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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.75 São Paulo Jan./June 2023  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n75.20 

Ateliê

DURANTE UMA VIAGEM A ROMA

Marisa Pelella Mélega1 

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo


Durante um voo São Paulo-Roma (2018), a passageira ao meu lado a um certo momento busca em sua bolsa e retira um livro… Criatividade poética e psicanálise.

Espantada com a coincidência e silenciosamente feliz por estar diante de um leitor que se interessa por um livro como esse! Não consigo esconder minha identidade, e por que deveria? Me apresento: sou eu a autora (Mélega, 2001).

Isso causa uma turbulência bem diversa das que acontecem em voos!!!

Ella me conta que iniciou a leitura dias antes e ficou curiosa acerca da escolha do poeta - “Por que Montale?” E aqui iniciamos uma conversação que durou quase o tempo do voo.

Eu respondo com outras perguntas: e por que estudar literatura? E por que poesia? E por que um poeta italiano? E por que criatividade?

Ella, olhando-me fixamente, como se pudesse ler as respostas em meu rosto, exclama: “Afinal, quem é você?”

Eu disse: posso lhe dar meus dados pessoais, mas francamente não vou conseguir responder a essa pergunta, pois nem sei ao certo quem eu sou.

Ella continua me olhando fixamente e...

Eu disse: talvez esta nossa conversa possa revelar algo de mim, caso você se interesse em continuar...

Após uma longa pausa, Ella, agora com o olhar distante e pensativa, diz:

“É, acho que pode ajudar a mim também...!”

Eu penso: poderá então trazer revelações para o escritor e para o leitor? O que será que Ella estaria buscando ao ler esse livro? E eu, como escritora, o que de fato quero contar? E será que consegui?

Uma releitura desse meu livro (coisa que muitos escritores não fazem após tê-lo terminado) poderia me trazer “novas coisas?”

Continuo pensando e me vejo em 1995, ano difícil, muitos desencontros... mas um encontro acabou acontecendo: Eu, a usp e a literatura italiana. Por que fez sentido, e acabou sendo esta a escolha? Buscando palavras para construir um caminho interrompido há tempos?

Dirigindo-me a Ella: aos 12 anos emigrei com os meus pais para o Brasil. Italiano é minha língua materna. E no silêncio que fizemos em seguida pensei novamente: por que essa escolha? Quem poderia me ajudar a contar uma história na qual “muitas coisas ainda não tinham um nome naquele tempo”? Um poeta, talvez, capaz de transformar “estados emocionais” em palavras. E um poeta italiano!!

Ella escuta interessada o que por fim lhe digo e, ao mesmo tempo, parece não compreender para onde estamos indo.

Disse-lhe então que, quando busquei literatura italiana e um poeta, eu não estava ciente do que acabei de lhe dizer, do porquê dessa escolha. Foi no impulso, pela necessidade de ir adiante... Acho que estou tentando me encontrar... Como quando é preciso ir andando para acompanhar ocorrências internas, na tentativa de retê-las.

Eu continuei: Montale, como qualquer poeta, escreve acerca da condição humana, de uma certa desarmonia que ele sente com a realidade externa, e tem uma escuta privilegiada das “vozes” que vêm de dentro de sua vida interior. Montale, como vários outros da filosofia e da psicanálise, entende a enorme dificuldade de que um diálogo lógico e racional possa refletir experiências vividas. Ele escreve que, se a vida é um incessante fluir de acontecimentos que se refletem por segundos no espelho de nossa consciência imediata, um fluxo de sentimentos, emoções, ideias que se sobrepõem, se misturam, se confundem..., como é possível a palavra enquadrar tais experiências?

Vou te mostrar esse seu poema..., eu digo e, pedindo licença, pego o livro de suas mãos e abro na página 43, em que lemos...

“Não nos peça a palavra que esquadre de cada lado/a alma nossa informe”,

Não nos perguntes a fórmula que mundos possa abrir-te,

sim alguma sílaba torta e seca como um ramo.

Somente isto hoje podemos dizer-te:

o que não somos, o que não desejamos.

Eu continuo: mas, apesar do quanto a palavra é pobre para expressar “momentos” que estão acontecendo e se vão, Montale consegue por meio de seus versos nos convidar a entrar em sintonia com suas “vivências” emocionais. Consegue, eu constato, deslocar sua experiência psíquica para um objeto que leve o leitor a uma experiência semelhante à dele.

Ella, me ouvindo atenta, vai abrindo o livro na página (p. 84) que mostra o seguinte poema:

Portami il girasole

Portami il girasole ch’io lo trapianti

nel mio terreno bruciato dal salino,

e mostri tutto il giorno agli azzurri specchianti

del cielo l’ansietà del suo volto giallino.

Tendono alla chiarità le cose oscure,

si esauriscono i corpi in un fluire

di tinte: queste in musiche. Svanire

è dunque la ventura delle venture.

Portami tu la pianta che conduce

dove sorgono bionde trasparenze

e vapora la vita quale essenza;

portami il girasole impazzito di luce.

Traga-me o girassol

Traga-me o girassol que eu o transplante

em meu terreno queimado de salgado,

e mostre o dia inteiro aos azuis espelhantes

do céu a ansiedade do seu rosto dourado.

