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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.75 São Paulo Jan./June 2023  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n75.24 

70 anos SBPSP

FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS, RAÍZES CLÍNICAS E POÉTICAS DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO1

Maria Cecília Andreucci Pereira Gomes2 

Professora, supervisora e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo

2Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo


Fragmentos da minha história: “do meu olhar infantil” no início dos inícios da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo ao meu olhar atual como professora, supervisora e analista didata

Esta é uma história singular, pois sou filha de Judith Andreucci que, juntamente com Virgínia Leone Bicudo e Lygia Alcântara do Amaral, três mulheres vanguardistas, trabalharam com Durval Marcondes na fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Para enfatizar a origem das raízes clínicas e poéticas da SBPSP, apresento fragmentos da minha história infantil na relação com o início dos inícios da Sociedade.

Hoje tenho uma filha analista Raquel Andreucci Pereira Gomes, membro associado. No decorrer do trabalho desenvolvo a importância da formação das raízes sólidas de um analista na SBPSP, a ligação profunda entre a análise pessoal do analista e sua prática clínica. E como desenvolvimento psíquico envolve criatividade, psicanálise e arte são as duas faces de uma mesma moeda.

Iniciei minha formação em 1976, tornei-me membro associado em 1982 e efetivo em 1985, analista didata em 1990. Analisei, como analista didata, vários analistas, muitos do interior de São Paulo e outros da capital. Supervisionei outros tantos, alguns dos quais hoje são membros efetivos e tenho a satisfação de ter analisado e formado dois conceituados analistas didatas atuais. Sou entusiasta em desenvolver nos analisandos em formação, como supervisionados e alunos, a condição de serem livres pensadores, com identidade própria, sensíveis à dor humana, capazes de contê-la e transformá-la através da sua capacidade de reverie, porém, sempre me atenho à técnica psicanalítica. Penso ser importante que nossos analistas em formação sejam independentes de escolas psicanalíticas, do aprisionamento a teorias quando vivenciadas como dogmas. Só assim desenvolverão sua criatividade. Minha contribuição terá essencialmente como foco analistas brasileiros da SBPSP, em uma homenagem a eles, principalmente a nossos pioneiros, os quais considero personalidades excepcionais e que tocam a minha sensibilidade.

A psicanálise e a SBPSP estiveram entrelaçadas à minha vida praticamente desde os 4 anos de idade, no início da década de 1950, quando muitas vezes acompanhava minha mãe Judith ao Serviço de Higiene Mental. Encontrava Lygia, Virginia e Durval.

Flutuando em minha memória/sonho, na apreensão do meu olhar infantil, lembro-me de meu fascínio pelo personagem “Durval”, que falava com desenvoltura coisas que eu considerava importantes, mas que não entendia bem, assim como sobre problemas relacionados a algum paciente, ou à palavra “psicanálise”. Para mim, Durval parecia um gigante, apesar de sua baixa estatura. E no decorrer de sua vida ele realmente o foi. Tinha um carisma particular quando se exprimia. Outro fascínio era por Virginia, porte ereto, moderna, independente. Parecia-me estar sempre olhando firmemente o horizonte. Já o meu olhar sobre minha mãe, naquela época, era distinto: tradicional, sensível, corajosa e muito culta. Eu a admirava e me sentia amada por ela. Observava Lygia, calma, ponderada, como também as crianças e adolescentes com fisionomia triste, com suas mães, na sala de espera. Eu ficava em uma salinha ao lado, por ordem dos adultos, “brincando”, mas, na verdade, curiosa e antenada com o que se passava fora, na sala de espera. Para mim, tudo aquilo era mistério, e a atração pelo mistério faz parte do meu ser.

Acredito que o entrelaçamento da minha vida com a Sociedade determinou, inconscientemente, a estrada que seguiria nos anos subsequentes, nesse eterno vir a ser um analista.

