa ruptura do equilíbrio, entenda-se da paz, independe das capacidades intelectuais e culturais dos líderes, governantes e populações. Tomados por ideias de grandiosidade narcísica, onipotência, vingança ou de visão messiânica - salvadora da pátria e até da humanidade - agem em nome de uma identidade e assumem o direito e o poder de exercerem a violência para impor seus desejos e ideais.

O estado de equilíbrio é instável e dinâmico tanto em nível individual como no coletivo. Há conjunturas de forças que tendem a desorganizar o indivíduo, os grupos, as instituições, os países em busca de novos estados de equilíbrio. O conceito de aparelho psíquico grupal (Kaës, 1976/2000; Castanho, 2021), vindo da psicanálise vincular, nos ajuda a compreender os diferentes vínculos inconscientes que se estabelecem em um grupo, seja ele familiar, institucional, em uma nação ou na comunidade mundial globalizada. Surgem organizações mundiais, como a onu, o Grupo dos 7, o Grupo dos 20, a Cúpula do Clima - tentativas de reunir interesses e forças com vistas a realizar acordos e diminuir o risco das guerras, sempre presente. Será a percepção da presença da pulsão de morte que leva grupos a preservar a vida, enquanto outros, ou os mesmos, produzem novas armas com extraordinário poder de destruição? Pulsão de morte, conceito freudiano compreendido como uma “categoria de pulsões que se opõem à vida e que tendem à redução completa das tensões, quer dizer, a conduzir o ser vivo ao estado inorgânico” (Laplanche, & Pontalis, 1973).

Freud (1932/1973a) menciona que “a união faz a força”, seja para o bem ou para o mal, na perspectiva de se defender ou de atacar. Nos momentos de guerra os valores éticos são substituídos pela lei do mais forte, geridos pelos desejos mais primitivos e selvagens. Terminada a guerra, vem a dor das perdas e da submissão para uns e glória para outros. Surge a esperança da paz em meio a acordos, reparações, reconstruções e, frequentemente, progresso com as reconstruções e adaptações às novas condições de vida.

A paz, estado mental desejável, é instável. Mantê-la dá muito trabalho, pois requer diálogo, reflexão, consideração ao outro e às diferenças e diversidades de posicionamento, atenção, cuidados, renúncias a favor do bem comum, capacidade para integrar a rede complexa de relações, ideias, valores, desejos e interesses. Surgem tensões, até que novas conjunções sociais, políticas, econômicas e históricas venham a romper esse estado de equilíbrio instável e dinâmico, ruptura capaz de esgarçar a membrana envoltória, a tessitura psíquica individual e coletiva, continente das contradições e divergências pessoais e coletivas.

No texto Psicología de las masas y análisis del yo,Freud (1921/1973b) nos ajuda a compreender como regressões narcísicas levam sujeitos e nações à cegueira, à negação da realidade, à utilização da figura do “bode expiatório” na idealização e busca de “soluções finais”, como foram os extermínios de judeus, ciganos, negros, homossexuais durante a Segunda Grande Guerra, mobilizadas por fantasias conscientes e inconscientes segundo as quais estes ameaçavam a pureza da raça branca e ariana.

A configuração do aparelho psíquico individual e grupal depende do desenvolvimento de uma “pele psíquica”, de um envoltório virtual, de uma função continente (Blini, 2020), capaz de suportar os elementos psíquicos em seus antagonismos e contradições. Bion (1962) trouxe o conceito de continente, Benghozi (2010), o de maillage, tessituras psíquicas capazes de se amoldar e dar continência às potencialidades e conteúdos psíquicos dentro de um certo grau subjetivo de tensão. No estado de guerra parece ocorrer uma ruptura ou esgarçamento do envoltório mental psicossocial que sustenta os afetos, as emoções, os sentimentos e ideias convergentes e contraditórios. A ruptura e o esgarçamento dessa membrana virtual mental de continência e trocas afetam a organização político-social individual e coletiva. Prevalecem poder, glória, enaltecimento narcísico do lado dos vencedores, contrapostos à depressão moral, humilhação, perda da autoestima, miséria, fome, violência física, desejos de vingança, dor e morte entre os vencidos.

A decisão de se declarar a guerra é favorecida por uma reversão da perspectiva (Bion, 1962). Conceito bioniano que domina o pensamento dos líderes, contamina as massas (populismo). Líderes fanáticos e ditadores tendem a perceber a realidade por um único vértice, o que leva ao enrijecimento do pensamento, em detrimento do processo de elaboração.

As fake news, sabotagens, desconstruções das informações são processos que fragilizam as redes de relacionamento, as instituições, as condições básicas da vida. Desorganiza-se a vida social, ao favorecerem ideias e condutas direcionadas pelos donos do poder para gerar divisão entre as pessoas, submissão, terror e transformar a oposição em inimiga.

