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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.75 São Paulo Jan./June 2023  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n75.09 

Guerra e paz, uma odisseia

D’ANNUNZIO E A GUERRA

D’Annunzio and the war

Luca Trabucco1 

Psiquiatra, psicanalista, membro da Sociedade Psicanalítica Italiana (SPI) e da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise. Supervisor e terapeuta de uma comunidade para adolescentes psicóticos. Gênova

1Sociedade Psicanalítica Italiana, Associação Psicanalítica Internacional


Resumo

Para entender a gênese de sua personalidade particular, o autor utiliza-se de uma visão que remete à transmissão transgeracional, que leva a uma alteração da identidade do pequeno Gabriele. Assim, suas “paixões” são marcadas por exasperação e falsidade, expressões de um falso self. O prazer sadomasoquista que em sua memória marca a relação parental leva-o a uma exaltação da guerra, que também teve algum peso para trazer a Itália para a loucura coletiva da Primeira Guerra Mundial.

Palavras-chave: D’Annunzio; falso self; transgeracionalidade; perversão; âmbito negativo

Abstract

To understand the genesis of his particular personality, the author uses a vision that refers to transgenerational transmission, which leads to a change in little Gabriele’s identity. Thus, their “passions” are marked by exasperation and falsehood, expressions of a false self. The sadomasochistic pleasure that marks the parental relationship in his memory leads him to an exaltation of war, which also had some weight in bringing Italy into the collective madness of the First World War.

Keywords: D’Annunzio; false self; transgenerationality; perversion; negative realms

Em sua obra, Gabriele D’Annunzio narra as vivências “trágicas” de sua infância.

A morte do amado cavalo Aquilino no estábulo de sua propriedade, o feitor Raffaele Campione com suas codornas aprisionadas e a vara para romper os ninhos das andorinhas, os gritos dos porcos abatidos no pátio e o primeiro sangue que jorrou de uma ferida em sua mão fizeram com que sentisse prematuramente aquele “espasmo de horror” que cultivou durante sua vida como uma riqueza de seu temperamento e que despertou nele aquele poder de “transfiguração e sublimação”, aquele sentimento e necessidade de mistério sem os quais não lhe parecia possível atingir seu ideal literário e poético. (Chiara, 1978, p. 8)

Na verdade, estamos falando de experiências “comuns” às infâncias, embora dolorosas, em geral - a perda de um animal querido, um ferimento -, ou especialmente relacionadas, por exemplo, à “cultura” camponesa da época: a tragédia da matança do porco era um evento que marcava o tempo de uma vida. Um ritual, como demonstrou com extrema sensibilidade E. Olmi em seu filme A árvore dos tamancos, em que se fazia a intersecção do sadismo infantil com a piedade materna.

Em D’Annunzio essa intersecção não tem morada. Em sua vida a piedade materna não encontra lugar, o porco pode ser somente objeto de sadismo infantil, e a experiência de satisfação pode realizar-se no “espasmo de horror”.

Seu nome completo deveria ser Gabriele Rapagnetta d’Annunzio. Seu pai, Francesco Paolo Rapagnetta d’Annunzio, foi adotado em tenra idade por uma tia, que não podia gerar filhos, sendo ele o sexto filho de seus pais naturais, o casal Rapagnetta. A tia havia se casado com um proprietário em Pescara. Francesco Paolo tinha um estilo de vida - que parece ter deixado como herança a Gabriele - para o qual dedicou-se a numerosíssimas amantes e foi capaz de dissipar a notável fortuna que seu pai adotivo lhe havia deixado, o que culminou em uma série de dívidas que, por anos e anos, recairá sobre os ombros do filho, somando-se àquelas, quase infinitas, que o “vate” (poeta), por sua vez, foi capaz de contrair. Além disso, nas certidões de nascimento de seus filhos começa a assinar Francesco Paolo D’Annunzio, deixando de lado seu sobrenome de origem.