Certo dia, já formada, em um evento, fui apresentada a um homem franzino, de óculos, dr. Laertes de Moura Ferrão. Olhei-o e senti: ele será meu analista se fizer a Sociedade. E realmente o foi.

Laertes de Moura Ferrão abriu minha percepção de meu mundo interior e exterior, abriu o encontro comigo mesma. É vivo em minha memória, e, como dizia Enrique Pichon-Rivière, quando se termina uma análise com um analista, se for realmente uma análise, ela nunca termina; permanece em nosso mundo interno, em um eterno diálogo.

Ao lembrar-me da minha formação, surge imediatamente Gecel Sterling, meu primeiro supervisor. Gecel era de uma experiência clínica única, ao supervisionar meu trabalho com psicóticos. Outra memória é a sensibilidade de Orestes Forlenza, meu segundo supervisor. Introduziu-me na leitura de Winnicott. E, se der asas a minhas associações, vão surgindo várias lembranças que me emocionam, como os seminários de Isaías Melsohn sobre simbolização. Certo dia em um seminário em sua casa, disse ao grupo: “Olhem para esta mesa de madeira antiga, o que vocês veem? Passem as mãos nela”. Alguns diziam: “Esta mesa é uma mesa de jacarandá antiga”. Outros diziam: “É uma mesa de madeira antiga”. Outros, porém, diziam: “É uma mesa de madeira, jacarandá, talvez mineira, talvez final do século 18, tem marcas, pode ter sido de uma fazenda…” E brotavam torrentes de associações. Isaías ensinava assim, olhar além da linha do horizonte, em uma perspectiva fenomenológica, estimulando nossa capacidade de imaginar, simbolizar.

Já como didatas, continuamos nossa formação através de grupos de colegas queridos: dez anos de filosofia, uma longa volta a Freud, um estudo de Green ou Bion, e mais tarde Ogden. Considero que a formação psicanalítica é assim, nunca termina, um constante e eterno vir a ser, na infinitude ainda desconhecida do inconsciente humano.

Fragmentos de memórias e raízes clínicas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo: suas origens científicas e poéticas

Não sou um homem da ciência, não sou um observador, não sou um experimentador, e não sou um pensador. Nada sou senão um conquistador por temperamento, um aventureiro, se quisesse traduzir a palavra com a curiosidade, a rudeza e a tenacidade que compõe esta espécie de ser. (Sigmund Freud)

Esses breves relatos, como se fossem várias histórias sobre a SBPSP, desde suas origens, histórias que li, assim como histórias que vivi e vivo, desde menina. Tive o privilégio de conhecer nossos ancestrais, pais psicanalíticos, os que sonharam, se aventuraram, lutaram e realizaram seus sonhos: a fundação da nossa Sociedade. A escolha dessa epígrafe de Freud é condizente com a personalidade deles, seu caráter, tenacidade, capacidade e criatividade.

Centrarei, portanto, meu relato em nossos pioneiros brasileiros, privilegiando o vértice poético de Durval Marcondes, introdutor da psicanálise no Brasil, citações de Virginia Bicudo e Lygia Amaral, como características de suas personalidades, e Judith Andreucci nos vértices clínico e poético. Quatro sólidos alicerces na edificação e crescimento da nossa Sociedade.

Durval Bellegarde Marcondes (1899-1981)

O início dos inícios da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

O berço da nossa Sociedade foi o Serviço de Higiene Mental, fundado por Durval Marcondes em 1924, ligado à Secretaria da Educação, no qual um grupo de educadoras sanitárias atendia crianças e adolescentes que sofriam. Portanto, foi ligado à clínica e à dor mental desde o início.

Assim como o berço da nossa Sociedade foi a mente de Durval, jovem e brilhante médico brasileiro, estimulado por Franco da Rocha, seu mestre, professor de Neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo e fundador do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, modelo no Brasil e no mundo naquela época.

