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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.75 São Paulo Jan./June 2023  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n75.15 

Lançamento Ide 44(74)

ODISSEIA MITOLOGIA, SIMBOLOGIA E PSICANÁLISE

Carmen C. Mion1 

Membro efetivo e analista didata e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Atual presidente da SBPSP. São Paulo

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo


É um imenso prazer estarmos aqui hoje para o lançamento presencial deste número da revista Ide, no início desse nosso novo biênio como Diretoria da Sociedade. A escolha do conceito da Odisseia como tema de inspiração para a revista Ide foi frutífera desde o primeiro número com a editoria de Anne Lise.

A Odisseia, de Homero, retrata a grande aventura da “volta para Ítaca” de Odisseu após a guerra de Troia, a volta para sua casa. Metaforicamente, refere-se à trajetória do homem em busca de si mesmo. Além de sua beleza poética e criativa, as narrativas históricas e míticas da Grécia e da Troia de Homero têm uma riqueza muito especial para nós, analistas, na abordagem que ele faz de seus personagens e suas lutas internas.

Mitologia e psicanálise

Desde seus primórdios com Freud, sabemos, a mitologia aparece como prima-irmã da psicanálise, assim como a arte; ou talvez fosse mais justo oferecer-lhe o posto de antecessora da psicanálise, a primeira narrativa a ter como finalidade a compreensão da alma humana, suas relações com o divino e entre os próprios homens. Uma primeira atribuição de sentido ao mundo, como propõe Mircea Eliade (1963). Precursora de nossas ciências, pois não se restringe ao homem apenas, mas aos céus, à terra, ao mar, aos animais, à natureza, enfim, que, da mesma forma, é compreendida através de suas relações com os homens e os deuses, a mitologia não obedece à lógica, nem à realidade externa, trata-se de uma verdade intuída. Os mitos são os precursores de nossas teorias, expressões da necessidade premente de o homem representar de maneira simbólica o universo que o cerca, tornando-se assim capaz de “apropriar-se” dele por meio de suas narrativas, de tornar conhecido o desconhecido, explicar o inexplicável. Uma necessidade também presente nas artes, como atestam as cerca de 600 pinturas rupestres pré-históricas espalhadas pelas paredes da Caverna de Lascaux na França (17000-15000 a.C.).

Não por acaso, Bion (1963), ao aprofundar-se na investigação sobre a natureza de um elemento psicanalítico, do objeto psicanalítico, incluiu, além das dimensões dos sentidos e da paixão, a dimensão do mito. Os objetos psicanalíticos, ou seja, as interpretações e associações livres, necessitam conter extensões nessas três dimensões. Bion aqui se refere não só aos mitos universais, que geralmente se tornaram clássicos pela sua universalidade, como a Odisseia ou o mito de Édipo, que ele examina profundamente nesse livro, mas também às nossas “mitologias pessoais”. Ele recorre ao conceito dos modelos que utilizamos na clínica, semelhantes aos mitos, que ele chamou componente “como se”, enquanto uma forma de aproximação à experiência que não seja tão abstrata quanto as teorias psicanalíticas. Geralmente essas mitologias adquirem uma característica “estrutural” na personalidade, na medida em que têm papel determinante no comportamento e, muitas vezes, no caráter do sujeito. Aproxima-se funcionalmente aos mitos originários de um povo, de uma nação, como determinantes inspiradores na construção da identidade das gerações futuras (Eliade, 1963). O mito pode ser configurado de diferentes maneiras, como uma notação ou memória de uma realização, como uma concepção ou mesmo uma pré-concepção em busca de realização. Geralmente pictóricas, essas configurações constituem o que seria uma contrapartida mais primitiva de nossas abstratas formulações científicas. A certa altura de seu texto, Bion (1963, p. 66) atribui aos mitos uma função vitalizadora, principalmente no que se refere à mente primitiva, pois constituem um arsenal de aprendizados possuindo papel importante na tentativa do aprendizado com base na experiência. Em situações ameaçadoras e persecutórias uma fragmentação da narrativa pode estar presente, e deparamos com fragmentos do que anteriormente constituiu uma narrativa mítica, seus elementos tornam-se dispersos, adquirindo ou outorgando outros sentidos ao mito.