Sem ter a experiência direta das guerras, sou filho delas, na medida em que herdei tanto um legado cultural e afetivo de amor à vida quanto vivências traumáticas e sequelas dos horrores da guerra sofridos pelos meus avós e pais. Eles sofreram o desmantelamento das famílias, mortes, perdas de bens, violação, fugas, desenraizamentos. Porém, a criatividade humana é incrível, com sua capacidade de reorganização e readaptações construtivas, apesar de ansiedades catastróficas e angústias sem nome diante de perigos reais ou imaginários, como os relatos presentes no livro Meu pai, um desconhecido? (Levisky, 2022). Meus familiares são fugitivos da Ucrânia e Moldávia nos anos 191020, ameaçados pelos horrores da dominação e espoliação stalinistas, defendidas pelos bolcheviques comunistas, agravadas pelas perseguições aos judeus da Europa do Leste, dominados pela miséria, fome que marcaram o antes, o durante e o após a Primeira Guerra Mundial. Fenômenos que se repetiram ao longo de décadas, culminando com os horrores da Segunda Grande Guerra.

Hoje, apesar de instituições como a onu, que pretendem desenvolver um espaço continente para abrigar diferenças de ideias e oportunidades de diálogos políticos, elas são incapazes e insuficientes para evitar a guerra. Razões históricas, algumas similares às do passado, outras contemporâneas, estão levando a Rússia - conservadora de um espírito tsarista representado pelo seu presidente atual, Vladimir Putin - a tentar impor opressão e medo aos vizinhos ucranianos. Para Putin, o Ocidente, com seus valores e interesses, representa uma ameaça à Rússia. A guerra por ele iniciada faz reacender fantasias e conflitos escondidos, camuflados, projetados e identificados inconscientemente pelos ucranianos e outros filhos de outras guerras. Muitos deles foram forçados a abandonar seus lares, familiares e bens, ameaçados por aqueles conflitos e fantasias, que alteram a paz e são sentidos e temidos por todos, na medida em que se vive sobre um barril de pólvora cercado de fogo.

O Brasil atravessou e está diante de uma fase difícil caracterizada por forças representativas de ideologias nazifascistas capazes de quebrar a paz, a ordem e violentar a Constituição. Fazem uso da força física, da submissão pelo terror e afrontam o estado democrático de direito. Há entre esses um desejo de quebrar o fórum de debates, a Constituição e suas instituições representativas (Congresso Nacional, stf etc.), órgãos que acolhem as divergências de ideias, de credo, cor, gênero como partes integrantes de uma unidade maior, a nação. As ameaças do terror repetem-se evocadas pelos grupos radicais de direita ou de esquerda emergentes no Brasil.

O mundo segue em turbulência com intenso fluxo migratório daqueles que procuram a paz ao fugirem das guerras espalhadas pelo mundo. Pergunto sobre o porquê da paz. A resposta vem da palavra hebraica Hatikva - esperança de um mundo melhor, que acolha sua própria diversidade. A história mostra que, uma vez alcançada, a paz tende a durar algum tempo diante de novas conjunturas das forças que a compõem. Demorei para entender a expressão judaica dita em momentos de dor (luto familiar) na hora das despedidas: “sempre em festas”, no sentido de se buscar na ilusão um estado permanente de alegria e paz, desejos de esperança de um mundo sem dor, sem tensão, uma utopia. Seguimos em frente, porém, e felizmente, com fé de que a paz será alcançada graças à prevalência da resiliência e do amor à vida. Esperança.

Referências

Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação. Vetor. [ Links ]

Bion, W. R. (1962). Learning from experience. William Heinemann. [ Links ]

Blini, C. (2021). Holding familiar - função continente. In R. B. Levisky; M. L. Dias & D. L. Levisky. Dicionário de psicanálise de casal e família. Blucher. [ Links ]

Castanho, P. (2021). Aparelho psíquico grupal. In R. B. Levisky; M. L. Dias & D. L. Levisky, Dicionário de psicanálise de casal e família. Blucher. [ Links ]

Freud, S. (1973a). El porqué de la guerra. In S. Freud, Obras completas (Vol. 3). Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1932) [ Links ]

Freud, S. (1973b). Psicología de las masas y análisis del yo. In S. Freud, Obras completas (Vol. 3). Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1921) [ Links ]

Kaës, R. (2000). L’appareil psychique groupal. Dunod. (Trabalho original publicado em 1976) [ Links ]

Laplanche, J. & Pontalis, J. H. (1973). Vocabulaire de la psychanalyse. PUF. [ Links ]

Levisky, D. L. (2022). Meu pai, um desconhecido? Blucher. [ Links ]

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