Muito cedo Gabriele é separado de sua família, e enviado a estudar em um prestigioso colégio de Prato, o Cicognini. Assim, a infância de Gabriele é perdida junto com seu sobrenome de família, Rapagnetta, rejeição paterna com raízes assinaladas pelo abandono, por ter sido “dado” à tia, como se fosse um elemento sem valor e supérfluo em sua família; pela falta de reconhecimento dos aspectos de necessidades da infância, o que de algum modo transgeracional condenou Gabriele a não ser, a subsistir unicamente como materialização, por um lado, da negação da fragilidade e, por outro, como expressão do pensamento onipotente, verificado na identidade ideal “D’Annunzio”, terminando por ser a encarnação de um positivo delirante de um negativo aranhazinha/ Rapagnetta (ragnetto = aranhazinha, pequena aranha), não podendo jamais ser um simples Gabriele.

A transfiguração do horror, do espasmo da morte, em espasmo do orgasmo é a forma mais explícita e basal da perversão: perverter, literalmente, é “pôr embaixo e em cima” (virar de ponta-cabeça), inverter as polaridades; o prefixo “per” anteposto a “verter” expressa duração. A perversão, portanto, é crônica, permanece constante ao longo do tempo, “será cultivada ao longo da vida”, como observa Piero Chiara.

Durante a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, Gabriele, está na França, onde se refugiara alguns anos antes a fim de escapar de seus credores italianos (nesse meio tempo contraindo novas dívidas, agora com os franceses). A ofensiva alemã chegou rapidamente às portas de Paris, e D’Annunzio aproveitou-se disso de várias maneiras. A primeira foi lucrar atuando como “repórter” de guerra - sendo para isso “extrarremunerado” tanto por jornais franceses, quanto por italianos -, escrevendo artigos em que apresentava seu testemunho em primeira pessoa da “carnificina” - termo que usava com evidente satisfação - e das destruições em ato; na realidade, transfigurando literariamente, com seu estilo grandiloquente e retórico, narrativas reportadas, mantendo seguro distanciamento do teatro “quente” dos combates. Por outro lado, com gosto perverso, admirava na retaguarda os cenários, renovando seu “espasmo do horror” diante das ruínas, dos cadáveres desmembrados, daquela “hedionda carnificina”, que, evidentemente, despertou suas excitações.

Mais tarde essa paixão pela guerra, intensa como a própria carnificina e destruição, levou-o a ter um peso importante para fazer prevalecer, na Itália, o partido dos “intervencionistas” na Primeira Guerra Mundial. Seiscentos e cinquenta mil mortos, quatrocentos mil mutilados, economia de joelhos, caminho aberto para o fascismo como consequência. Sucessivamente, seu tornar-se ativo na ação de guerra, uma busca final perversa/depressiva da morte, ao criar movimentos juvenis voltados ao sacrifício - talvez, para alguns, um modo exaltado de expressão de um ideal -, era para ele criação de objetos e situações que poderiam lhe causar “espasmos de terror”.

Canto a morte, alada e iluminada

Como a primeira lei da luz.

A vida é menos fértil. É renascida.

Dela, a alta beleza. Ela produz

As sementes que nós nas ruínas

Semearemos cantando. Ela conduz

As musas, condutora mais divina

De Apolo. Não há tumbas, mas troféus.

Está tudo envolto no ar matutino

Como mensageira dos deuses

Os mais jovens heróis são teus filhos.

Ó Gloria, e ela está aí onde você está.

Ó Primavera, e você é como ela

Enquanto sopra o vento do Deserto,

Ela inflama as anêmonas vermelhas.

(D’Annunzio, 1912, p. 61)

A guerra é expressão do ódio dos pais para com os filhos, por meio da criação de pretextos dos “pais” para enviar seus filhos à morte (ver Raskovski, 1973/1974). “Em paz os filhos sepultam seus pais, enquanto, na guerra, são os pais a sepultar seus filhos” (Heródoto) - reporta D’Annunzio, para acionar coercitivamente a repetição de sua origem, do destino de um filho rejeitado, identificando-se com o pai rejeitador-filicida. Como de fato procedeu em relação aos próprios filhos, que foram afastados prematuramente pela família, e depois esquecidos.