Durval nasceu em 27/11/1899, no penúltimo mês do século 19, e deu seus primeiros passos no início do século 20. Esse século foi marcado por uma descentralização do homem racional e da primazia da razão. Na escuridão do desconhecido do psiquismo do homem, Sigmund Freud lança uma luz: a descoberta do inconsciente, infinito, basicamente incognoscível, depositário dos impulsos sexuais e agressivos, como também da criatividade humana.

E onde se revela este inconsciente? - pergunta a medicina psiquiátrica e neurológica da época, curiosa e estarrecida, em ferrenha oposição. Ele se revela, diz a psicanálise, na linguagem dos poetas e artistas, na linguagem dos sonhos, dos atos falhos, das associações livres, dos delírios, dos sintomas, ou da loucura humana.

Freud, naquela época, apesar de assinalar sempre o desconhecido na investigação psicanalítica, o mistério do sonhar e da linguagem onírica e seu uso de símbolos, sofria uma oposição tenaz da medicina psiquiátrica e neurológica contra suas ideias e método terapêutico. No Brasil, em São Paulo, dois homens, Franco da Rocha e Durval Marcondes, propagam as ideias de Freud sobre o sonho, o delírio, a escrita literária e sofrem também implacável perseguição. Durval e Franco da Rocha eram homens criativos e investigadores, também amantes das artes, relacionando-se com vários artistas e críticos literários da época. Conscientizaram-se rapidamente de que a ciência médica, acadêmica e organicista, era limitada. Para apreender a alma humana, a comunicação verbal e não verbal do incognoscível inconsciente, era preciso intuir que ele se manifestava em uma unidade sintônica com a arte. O jovem Durval Marcondes era apaixonado também por pintura, música e literatura. Participou da Semana de Arte Moderna em 1922. Ele era tão próximo dos poetas e escritores, que publicou um poema modernista de sua autoria, “Sinfonia em branco e preto”, na revista Klaxon. Durval tinha apenas 22 anos.

Em 1927, aos 28 anos, fundou a Sociedade Brasileira de Psicanálise, constituída de médicos, artistas e intelectuais. Correspondendo-se com Freud desde 1926, comunica a ele sua fundação, lutando para que esta Sociedade fosse reconhecida. Em 1928 publica a primeira Revista Brasileira de Psycanalysis. E envia um exemplar a Freud. O grupo de Durval foi dissolvido em 1930, mas foi ele o introdutor da psicanálise no Brasil. Muito já foi escrito sobre Durval Marcondes, sua longa e brilhante trajetória de vida como psiquiatra, psicanalista, professor, desbravador. Como também sobre sua firmeza e seu caráter. Destaco somente pequenos fragmentos da sua história sobre o vértice científico, optando por focalizar sua capacidade criativa e poética.

Na mesma época a International Psychoanalytical Association (IPA), fundada por Freud em 1910, exige critérios que existem até hoje, para a formação analítica, como análise didática, supervisões e ensino teórico. Foi necessário importar dois analistas didatas, reconhecidos pela ipa, para a formação de analistas brasileiros. Recebemos, em 1937, Adelheid Koch para exercer função didática como a primeira analista didática no Brasil. Mais tarde, na década de 1950, veio Theon Spanudis.

O grupo de São Paulo cresceu rapidamente e se expandiu. Era um grupo rico, livre, criativo, pluralista, formado por médicos e não médicos, amantes da arte e da literatura. Virginia (educadora, socióloga), Lygia (professora, educadora) e Judith (educadora, filósofa, psicóloga, poetisa) já trabalhavam havia anos com Durval, no berço onde nasceu nossa Sociedade, isto é, no Serviço de Higiene Mental.

