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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.75 São Paulo Jan./June 2023  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n75.25 

Resenhas

MÁRIO E O MÁGICO UMA EXPERIÊNCIA TRÁGICA DE VIAGEM

Maria Cecilia Marks1 

Maria Cecilia Marks é pesquisadora de literatura; possui Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo; é coorganizadora do livro Romance de formação - caminhos e descaminhos do herói; coordena a Roda Rosa Mediação de Leitura, iniciativa voltada ao estudo e à difusão da obra de João Guimarães Rosa. São Paulo

1Universidade de São Paulo

Mann, Thomas. Companhia das Letras, p. 112


A atualidade de Mário e o Mágico

Chega em momento oportuno a nova edição da novela Mário e o mágico: uma experiência trágica de viagem. A bem cuidada publicação integra a Coleção Thomas Mann, iniciada pela Companhia das Letras em 2015 sob a coordenação do professor de literatura Marcus Vinicius Mazzari, da Universidade de São Paulo.

Mário e o mágico é o décimo volume da série, que oferece novas traduções, assim como edições amplamente revisadas, inclusive das traduções canônicas feitas por Herbert Caro em meados do século 20. Entre essas constam os romances A montanha mágica, Doutor Fausto e Os Buddenbrook, além de outros títulos, todos eles cotejados com as mais abalizadas edições alemãs (como a Große kommentierte Frankfurter Ausgabe, publicação em 38 volumes que a editora S. Fischer iniciou em 2001), frutos do trabalho de pesquisadores que buscaram corrigir erros acumulados ao longo das décadas em sucessivas edições da obra manniana.

Cada volume da Coleção conta ainda com um posfácio com análise e esclarecimentos valiosos para o leitor. Esses textos complementares são assinados por estudiosos de referência no cenário da germanística brasileira e internacional. No caso de Mário e o mágico, o coordenador da Coleção, Marcus Mazzari, apresenta um estudo a respeito da novela e da época em que foi redigida, sob os influxos do fascismo. Daí a atualidade e pertinência da publicação.

Escrita em 1929, ano em que Thomas Mann foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, e publicada em 1930, a novela transcorre no período de consolidação do fascismo, antes de Hitler ascender ao poder na Alemanha. De acordo com Mazzari, a inspiração veio de uma “experiência de viagem” do próprio escritor e familiares no verão de 1926 em um balneário da Toscana. Àquela altura, a Itália já estava sob o domínio de Il Duce, como se autodenominou Benito Mussolini depois de se tornar primeiro-ministro, em 1922, estabelecendo um regime ditatorial totalitário com base na ideologia fascista e se mantendo no poder até 1945, quando foi capturado e morto por integrantes da resistência italiana.

Embora tenha um cunho autobiográfico, trata-se indubitavelmente de um texto ficcional dos mais elaborados, uma criação de arquitetura sofisticada e recursos imagéticos e linguísticos selecionados com cuidado, constituindo-se em uma espécie de alegoria do fascismo. Na novela, tal aspecto transparece em condutas comezinhas e advertências preconceituosas chegando até à personificação do regime.

Com pouco mais de 50 páginas, Mário e o mágico encerra um vasto rol de temas que podem ser explorados pela psicologia, sociologia, antropologia e outras áreas do conhecimento.

Nas páginas iniciais da novela, o narrador em primeira pessoa relata uma série de pequenos e desagradáveis incidentes enfrentados por sua família naquela temporada de veraneio, de forma a “imprimir o selo do desconforto” (Mann, 2023, p. 12) e a criar uma atmosfera de constrangimento e crescente hostilidade ao grupo de estrangeiros alemães.

De alguma maneira, esses episódios envolvem crianças, sejam os filhos dos turistas ou as nativas, o que acresce à ambiência um caráter de valoração da instituição família, com tintas moralistas, como também traça um tênue paralelo entre a condição infantil, de tutela e obediência, com o comportamento apresentado pela população subjugada à ideologia fascista, em que o líder assume o papel de pai despótico, operador de uma máquina publicitária capaz de incutir, em mentes vulneráveis, valores ilusórios de superioridade dos nacionais e exclusão das diferenças.

O conflito emerge até nas brincadeiras das crianças, que sempre têm mais facilidade para travar contato entre si. No entanto, os filhos do protagonista “sofriam misteriosas desilusões” (Mann, 2023, p. 17) decorrentes de demonstrações de orgulho patriótico exacerbado por parte de infantes italianos, e estes eram defendidos também pelos adultos locais. Por seu lado, os pais germânicos não se sentiam capazes de explicar às suas crianças que aquelas pessoas “estavam passando por algo, por uma situação, algo como uma enfermidade” (Mann, 2023, p. 18), sentimento comum a uma parcela dos brasileiros em tempos recentes.

Hoje conhecemos o trágico desfecho dessas ideologias gestadas no período entreguerras e que insistem em retornar um século depois. Thomas Mann, porém, como acontece a grandes artistas, percebeu o clima que rondava aqueles dias e, com antenas sensíveis, instintivamente se antecipou aos fatos, expondo com precisão magnífica a poeira de maldade e intolerância que recobre populações inteiras sob tais influxos.