Mas ainda assim o ciúme sombrio o feriu. Àquela criatura delgada, tão envencilhada à mãe, assim intimamente emaranhada com a alma dela, que lhe parecia uma inimiga; lhe parecia um obstáculo intransponível que se ergueu contra seu amor, contra seu desejo, contra sua esperança. Ele não tinha ciúmes do marido dela, mas da filha. (D’Annunzio, 1889, p. 92)

O período “militar” da vida de D’Annunzio, em que um aspecto depressivo pode ser detectado, conforme eu disse antes, com os famosos episódios da Farsa de Buccari, o Voo sobre Viena, a Tomada de Fiume, serve de prelúdio para sua decadência, que culminará no “retiro” em sua casa no Complexo (envolvendo edifícios, teatro ao ar livre, fortaleza) Vittoriale degli Italiani, em Gardone, às margens do lago de Garda. Período em que se amontoam esboços de ideias políticas oscilando, sendo infundadas, em paixão, entre um tacanho nacionalismo belicista, e um socialismo populista, entrando em conflito com o emergente Mussolini, não tanto por divergências de ideias - assumindo que no que se refere a tais personagens se possa falar em ideias, quanto mais em ideais -, mas dessa mesma forma como na época poderia ter havido uma disputa entre Eleonora Duse e Sarah Bernhardt, sobre quem teria sido a atriz mais importante. D’Annunzio não poderia permanecer à sombra de Mussolini (e vice-versa), o qual, no entanto, será posteriormente objeto de suas manipulações, às quais, aliás, Mussolini se curvará quase completamente, interessado no consentimento dos movimentos ainda existentes ligados ao “vate”.

Nos anos vividos no Vittoriale, testemunhamos de alguma forma o ressurgimento do Rapagnetta: amaldiçoa a “velhice lívida” que o reduz a “dar depois de ter tido tanto”, como se expressa para Natalia Golubev, a qual caiu na pobreza e na solidão, e se volta para ele pedindo ajuda, o que, por sua vez, fará também assiduamente com seu irmão, que da América, para onde emigrou, continuamente lhe pede uma “última ajuda” para uma situação desesperadora e delicada, graças a que se encontra sob constante pressão, de outro lado, para encontrar recursos destinados também ao irmão. Uma espécie de deusa da vingança volta-se contra ele, não apenas por sua vida passada (mas também pela presente), em que se portava como um estranho mendigo que demanda dinheiro para manter seu absurdo estilo de vida e inventa promessas jamais cumpridas ou engana amigas e potenciais mecenas, mas também pela vida de seu pai, antes dele, embora este tivesse tido fortuna menor que a dele. O Rapagnetta aparece na lívida velhice, no aspecto repulsivo e doentio que assume, porém, incluindo o enxame de prostitutas que suas companheiras à época, a Bàccara e, em seguida, a Huesler, contratam para saciar suas necessidades compulsivas, precisando superar uma natural aversão em ter que lidar com tais questões. Ressurge em seu comportamento o hábito de implorar favores a Mussolini para amigos de quem depende, sobretudo economicamente; aparece nas fantasias megalomaníacas das quais se nutre - de novas proezas guerreiras, que ao fim resultaram apenas em algumas salvas disparadas do Vittoriale, algum giro de barco pelo lago de Garda, ou fantasias simplesmente absurdas -, tentando obter daqui e dali favores econômicos. D’Annunzio, com essa conduta, é coagido a testemunhar que ainda é D’Annunzio, não tendo se transformado em “Rapagnetta”.

O retrato de D’Annunzio nos anos do Vittoriale induz uma profunda tristeza a respeito de um homem que não pôde ser nada além de um fantoche; a materialização de uma alucinação megalomaníaca. “Sou camaleônico, quimérico, incoerente, inconsistente. Qualquer esforço meu pela unidade, será em vão” (D’Annunzio, 1889, p. 152). Atravessado por uma única emoção, a de poder manter o vazio de amor, de paixão, que o perpassou, e o consequente espectro de um colapso depressivo, seja na condição de objeto de não amor por parte de um casal parental igualmente esvaziado, ou como sujeito incapaz de amar, a desmesurada valorização de si mesmo não corresponde em nada a um autêntico amor-próprio, que seria endereçado ao próprio desenvolvimento, à consciência de seus próprios limites, à procura de uma parceira ou parceiro com quem compartilhar uma vida vivida, o amar, o odiar, o conhecer, a dúvida e a certeza, a angústia e a serenidade, ou seja, as paixões do viver. Paixões que D’Annunzio nunca conheceu. Pessoalmente, creio que a obra literária de D’Annunzio somente por acaso, e em raros momentos, consegue “emocionar”, como algo correspondente a uma possível emoção sentida no momento em que foi escrita. Penso no Notturno e em algumas passagens do Libro segreto (Livro secreto). Na maior parte dos casos em que isso acontece, creio que seja resultado de sua habilidade mimética: como era habituado a copiar pari passu trabalhos de outros autores e publicar como “próprias” tais criações, assim podia descrever, com uma indubitável habilidade linguística, as emoções de outras pessoas; embora raramente sua escrita vá além de uma autobiografia documental focalizando uma catástrofe pessoal.