Tendem à claridade as coisas obscuras,

se exaurem os corpos num fluir

de tintas: estas em músicas. Esvanecer

é portanto a ventura das venturas.

Traga-me tu a planta que conduz

onde surgem loiras transparências

e exala a vida qual essência;

traga-me o girassol enlouquecido de luz.

Mas, então, lhe digo, você já procurou ler os poemas ao folhar o livro! Isto me fala a favor de sua busca, por meio da poesia...”

“Sim”, Ella responde, me interrompendo, “a busca é para compreender a origem da criatividade. E eu sou psicóloga de formação.”

Puxa, que encontro!, digo eu, e você já pensou acerca da inspiração poética?

Ella, de novo com o olhar ao longe, diz: “É difícil materializar essa tal de Musa...”

Eu digo: pois, então, Montale vem em nossa ajuda; escute só o que ele fala durante uma conferência, La solitudine dell’artista, que deu em 1952. Ali ele afirma que o homem se comunica através do Eu transcendental - uma lâmpada iluminando brevemente um estreito percurso diante de nós, uma luz que nos leva a uma condição além de nós mesmos, além da experiência artística. Afirma ainda que o Eu individual é efêmero, e querer torná-lo fenomênico para que se comunique é contrário à condição humana. Então, o Eu transcendental, para Montale, é a instância que cria.

Continuei: agora veja você como essa concepção dele aproxima-se daquela da psicanálise atual, segundo Bion e Meltzer.

E me refiro brevemente à nova Teoria da Criatividade (Meltzer, 1993/2019). Além da consciência, são os objetos internos que criam; e, para Montale, seria o Eu transcendental que cria, e não o Ego (o Eu individual do poeta).

“Mas, então”, Ella pergunta, “você está lendo o poeta e os poemas à luz da ‘psicanálise atual’? É isso?”

Pois, então, eu respondo, como posso deixar de lado o instrumento que aprendi a usar com minha formação analítica para “ler” os movimentos emocionais em nós, nas interações, na produção poética etc.!?

Ella diz: “Mas assim você estaria fazendo uma leitura crítica?”

Eu digo: não! Estou fazendo uma leitura dos movimentos emocionais com base nos versos do poeta. Estes me levam também a pensar na pessoa do poeta, no porquê dessas escolhas dele, e em como ele transforma emoções, configurações emocionais em palavras-versos!”

Ella diz: “Ah! Mas isso que você está me dizendo não fica muito claro durante a leitura do seu livro”.

Eu digo: pois é! É o que estou constatando!!

Ella diz: “E você, como autora, não aparece com suas intenções, suas buscas a seu respeito”.

Eu digo: sim, mas esse fato acontece com muita frequência nos autores. Até nos grandes! Por exemplo: por que será que Dostoievski escreveu Crime e castigo ou Os irmãos Karamazov? A leitura crítica da obra chega a formular a necessidade pessoal do autor, mesmo conhecendo sua biografia? O porquê? Como ele transformou suas vivências emocionais numa narrativa entre seus objetos internos?

Porque a criatividade “surge” pelo “diálogo” entre os objetos internos do autor. Ele escuta suas vozes interiores e as acolhe, e tenta dar-lhes um formato para ser comunicado.

A obra dele fala de seus tormentos, sem ser necessário referir-se à biografia, pois esta só conta os acontecimentos externos do autor, e não exatamente como ele os viveu!!

Se nos detivermos na série de poemas Mediterrâneo, veremos queparecem diálogos entre o adolescente poeta e o mar-pai.

Potessi almeno costringere

Potessi almeno costringere

in questo mio ritmo stento

qualche poco del tuo vaneggiamento;

dato mi fosse accordare

alle tue voci il mio balbo parlare: que deu em 1952-

io che sognava rapirti

le salmastre parole

in cui natura ed arte si confondono,

per gridar meglio la mia malinconia

di fanciullo invecchiato che non doveva pensare...

Pudesse ao menos fixar

Pudesse ao menos fixar

nesse meu ritmo custoso

um pouco de teu desvario;

fosse-me dado afinar

às tuas vozes meu balbucio:

eu que sonhava roubar-te

as salobras palavras

em que natureza e arte se confundem,

para gritar melhor minha melancolia

de menino velho que não devia pensar...

Antes vale a pena lembrar que, para pensar, Montale precisa ver, a imagem vem antes de tudo e constitui sua matriz da ideia. Ele dá significados por meio de imagens. A leitura de seus versos a mim sugere que Montale busca expressar a “essência das coisas”, o que está além dos olhos, dos ouvidos, do sensório, enfim, e do quotidiano. E que eu entendo estar na realidade psíquica e por vislumbres pode ser agarrada e expressa em linguagem verbal, mesmo sabendo de suas limitações.

A súbita iluminação, a inspiração, a transfiguração, que têm sido consideradas por tanto tempo marcas da criação poética, seriam, para mim, o momento do nascimento do estado de mente poético.

A VIAGEM TERMINOU AQUI.

Referências

Mélega, M. P. (2001). Eugenio Montale, criatividade poética e psicanálise. Ateliê. [ Links ]

Meltzer, D. (2019). Criatividade e a contratransferência. In M. H. Williams, O vale da feitura da alma (p. 293). Blucher. (Trabalho original publicado em 1993) [ Links ]

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