Em 1919, no artigo “O estranho”, Freud se diz impelido a pesquisar o tema da estética, ainda que se entenda por estética não simplesmente a teoria do belo, mas a teoria da qualidade do sentir. Para objetivar a criatividade da história de nosso grupo pioneiro, cito a poesia de Durval Marcondes “Sinfonia em branco e preto”, publicada em 1922, quando ele tinha 22 anos, na revista Klaxon. Ao lê-la, fui tomada por um estranho sentimento de tristeza. Era como se esse brilhante e dinâmico jovem médico expressasse naquele momento um profundo sentimento de solidão.

Symphonia em branco e preto

A minha vida era um quadro negro,

Negro e triste. Sem mais nada.

Um dia ella chegou, pegou o giz e escreveu o seu nome no quadro negro.

Eu achei lindo o nome della, assim tão branco sobre o preto.

Mas depois elle me fez mal: doíam na minha vista aquellas letras, brancas demais,

brilhando daquelle modo no quadro negro.

Tive medo de ficar cégo.

Peguei a esponja e apaguei o nome della do quadro negro.

Mas, continuando a olhar, eu via o nome della

alvejando ainda mais no quadro negro.

Quadro negro + letras brancas + quadro negro + letras brancas

+ tontura + 50 x letras brancas.

Tive vontade de insultá-lo.

Mas não tive coragem.

Já que era assim, peguei o giz e, descabellado, rabisquei, eu mesmo, com letras bem

grandes, o nome della no quadro negro.

E o nome della, que apparecia então enorme, enchia todo o quadro negro.

E deixei.

Hoje eu me lembrei de vêl-o.

Espreguicei-me. Bocejei. Fui vêl-o.

Apagara-se: não o vi mais no quadro negro.

A minha vida é um quadro negro.

Negro e triste. Sem mais nada.

(Durval Marcondes)

Fragmentos da história das três pioneiras da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Virginia Leone Bicudo (1910-2003)

Onde era Id, torna-se Ego. Onde era Sertão, torna-se Brasília.

(Durval Marcondes, 1970)

Achei extraordinária a resposta de Virginia Bicudo quando Tereza Haudenschild propôs entrevistá-la para um evento sobre Freud: Conflito e Cultura, em 2000. Virginia respondeu: “Falar do que fiz, para quê? Estou interessada no presente, no que ando fazendo agora. Não sei se vou lembrar do que fiz, está nos livros…”. Nessa época, Virginia estava com 90 anos.

Tereza a descreve como uma personalidade inteira de uma firmeza e caráter a toda prova. Se lhe perguntassem a idade, Virginia sempre dizia: “Sou do tempo em que é falta de educação fazer essa pergunta”. Era curiosa, determinada e alegre. Gostava de pessoas e de cachorros, escreveu a entrevistadora.

Filha de um descendente de escravo alforriado e de uma imigrante italiana, buscava na ciência defesas para lidar com o racismo. Essa luta a transformou em uma das figuras mais significativas na implantação do desenvolvimento da psicanálise no Brasil. Virginia chegou à psicanálise através da sociologia.

Eu me interessei muito cedo pelo lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que eu fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psiquismo, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status sociais. E, na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. … Eu fui para a Escola de Sociologia, porque eu tinha sofrimento, tinha dor, e eu queria saber o que me causava tanto sofrimento. (Haudenschild, 2000)

Em 1955 Virginia vai a Londres. Conhece renomados analistas, entre eles, Bion. Tornam-se amigos, e colabora com Frank Philips trazendo Bion para o Brasil.

Lembro-me de quando ela nos contou o momento em que Bion apresentou seu livro Transformações na sociedade londrina. Foi extremamente criticado. Virginia, no final do encontro, ousada como era, pede a Bion o livro emprestado por uma noite. Copia-o integralmente e o traz para o Brasil, curiosa e impactada com a abordagem do autor.