Um mito universal

Tão impactante quanto o mito de Édipo, e suas numerosas vertentes de aproximação às principais questões e vicissitudes do desenvolvimento psíquico humano constituindo-se na pedra fundamental da psicanálise, o mito de Odisseu, ou Ulisses, em latim, relatado por Homero em versos eternamente reproduzidos, que certamente continuarão sendo lidos por gerações futuras. Ele resulta da fusão de vários dialetos gregos, criando quase uma língua própria, segundo alguns de seus estudiosos. Sempre achei fascinante o mistério em torno a Homero, assim como acontece em relação a Shakespeare, outro profundo conhecedor da alma humana: as dúvidas, incertezas sobre seu nome, idade ou mesmo origem, que nem se sabe se era grega, hipótese levantada com base em um dos significados de seu nome como “refém”, teria sido ele um prisioneiro? Contados e recontados ao longo dos séculos, inspiração de peças de teatro e de inúmeros filmes, os versos de Homero foram traduzidos universalmente, penso, porque reconhecidos como representação universal do humano, do que nos caracteriza. A ponto de o nome “Odisseia” tornar-se sinônimo de uma viagem atribulada e difícil, até seu objetivo final, mesmo por quem jamais leu o livro.

Embate razão vs emoção

Definido mais por sua inteligência, e por ser arguto e astuto, além de bom conselheiro, Odisseu é descrito também como um homem intenso, muitas vezes escravo das suas emoções e paixões, sendo “irado” uma outra versão das origens de seu nome. A história relatada por Homero abrange sua atribulada tentativa de “voltar para sua Ítaca”, expressão também utilizada popularmente como a busca das origens, o encontro consigo mesmo, seu lugar no mundo. Uma narrativa mítica profundamente relacionada à jornada heroica do ser humano, cindido entre a capacidade de pensar e as suas paixões primitivas. Como proposto por Anne Lise, uma metáfora para a própria jornada do processo psicanalítico. Protegido por Atena, a deusa da inteligência, da mente, da razão, Odisseu desafia Poseidon, o mar, as águas que representam em algumas mitologias o mundo manifesto, as paixões, que o jogam de um lado para o outro durante os 10 anos que durou sua jornada marítima em busca de si mesmo. A Odisseia pode ser compreendida como o percurso do ser humano aprendendo a desenvolver-se e a harmonizar seu mundo interno, sua própria mente, a busca da harmonia com o divino em si, no dizer de Homero, uma luta para que o homem se submeta ao divino, voltando à sua essência liberto da vaidade e do imperativo da satisfação dos instintos.

Assim como Bion desconstruiu o mito de Édipo, considerando as etapas de seu percurso através dos encontros com os diferentes personagens, como diferentes dimensões do psiquismo pré-edípico, podemos nos aproximar às diversas “paradas” ou etapas na volta de Odisseu, que, vistas isoladamente, podem aparecer como fragmentações do mito que se apresentam em diferentes dimensões de seu desdobrar-se. Todos os episódios e personagens passam a ser vistos dentro, não fora, de Odisseu, que em sua jornada rumo ao desenvolvimento teria de haver-se com suas paixões, onipotência, seus objetos internos, as diferentes dimensões do seu psiquismo, das mais primitivas às mais desenvolvidas. Teria que se tornar “Ninguém”, reconhecer seus limites e potências, como no episódio com o antropófago Polifemo, artifício utilizado por Odisseu para escapar da vingança dos inimigos, “livrar-se” dos elementos que o impediam de chegar a Itaca, até perder absolutamente tudo, e ser encontrado completamente nu. Uma viagem interior em direção à verdade de si, à humildade e ao tornar-se humano, em busca do si mesmo, da própria alma, que é considerada uma das representações de Penélope, segundo alguns estudiosos do mito.

