Time present and time past Are both perhaps present in time future And time future contained in time past. If all time is eternally present All time is unredeemable.
T. S. Eliot, “Burnt Norton”
Junho de 1942. Uma paineira é capturada pelo olhar de um fotógrafo numa certa manhã de outono. A fronde da centenária paineira, que se ergue na singela praça, no interior de São Paulo, parece desequilibrar o espaço urbano, simples e silencioso, criado em seu redor. Na imagem revelada observamos um muro extenso, paralelo à rua, alguns bancos vazios, construções da cidade que marcam a presença do homem e tornam-se diminutos, em contraste com aquela árvore. A galhada nua carrega cápsulas fechadas que escondem as sementes envoltas na fibra fina e sedosa da paina. Essa carga indicadora do ciclo da natureza, que se renova com força transformadora, evoca sua dialética elementar.
A paineira rosa, árvore nativa das florestas brasileiras e bolivianas do gênero Ceiba Speciosa, foi identificada e registrada como Chorisia speciosa pelo botânico, naturalista e viajante francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), em suas expedições pela América do Sul realizadas no século 19 (1816-1822). Popularmente conhecida, essa espécie tem outras denominações, tais como sumaúma, barriguda, paineira-fêmea.
Pela sensibilidade do fotógrafo, acostumado com a exuberância daquelas ramagens, a pequena abertura do diafragma, registra o instante. A escolha do objeto fixa um momento num final de outono. Época em que, despida de suas folhas digitalizadas, de suas flores rosadas, a paineira está plena de frutos carregados de sementes presas às fibras sedosas, prestes a serem disseminadas pelo vento. Nota-se que o enquadramento escolhido não é fortuito, ao contrário, privilegia um ângulo agudo que se abre para o centro da imagem e evidencia as sombras oblíquas da luz matutina. A imagem da árvore se ergue em todo o seu esplendor.
A fotografia retém uma conjunção de elementos sugestivos. Em seu solo nativo, por exemplo, essa paineira resiste e desafia o espaço urbano que a confinou, no perímetro da praça. A paisagem silenciosa, que a envolve captada pela lente do fotógrafo, sugere vestígios da temporalidade.
A apreensão do instante fotográfico evoca o que Julio Cortázar comparou à forma breve do conto. Para ele:
Fotógrafos da categoria de um Cartier-Bresson ou de um Brassaï definem sua arte como um aparente paradoxo: o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo, que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmara.
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numa fotografia ou num conto de grande qualidade se procede [inversamente ao cinema e ao romance], isto é, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento, que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.
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O tempo e o espaço do conto têm de estar como que condensados, submetidos a uma alta pressão espiritual e formal para provocar essa “abertura” a que me referia antes. (Cortázar, 1974, pp. 151-152)
O escritor argentino expande a sua reflexão ao dizer que esse homem (fotógrafo) “será um grande contista se sua escolha contiver - às vezes, sem que ele saiba conscientemente - essa fabulosa abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana” (Cortázar, 1974, p. 155). E enfatiza: “Todo conto perdurável é como uma semente onde dorme a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá seu nome em nossa memória” (Cortázar, 1974, p. 155).
Conseguir fixar um momento significa estabelecer um campo focal, latência e espera. E há, por certo, uma profunda reciprocidade entre o olhar e a experiência de ver que o artista adensa. Já para o observador da imagem, “essa árvore crescerá” em muitas direções. A imagem fotografada, ao trazer evocações e ressonâncias afetivas de um espaço e relato de um tempo, abre-se para um diálogo, do passado pela óptica do presente e do presente com o futuro.
O fotógrafo2 em questão era meu pai. A foto captada um mês antes do nascimento de sua primeira filha, está carregada de metáforas - do nome popular da árvore (barriguda) ao fruto que deverá nascer e desenvolver-se. Mas o campo de analogias, de contrastes, de vida e morte, é mais fértil e se expande em outras direções. Assim, a carga expressiva daquele instante fotográfico abarca outras tensões, considerando que o registro é também de um cidadão brasileiro humanista que se opunha ao regime de exceção do Estado Novo,3 ciente do momento histórico mundial, assolado pela apreensão dos infecundos tempos de guerra.4
Já não vive aquele que registrou o instante, não resta sequer a paineira. Mas a foto, como fruto da arte, sobreviveu.