O drama de Gabriele

Donald Winnicott propôs a teoria do verdadeiro e do falso self, para definir uma cisão do self (que) é saudável, e é uma conquista que se alcança pelo desenvolvimento: em estado de adoecimento, essa mesma cisão resulta num “cisma” da mente que pode ser muito profundo e que em tais níveis pode incorrer em esquizofrenia (1986, p. 63).

O personagem D’Annunzio parece oferecer-se como uma personificação, vivendo o seu falso self. Em seu período “romano”, ele tenta se aproximar de um ambiente que pudesse ecoar as “glórias” de sua origem perdida, pela desenfreada devassidão do pai in primis. Em Roma,

aparentava de fato pertencer ao mundo no qual desejava ter nascido e no qual conseguiu penetrar apenas como carreirista e alpinista social, destinado a tornar-se príncipe de Montevenoso, apenas na velhice e por decreto do rei Vítor Emanuel III. (Chiara, 1978, p. 42)

O modo mais “simples” que encontrou para se esgueirar na alta sociedade foi casar-se com a descendente de uma família situada no topo. “Havia conhecido Maria Hardouin di Gallese e planejava sua primeira grande aventura: casar-se com uma aristocrata e fazer com que toda Roma comentasse o grande acontecimento” (Chiara, 1978 p. 42).

Tornar sua linguagem grandiloquente e erudita num modo quase caricatural - “as odes apareciam uma após a outra nas páginas do Corriere, despertando grande interesse, apesar dos elementos arqueológicos repescados que apareciam, recheando seu conteúdo”.

D’Annunzio apropriava-se livremente de passagens do poema (1088 d.C.) Carmen in Victoriam Pisanorum, de autor desconhecido, do Liber Majolichinus, outro poema (1117-1125) anônimo, e da crônica (c. 1269) Breviarium Pisanae Historiae, o que tornava necessário, para a inelegibilidade de seus textos, um conjunto de notas (Chiara, 1978, p. 233). Isso tudo parece uma estratégia quase infantil para assumir uma estatura que não sente ser legítima. Assim como na morte de Carducci, na Canzone para a tumba de Giosuè Carducci, proclamava-se herdeiro de uma missão de “romanidade” e “italianidade” que o próprio Carducci jamais teria sonhado em confiar a ele (Chiara, 1978, p. 176). “A mentira não tanto para os outros, mas para si mesmo, tornou-se um hábito tão aderente em sua consciência, que culminou na impossibilidade de ser totalmente sincero, nem de retomar seu si mesmo livremente” (D’Annunzio, 1889, p. 53).

Vislumbres de autoconsciência transpiram em seus escritos, como poderemos evidenciar nas citações relatadas. São úteis, porém, apenas de um modo “estetizante”, ao final da escrita, sem ser passíveis de promover, na realidade, uma mudança ou crescimento nele.

O aparelho de sentir os sentimentos, como define Paulo Sandler (2022), é defeituoso de modo tão maciço, que a única solução é fiar-se em um total e igualmente maciço desligamento da realidade, por meio da eliminação de todo e qualquer aspecto ligado à autenticidade infantil, ao assumir um sentido de si grandioso e onipotente, e a inversão das emoções dolorosas em prazerosas, melhor dizendo, a perversão, e a prevalência da parte psicótica de sua personalidade de modo quase exclusivo.

O falso self, se diz em Winnicott, “tem como preocupação principal a busca de condições com intensão de permitir ao verdadeiro self vir à luz”, que, no caso de falência, ou melhor, na total perda de contato com o verdadeiro self, implicaria como única solução o suicídio, “como destruição do self total, cumprindo a tarefa de evitar o desaparecimento do verdadeiro self” (1965/1970, p. 181), parece-me que esta última condição é a de D’Annunzio, uma perda quase total de seu verdadeiro self, o naufrágio de sua pessoa, de sua vida, em um abismo de falsos sentimentos, de falsas paixões, de falsos valores. No “âmbito do negativo” (Sandler, 2011), na falta do amor pela vida que, perversamente, eleva a um ideal que malignamente, como um câncer, espalha-se não somente no interior de sua personalidade, mas recruta - assim como fez com inúmeras mulheres vazias de sentido - inumeráveis jovens a se “alistarem” aos seus delirantes devaneios “patrióticos” e destinados a partir em batalhas absurdas.