Musas

Homero inicia a Odisseia (Assembleia dos Deuses, p. 1) invocando as musas em uma espécie de oração: “Ó Musa, fala-me do solerte varão que, depois de destruída a cidade sagrada de Troia, andou errante por muitas terras. ... devorou a carne do Deus Sol, que o jogou na escuridão, escureceu o dia a sua volta ... Ó divina Poesia, deusa filha de Zeus, conta-nos esses fatos, começando por qualquer um deles”.

Homero invoca a Musa Poesia para que mantenha viva para ele, e para toda a humanidade ao longo dos tempos, essa canção, a “história do homem, cujo coração sofria em agonia buscando voltar para casa com os seus homens ...”. Homero escreve sua história mítica numa linguagem poética e profunda, e faz um pedido à Musa: que ela permita a essa história viver para nós em seus múltiplos significados. Poder-se-ia dizer que ele escreve uma mensagem para o homem do futuro, uma mensagem que ecoe no futuro. Lindo resgate do pedido de Homero em oração à Musa realizado por Anne Lise e o corpo editorial da revista Ide, expandindo sua narrativa para o campo da literatura psicanalítica!

E não é essa também uma função da psicanálise? Identificar nossos mitos universais, pessoais e de nossos pacientes? Manter vivas essa e outras narrativas míticas, que nos permitem aproximarmos aos diferentes vértices ou dimensões psíquicas do que constitui o humano, para além do tempo, espaço e tecnologias? Talvez o sublime (o símbolo como vetor da sublime-ação) apontado por Homero como o divino no homem: sua busca/subversão do divino está contida na poesia, mitologia, música, literatura, linguagens essas sempre universais, não importa o idioma.

Neste número da revista Ide, Anne une mitologia e arte em sua proposta, Homero e Oswald de Andrade com seu “Manifesto Antropofágico: uma odisseia antropofágica”. O ritual celebrado pelos homens para se fortalecerem com as qualidades do inimigo morto concretamente. Os objetos externos devidamente devorados, triturados, incorporados, são agora parte de mim, um processo que todos conhecemos ao término da jornada psicanalítica em nossas próprias análises. Nascimento da possibilidade de ser e, portanto, da criatividade.

Após a invocação à Musa, e da assim chamada “Telemaquia”, os primeiros quatro capítulos da Odisseia, Homero converte o herói Odisseu em narrador de sua própria história a uma outra pessoa que o escuta, o rei Alcínoo, a quem ele havia sido levado pela princesa Nausícaa, filha do rei. Ela o havia encontrado na praia, após Poseidon ter lançado uma grande tempestade destruindo e fazendo naufragar seu barco de madeira. Ali nessa ilha em que aportara desnudo, coberto apenas por um véu em seu coração, Odisseu revela-se e rememora o que lhe aconteceu, desde a saída de Troia até a prisão, durante sete anos, em Ogígia, onde esteve sequestrado pela ninfa Calipso, seduzido pelo conforto e pela beleza, esquecido de Ítaca, até ser resgatado por Atena. Ouvimos que Odisseu conheceu muitas cidades e a índole de muitos homens, que ele enfrentou o desproporcional, o desmedido, o desumano, o caótico (Homero, 2007, Introdução).

A Odisseia apresenta-nos o rico mundo mítico dos sonhos e da imaginação, assustadores e reais, que se misturam à realidade da experiência cotidiana. Também por esse caminho a Odisseia propõe-se a desbravar o mundo interior. Circunstâncias diversificadas iluminam o herói como orador, cavalheiro, trapaceiro, guerreiro, pai, esposo, amante, estrangeiro, rei, líder. Seus obstáculos são agora de outra ordem em relação à Ilíada, e, para vencê-los, requer-se inteligência, além de destreza, coragem e força na luta íntima que se trava entre Poseidon e Atena, as terríveis forças que se opõem em sua alma. Odisseu termina vitorioso por apropriar-se de si, de quem é, e deixa uma impressão mais profunda nos leitores de Homero do que Aquiles. Muitos fatores contribuem para o sucesso de Odisseu. As múltiplas faces de Odisseu oferecem-nos a oportunidade de identificação em diferentes momentos de nossas trajetórias. Homero põe em cena a importância do memorial em que se fundem no tempo passado, presente e futuro, a narrativa construída pelo próprio Odisseu diante de um outro, o resgate de suas vitórias e fracassos, o apropriar-se de si mesmo, última etapa antes de chegar a Ítaca, agora disfarçado de mendigo. Qualquer semelhança com o processo psicanalítico não é mera coincidência.