A grande contribuição de Virginia foi quando propôs, pela primeira vez, em São Paulo uma psicanálise aplicada aos problemas da criança, embrião do que temos hoje na Sociedade: a “Formação de analistas de crianças e adolescentes”. Outra contribuição foi sua participação na divulgação do relançamento da Revista Brasileira de Psicanálise, dando continuidade, tantos anos depois, ao sonho de Durval, no início dos inícios, quando enviou a primeira Revista Brasileira de Psicanálise a Freud (1928).

Em 1970, Virginia se aventura e vai para o sertão de Goiás, para Brasília, o coração do Brasil. Com seu espírito desbravador, semelhante ao de Juscelino Kubitschek, organiza um grupo de estudos em Brasília, formado por cinco analistas, que se tornaria a primeira turma da Sociedade de Psicanálise de Brasília. Ela, como todas as pioneiras, fez sua análise didática com Adelheid Koch (1937).

Quando retornou de Londres (1959), contou-nos sobre a política da sociedade londrina, a luta entre os grupos freudianos e kleinianos, constituindo conflitos, que no fundo são arcaicos, tribais.

Lygia Alcântara do Amaral (1911-2003)

A psicanálise pode usar a obra de arte para melhor compreender a mente. Ideia essa defendida por Freud, inúmeras vezes.3

(Adelheid Koch)

Lygia Alcântara do Amaral tem suas raízes na terra. Filha de fazendeiros, viveu o encanto e a liberdade das crianças que crescem junto à natureza. Formouse como professora em Presidente Prudente (1929). Veio para São Paulo, indo para o Serviço de Higiene, onde conheceu Durval Marcondes e a psicanálise. Como Virginia, é analisada por Adelheid Koch e vai a Londres se aperfeiçoar, após sua formação como psicanalista.

Ela participou até o final de seus dias, de modo ativo, entusiasta e criativo, em congressos nacionais e internacionais, principalmente com trabalhos sobre pacientes regressivos, adolescentes, crianças, e sobre a relação mãe-bebê.

Em 1979, no Curso de Formação de Analistas de Crianças, fundado por Virginia Bicudo em parceria com Lygia, inicia o curso da Relação Mãe-Bebê, que hoje é um dos cursos mais interessantes da SBPSP.

Tereza Haudenschild também entrevistou Lygia e uma das frases que destaco nessa entrevista é a resposta da Lygia: “Eu não era kleiniana, não era annafreudiana. Eu era aquela que estava interessada nessa amplitude, nessa grandeza do espírito humano” (Haudenschield, 2000).

Judith Seixas Teixeira de Carvalho Andreucci (1913-2001) e a clínica psicanalítica

Judith Andreucci era uma lua no mundo da psicanálise; mas ela mergulhou no horizonte; não podemos mais ver sua luz. (Alves, 2013, pp. 205-207)

Judith era uma personalidade singular. Foi uma grande psicanalista clínica, aberta ao conhecimento, com um espírito investigativo, não se aprisionando a “dogmas” ou teorias psicanalíticas. Possuía uma intuição aguçada, uma condição de reverie privilegiada, que lhe permitia representar e simbolizar algo do mistério e da dor da mente humana em seu trabalho clínico. Era filha e neta de fazendeiros, exercendo também essa atividade até o fim de sua vida. Seu pai era primo de Vicente de Carvalho, poeta brasileiro. Herdou em sua genética tanto a sensibilidade e a linguagem poética, como a coragem e a ousadia dos pioneiros bandeirantes.

Essas experiências vividas enriqueceram sua personalidade, sua capacidade de reverie na criação de modelos, ao transmitir ao seu paciente verdades dolorosas (através de uma “linguagem de achievement”).4 Alcançava o íntimo do ser humano, vivia com seu paciente experiências emocionais profundas, porém, respeitando sempre o limiar da dor de cada paciente. Observa-se isso em suas publicações científicas. Judith já praticava em sua clínica, desde a década de 1970 até sua morte, a dita “psicanálise contemporânea”. Como Durval Marcondes, escrevia poesias, e uma coletânea, ainda não publicada, foi organizada por seus filhos e marido. Surpreendi-me ao reler, enquanto escrevo este relato, um trabalho com uma paciente psicótica, uma mulher recém-saída de internação, o qual ela levou para uma supervisão com Bion, quando ele esteve em São Paulo: “Considerações sobre a análise de uma personalidade psicótica”, publicado em 1976 na Revista Brasileira de Psicanálise (v. 10, n. 2, pp. 297-312), e republicado em 2016 também na Revista Brasileira de Psicanálise (v. 50, n. 1, pp. 119-133).

