É uma honra ter sido convidada para fazer a apresentação deste lindo número da revista Ide. Inspirado pela Odisseia, e pelo longo caminho percorrido por Ulisses no seu retorno à casa, este precioso volume evoca uma plêiade de associações, que não podemos abarcar completamente, e talvez aí esteja seu fascinante mistério.
Mas podemos escolher algumas delas (ou sermos escolhidos por elas?), enfatizando o rico e necessário intercurso entre a psicanálise e a cultura, a literatura e a mitologia, que nos oferecem poderosas ferramentas de trabalho no nosso eterno vir a ser analistas, especialmente no que diz respeito à possibilidade de simbolização.
Além disso, temos o percurso de Ulisses como um modelo possível da viagem psicanalítica que empreendemos nos divãs de nossos analistas, bem como a viagem que nossos pacientes empreendem em nossos divãs, em busca de nos aproximarmos de nossas verdades mais íntimas, que se transformam a cada dia, mas que também mantêm uma invariância ligada a algo muito profundo e primitivo de nós mesmos, como a cicatriz de Ulisses, que permite a ele ser reconhecido em sua volta.
Esse paralelo nos traz à mente a aventura de Ulisses por esses mares imensos e perigosos, mas ao mesmo tempo maravilhosos, que servem de boa metáfora para o mergulho no inconsciente, bem como sua ampliação pelo sonho e pela imaginação, que vivemos em nossas análises! Penso hoje que uma análise propicia não apenas a transcrição de elementos inconscientes em conscientes, mas sobretudo a transcriação de fantasias e crenças por meio do trabalho imaginativo e intuitivo da dupla analítica, em busca de aproximação e ampliação da realidade psíquica. Assim, o retorno a Ítaca, ou a nós mesmos, é um constante devir que pode ser pensado como uma travessia, em que, como dizia Rosa, o real se dispõe no percurso, com as dores e alegrias do viver, como vemos na saga de Ulisses, num “conhecendo” do presente insaturado, resgatado de um passado, e lançando-se ao futuro: nesse sentido, a vida e a formação analítica podem ser pensadas como uma odisseia!
Esse número da revista Ide contém trabalhos belíssimos e muito importantes para nossa reflexão sobre o mundo em que vivemos, respeitando a diversidade de vértices e a turbulência trazida pelo embate entre eles, que faz funcionar o pensamento e revitalizar a aventura do viver. Esse trabalho de Anne Lise, amparada por sua equipe e pelos autores, nos faz pensar num sonho que se realiza, tal como o sonho de Penélope em que uma águia enorme, de bico recurvo, mata todos os gansos que se alimentavam de trigo e lhe diz: “Isto não é sonho, e sim uma bem augurada visão do que vai se consumar”. Pensei que o sonho de Anne Lise e sua equipe passou pela porta de chifre polido, e isso faz com que, como nos lembra Homero, ele se converta em realidade, para quem o tem.
Passemos agora ao banquete que está programado para hoje, recordando a sugestão de João Cezar de Castro Rocha, que esteve entre nós no início do ano passado: em vez de, como na antropofagia, comermos uns aos outros, comamos em conjunto, saciando a fome de amor à verdade, à tolerância e ao respeito pela alteridade, que tanto mencionamos, mas pouco fazemos, como humanos que somos, pois o narcisismo e as áreas violentas e primitivas da mente estão sempre à espreita de uma oportunidade para se apresentar e nos tomar de assalto.