O d’annunzianismo representou um fenômeno que contribuiu para criar um clima estético/social que se estendeu do final do Oitocentos até a ascensão do fascismo. Os regimes nazifascistas e a guerra ajudaram a descartar o esteticismo decadente daqueles anos. Naturalmente não creio que se possa nem ao menos comparar, mesmo do ponto de vista literário, da história da cultura e do valor de profundidade da pesquisa pela verdade psicológica, a obra de D’Annunzio àquela de Proust, ou também àquela dos poetas “malditos” da França, nem ao tardio decadentismo italiano de Pascoli, Svevo e Pirandello, envolvidos em uma autêntica exploração do ânimo em crise, sobre a trilha do pensamento de Schopenhauer e Nietzsche, e depois pela psicanálise.

Num contexto social mais amplo, os sentimentos de angústia que levam a humanidade à diuturna empreitada de dar sentido à existência, suscitados de maneira continuada, levam também a “inverter” os laços que sustentam nossa experiência psíquica em sua relação com a realidade, em que amor e ódio e consciência são transmutados em seu contrário. Melhor dizendo, em falso amor, falso ódio e exaltação da mentira. A esse propósito, podemos nos recordar do slogan de Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, que dizia que uma mentira repetida inúmeras vezes torna-se verdade. Portanto, assume o valor de uma alucinação e a realização alucinatório-delirante do desejo, que, embora sejam formas absolutamente imateriais, podem concretizar-se: os campos de extermínio nazistas são um exemplo. A criação de uma “moda”, num nível menos destrutivo, representa exatamente essa concretização de um modelo que “garanta” a prevalência da mentira sobre a verdade, do princípio do prazer/desprazer sobre o princípio da realidade, nessa fuga do conhecimento que implica a necessidade de confrontar-se com o limite da realidade, com a necessidade de um renovar-se contínuo e jamais exaurido do trabalho de constituição do conhecer e de dar sentido, consequentemente, à existência.

Assumir modelos que têm um caráter claramente psicótico é “necessário” enquanto essas realizações tiverem uma função “estabilizante” - ao menos momentânea e ilusoriamente - para a subsistência do establishment social.

Um personagem como D’Annunzio representa nesse sentido a quintessência do quanto a falsidade pode prevalecer sobre a verdade, que o prazer prevalece sobre a realidade, que a onipotência é o instrumento que pode ser utilizado para a sobrevivência, que não é necessário ser, apenas parecer. Creio que nisso está a chave para tentar compreender o “sucesso” de D’Annunzio.

Sucesso que, como todas as modas, não sobreviveu a ele.

Referências

Chiara, P. (1978). Vita di Gabriele D’Annunzio. Mondadori. [ Links ]

D’Annunzio, G. (1889). Il piacere. Treves. [ Links ]

D’Annunzio, G. (1912). Merope - canti della guerra d’oltremare. Treves. [ Links ]

Raskovsky, A. (1974). Il figlicidio. Astrolabio. (Trabalho original publicado em 1973) [ Links ]

Sandler, P. C. (1990). Fatos. A tragédia do conhecimento em psicanálise. Imago. [ Links ]

Sandler, P. C. (2011). The clinical application of Bion’s concepts. Vol. 2: Analytic function and the function of the analyst. Karnac. [ Links ]

Sandler, P. C. (2022). Fatti. La psicoanalisi e la tragedia della conoscenza (L. Trabucco, Trad. e Ed.). Alpes. [ Links ]

Winnicott, D. W. (1970). La distorsione dell’Io in rapporto al vero ed al falso Sé. In D. W. Winnicott, Sviluppo affettivo e ambiente. Armando. (Trabalho original publicado em 1965) [ Links ]

Winnicott, D. W. (1986). Dal luogo delle origini. Cortina. [ Links ]

Tradução de Flavio Verdini

Revisão técnica de Anne Lise Di M. S. S. Scappaticci e Edoarda Anna G. Paron

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