Judith, como Virginia e Lygia, chegou à psicanálise vinda de áreas não médicas, mas fez um percurso diferente: cursou a Faculdade de Higiene e a Faculdade de Filosofia na USP, com especialização em Psicologia. Trabalhou com Durval, Lygia e Virginia durante muitos anos no Serviço de Higiene Mental. Como seus antecessores, sua analista didata foi Adelheid Koch. Fez outra experiência analítica com Frank Philips, como muitos de seus contemporâneos. Participou de inúmeros congressos nacionais e internacionais e contribuiu muito com a “Instituição”. Citarei trechos da entrevista publicada na Ide, 12 (Lima, Pedreira & Sandler, 1986), e republicada no Jornal de Psicanálise em 2013.

Ide - A sra. poderia nos dar uma visão retrospectiva da sua experiência como didata? Se possível, nos dizer o que acha que deveria ser reformulado ou preservado?

Profa. Judith - Penso que a minha experiência como didata está ligada à experiência como analista e como ser humano. As raízes perdem-se no acervo de conhecimentos que venho adquirindo, através da própria vida. Existem invariáveis, características singulares que marcam cada ser humano como único no tempo e no espaço, e infinitas variáveis que tornam difícil apresentar uma visão retrospectiva em relação a uma experiência que está sempre se renovando, num fluir constante. Nenhum homem, disse, um dia, o velho Heráclito, consegue tomar duas vezes banho no mesmo rio, porque o rio e o homem mudam a cada momento.

Ide - A sra. se intitularia, ainda hoje, uma “kleiniana”? Por quê? Seria possível nos explicar suas vinculações teóricas?

Profa. Judith - É difícil responder a uma pergunta que não encontra eco em mim, pois jamais fui “freudiana, kleiniana, bioniana, winnicottiana, lacaniana, kohutiana” e outras. Fui e sou apenas a analista que se nutre de todas as fontes ricas de húmus psicanalítico, selecionando, em cada uma, aquilo que mais e melhor se adapta à minha forma particular de ser. É contra o meu feitio enquadrar-me em rótulos ou modelos, que, a meu ver, limitam o pensamento e o dogmatizam, por mais ricas e geniais que sejam as mentes que o produzam.

Fui e continuo sendo soldado sem general. As vinculações teóricas, usando uma metáfora, representam, para mim, o galho da árvore em que a lagarta se apoia para formar o seu casulo e daí, transformada em borboleta, voar pela amplidão em busca de novos horizontes, símbolos de novas ideias, de aberturas desconhecidas.

Ide - No seu modo de ver, quais são as principais insatisfações dos candidatos?

Apontaria soluções?

Profa. Judith - As insatisfações dos candidatos, a meu ver, não diferem das insatisfações dos analistas e dos seres humanos em geral. Aliás, é a insatisfação do homem que o leva a desenvolver o pensamento em busca de um estado mais satisfatório para seu progresso e crescimento.

Eu não tenho soluções para a insatisfação humana e, penso que, até hoje, ninguém a conseguiu.

Ide - O que a sra. acha da participação dos candidatos na política da instituição e nas comissões?

Profa. Judith - Acho que faz parte de um direito que lhes assiste, como candidatos, pertencentes à instituição. Sua participação não só é útil, mas revigorante, como a participação dos jovens em todas as sociedades.

Ide - A sra. teria alguma definição para psicanálise?