Para inspirar os analistas, finalizo apresentando as diferentes etapas da jornada de Odisseu:

  1. A investida contra os Ciclopes, simplesmente porque no passado tinham sido aliados de seus inimigos. Reage defensivamente, alucinadamente, sem considerar a realidade presente. Ameaçado internamente, procurando culpados e destruindo o que encontra pela frente, perde seus homens.

  2. Lotófagos - seus homens devoram os Lótus, o que os leva à amnésia; esquecendo-se de si mesmos, os homens não querem mais seguir viagem, alienados numa vivência confortável, alucinada, a perda da própria identidade.

  3. Polifemo - deseja devorar Odisseu, na terra dos Ciclopes, criaturas de um olho só. Ao furar seu olho, Odisseu torna-se “Ninguém”, tem que anular-se para escapar. O orgulho e arrogância fazem-no gritar seu nome do mar. Salvo por Atena mais uma vez.

  4. Ilha de Éolo. Um saco proibido recheado de ventos, que o fazem perder o rumo quando seus homens abrem o saco acreditando que estava cheio de ouro. Ambição, cobiça e desatenção combinados.

  5. Ilha dos Lestrigões - antropófagos, não permitem que Odisseu aporte, quase afundam os navios; se pensarmos nas qualidades daquele que é devorado, certamente não admiravam Odisseu.

  6. Ilha de Circe - guloseimas que os transformam em bichos. Hermes deu-lhe uma poção que o protegia de tornar-se animal. Odisseu ficou um ano na ilha. Domesticação dos próprios bichos internos?

  7. Travessia do Estige, Odisseu desce ao Hades, encontra a mãe, que morreu de desgosto, e Agamenon, morto por Clitemnestra. Os dois iniciam novo embate no interior de Odisseu. Encontra Tirésias no Hades, que o avisa para não tocar no gado do rei Sol.

  8. Mar das sereias. Tampa os ouvidos dos marinheiros, mas se amarra ao mastro para não ceder ao canto das sereias, aquele que nos chama para a morte.

  9. Caribdes e Cila. Ilhas irmãs. Uma é um turbilhão que tudo envolve, a outra é um buraco que tudo suga.

  10. Ilha de Helius, rei Sol. Seus homens devoram o gado apesar dos avisos. Perde o restante de seus homens e é jogado para fora da ilha.

  11. Encontro com Nausícaa, desnudo, sozinho, apenas com um véu que recobre seu coração, “que fica protegido pela deusa”. Conta sua narrativa e é ouvido pelo rei Alcínoo.

  12. Finalmente, disfarçado de mendigo, têm início os estratagemas para a eliminação dos pretendentes de Penélope, com ajuda de Telêmaco, seu filho. Para tanto, precisa conter seus impulsos de ódio e vingança e usar sua capacidade de pensar para vencê-los. Um processo de autoconhecimento.

Referências

Bion, W. R. (1963). Elements of psychoanalysis. William Heinemann. [ Links ]

Eliade, M. (1963). Myth and reality. Harper & Row. [ Links ]

Homero (1944). Odisseia (Vol. 1, P. E. D. Palmeira & M. A. Correia, Trads. e Intr.). Sá da Costa. [ Links ]

Homero (2007). Odisseia, Regresso (D. Schüler, Trad., Intr. e Anál.). L&PM. [ Links ]

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