Profa. Judith - Eu li muitas, ouvi, meditei, e não me satisfizeram, pois as definições cerceiam e não abrangem os desconhecidos, que não alcançam. Lembro que Bion usou o termo “função”, por considerá-la um continente vastíssimo… E a psicanálise não seria um continente ilimitado para um conteúdo ilimitado no seu desconhecimento que é o mundo mental e emocional do homem?

Ide - A sra. poderia explicar as modificações pelas quais passou a prática psicanalítica - a sua prática -, desde que iniciou seu trabalho?

Profa. Judith - Colocaria as modificações da minha prática analítica na razão direta do alargamento da minha visão interior e do mundo que me tornou mais livre, mais eu mesma, para aproximar-me da realidade interna de meu analisando e criar a forma mais adequada para transmiti-la.

Ide - Essas modificações foram importantes do ponto de vista teórico?

Profa. Judith - Claro que sim, pois creio que um posicionamento mais livre facilita maior criatividade e permite ao analista mergulhar de modo mais profundo na mente, no mundo emocional de seu paciente, trazendo, como o escafandrista, do fundo dos mares, surpresas estranhas em suas pesquisas. Essas descobertas podem confirmar teorias existentes, suscitar dúvidas, aberturas, ideias novas e enriquecedoras.

Ide - Soubemos que a sra. é poetisa, apesar do sigilo e recato da sua conduta. Alguns de nós já viram a sua poesia, e não nos referimos à sessão de análise… Poderia nos reproduzir alguma?

Profa. Judith - Acho o título de poetisa demasiado para mim. Eu, apenas canto com palavras, para minhas filhas e netos que me pedem lhes deixe, um dia, os meus cantares. Estes são transformações de vivências que se estendem através da minha vida. Satisfazendo ao pedido, para falar de alguma poesia, vou tentar reproduzir algo acontecido em certa noite de sertão, que sucedeu a uma tarde cismarenta em que eu lia Shakespeare, parecendo-me escutar as vozes das feiticeiras de Macbeth. Algo tão profundo, que, de súbito, me fez unir os tempos, o homem primitivo e o civilizado, nas suas grandezas e misérias, mistérios e pavores, beleza e monstruosidades…

Mãe terra

Da praça nua de gente,

De árvores, cheia de lua,

Vem ela, a mulher da terra

Rompendo a quietude crua…

Surge da noite macia,

Irrompe da selva escura,

Vultos a seguem nas sombras

Em vagas iluminuras…

Súbito, sua voz ressoa

No silêncio e no luar

E conta histórias de amores

De ódio e sangue a jorrar

Fala de espíritos que vagam,

De monstros que habitam os montes,

Canta os milagres dos santos,

Achados por retirantes.

Imita o grito dos pássaros

Que sentem o “estranho” passar

E os arrepios das matas

Sinistros, a cochichar…

Tomadas pelo feitiço

Da voz profunda, velada,

Os vultos escutam as lendas

Daquela terra abrasada.

E a mulher, sussurrante,

Revela a voz da “boiuna”,

“Embandeirando” no rio,

Em cachoeiras soturnas…

O “cachear” da “boiuna”

Pelos espaços se espraia,

E gente treme de medo,

Com os lamentos do Araguaia

Povo que sofre e que mata,

Gente que ama e odeia,

Povo que morre nas secas,

Gente que afunda nas cheias…

Uma voz, meio abafada,

A interrompe enfeitiçada,

Pergunta a mulher tremendo:

Mãe! Que tempo tu foi gerada?…

A mulher da terra cresce,

Enche o espaço como um templo

E seu brado ecoa, longe,

“Eu sou de todos os tempos…”

Conclusão

A Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo foi reconhecida pela ipa em 1951, realizou o sonho de seus pioneiros e colaboradores. Foi e continua sendo uma árvore de galhos frondosos em expansão, em várias cidades de São Paulo e outros estados, formando Núcleos, depois Sociedades provisórias, depois outras Sociedades.

Suas origens teóricas fundamentam-se primeiramente em S. Freud, M. Klein, W. Bion e D. Winnicott, autores da escola inglesa. Foi enriquecida por H. Rosenfeld, D. Meltzer, F. Tustin, H. Segal e outros. A importância da escola francesa é estudada principalmente por intermédio de André Green. Atualmente, abre-se para investigação de obras de outros autores, como T. Ogden, J. Grotstein, C. S. Botella, A. Ferro entre outros.

Suas origens clínicas - desde o embrião no “Serviço de Higiene Mental”, nas instituições escolares - são embasadas, fundamentalmente, na investigação do fenômeno clínico, na complexidade do ser humano, sua dor, criatividade, capacidade de construção ou destruição.

Assim, a SBPSP adquiriu e fortaleceu a própria singularidade, nela predominando a investigação clínica e abrigou, como todo grupo humano, concordâncias e discordâncias, pontos de vista teórico-clínicos semelhantes ou diferentes, viveu bonanças e tempestades. Procurou, porém, nunca perder seu foco, coesão e respeito ético entre seus membros e a luta pela integração.

Tivemos nossa primeira sede própria na Rua Itacolomi, nossa segunda sede na Rua Sergipe, ambas em Higienópolis, e a compra de nossa terceira sede em Vila Olímpia foi causa de muita polêmica e quase cisão. Tivemos sucessos pela aprovação da análise didática condensada, necessária para a expansão da psicanálise em um país de dimensão continental, mas também causa de muita polêmica com a ipa.

Temos movimentos de progressões e regressões, grupos teóricos mais narcísicos e encapsulados, como também grupos criativos e abertos à investigação. Tivemos pioneiros excepcionais que nos deixaram a possibilidade de construir essa sociedade que se mantém coesa, criativa, de pé e luta para não sucumbir aos impulsos de destruição grupal, a maior Sociedade de Psicanálise da América Latina.

1 Trabalho apresentado na jornada “As origens científicas e poéticas da SBPSP”.

3 Comunicação feita na discussão aberta, nos anos 1950, no Teatro Municipal a respeito da peça Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (Nosek, 1994, p. 45).

4 “Linguagem de achievement”, conceito de Bion. De um modo especial, Paulo C. Sandler (2021) traduz essa expressão como “linguagem de consecução”, que tem como característica básica a consideração pela verdade. Acredita que, em Transformações, Bion tenta conseguir uma linguagem que possa promover uma comunicação real entre os pares. Célia Fix julga a “linguagem de achievement” como a “linguagem da emoção”.

Referências

Alves, R. (2013). Pôr-da-lua. Jornal de Psicanálise, 46(84), 205-207. [ Links ]

Freud, S. (1974). O interesse científico da psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 13, Parte II, p. 179). Imago. (Trabalho original publicado em 1913) [ Links ]

Haudenschild, T. R. L. (2000). Adelheid Koch, Virginia Bicudo, Lygia Amaral e Judith Andreucci: pioneiras da psicanálise em São Paulo. Trabalho apresentado na mesa “Modernismo, mulher e psicanálise”, parte do módulo “Brasil: psicanálise e modernismo”, do evento Freud: Conflito e Cultura, realizado no masp, em São Paulo. [ Links ]

Lima, A. A.; Pedreira, H., & Sandler, P. C. (Entrevistadores) (1986). Entrevista com a professora Judith Seixas Teixeira de Carvalho Andreucci. Ide, 12. [ Links ]

Nosek, L. (1994). Álbum de família. Imagens, fontes e ideias da psicanálise de São Paulo. Ide/Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo/Casa do Psicólogo. [ Links ]

Sandler, P. C. (2021). A linguagem de Bion. Um dicionário enciclopédico de conceitos. Blucher. [ Links ]

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