No entanto, o narrador que se mostra irritado e decepcionado com atitudes xenófobas dos italianos, também ele pontua com leve tom de escárnio, ao longo da narrativa, diferenças culturais entre o comportamento dos povos meridionais e os racionais habitantes do Norte, notadamente os germânicos, postura que desembocaria em uma certa equivalência ideológica. Estaria querendo o autor salientar que o perigo de ideias identitárias excludentes ronda a todos? Ou ainda, pensando com Riobaldo, “Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos?” (Rosa, 2019, p. 66)

Embora mencionados nos parágrafos iniciais, os dois personagens que dão título à novela aparecem depois do primeiro terço do texto, quando o “selo do desconforto” adquirira relevo e contornos quase insuportáveis para os estrangeiros. Eles, contudo, insistem em permanecer no local. Mas, por quê? O narrador faz-se a pergunta repetidas vezes ao longo do texto e, embora desfie uma série de motivos pertinentes, não consegue se persuadir nem desvelar as razões que levam pessoas a se manterem inertes ou condescendentes com situações potencialmente perigosas para si e para a comunidade.

Nessas circunstâncias e desejosos de alguma distração, além de instados pela vontade e curiosidade dos filhos, a família assiste ao infausto espetáculo de Cipolla, o mágico, ilusionista e prestidigitador.

É notável que, no mesmo período em que Thomas Mann dedicava-se a ficcionalizar as artes ocultas de Cipolla, Mikhail Bulgákov redigia O Mestre e Margarida, romance que expõe com ironia mordaz a opressão vivida, também naquela época, na União Soviética. Em um dos episódios, a atração do Teatro de Variedades de Moscou é o show de Woland, ninguém menos que o diabo em visita à capital russa. Assim como Cipolla, Woland consegue levar a plateia ensandecida a um transe hipnótico.

Em Mário e o mágico, Cipolla se faz esperar, pois o atraso para começar o show aumenta o suspense e a expectativa pelo desempenho do suposto “artista”, que surge mais de meia hora depois do programado, com passos enérgicos e senhor de si, sem qualquer “traço de sujeição” (Mann, 2023, p. 25).

O virtuosismo descritivo de Thomas Mann fica patente desde as primeiras páginas, em que o narrador coloca o leitor na quente e ensolarada paisagem meridional de Torre di Venere, o fictício refúgio litorâneo.

O calor era imenso, é necessário que o diga? Um calor africano, o reinado de terror do sol, mal nos apartávamos da franja de frescor azul-anil; era de uma inclemência tal que os poucos passos da praia até a mesa do almoço, mesmo se apenas de pijama, constituíam uma empreitada de antemão digna de tirar o fôlego. (Mann, 2023, p. 15)

A descrição do ilusionista é outro ponto alto do talento narrativo-pictórico do autor, que aos poucos e detalhadamente vai compondo a imagem e o caráter do cavalieri Cipolla diante do grande e diversificado público que o assiste, e também na imaginação do leitor. Às extravagantes vestimentas do mágico somava-se um adereço estranho: “um chicote com cabo prateado em forma de garra” (Mann, 2023, p. 25).

Uma das características mais relevantes do personagem é a sua capacidade retórica, o qual dispunha de recursos discursivos inesgotáveis, sempre os aplicando adequadamente e pontuando com artifícios para enaltecer a pátria. Em paralelo, o narrador coloca, esparsas no texto, informações que compõem o mosaico social e político daquele país à época: o monopólio estatal do tabaco, o analfabetismo, as precárias condições de trabalho e de moradia dos pescadores.

Ao espetáculo do prestidigitador comparecem a população e turistas. O evento já começa tenso, pois um rapaz da plateia apressou o ilusionista e este, de imediato, demonstra sua força mental, que só aumenta ao longo da apresentação. Cipolla revela-se um manipulador praticante de hipnose e telepatia e, desde as atividades iniciais, um pouco mais amenas, escolhe criteriosamente as suas vítimas. O show e o desempenho do ilusionista seguem num crescendo, com propostas as mais desbaratadas, até o transe hipnótico que leva turistas e nativos a se expor em situações ridículas e aviltantes, o que concorrerá para o inaudito final do enredo.

Sempre na medida exata, o autor se vale do objeto-motivo - o chicote utilizado pelo prestidigitador Cipolla - para evidenciar o processo de adestramento que visa subjugar personalidades susceptíveis, algumas até sequiosas, aos limites de uma jaula. Ou seja, a liberdade e o pensamento crítico podem representar um fardo, por isso torna-se mais simples e fácil se deixar levar por ideais que desconsiderem a complexidade e a diversidade do mundo e da vida. Nesse sentido, a concisa novela contém, em germe, um verdadeiro tratado sobre a dialética entre liberdade e vontade, submissão e opressão, do qual emerge uma “estética da manipulação”, conforme expressa Giovanni Marques Santos (2014):

Mario e o mágico constitui um engenhoso exame das formas de manipulação, bem como de suas contrapartes - a submissão ou a resistência. Na base deste conflito, o autor desenvolve uma teoria da liberdade e da vontade, com múltiplas repercussões tanto para a vida pública quanto para a esfera privada da condição humana.

Autor de um dos mais importantes e incisivos romances críticos ao nacional-socialismo alemão, o Doutor Fausto, publicado em 1947, Thomas Mann captou com extrema perspicácia, duas décadas antes, a sedução diabólica do discurso fascista, personificado no personagem Cipolla. Tratava-se ali também, como em Doutor Fausto, de um pacto com o diabo.

Dotado de qualidades literárias semelhantes às desse grande romance, Mário e o mágico é uma pequena obra-prima, em que o escritor consegue evidenciar, de maneira muito precisa e ao mesmo tempo sutil, a conexão entre a vida cotidiana do cidadão comum e o aparelho ideológico de Estado. Com seu caráter antecipatório e premonitório, Mário e o mágico se constitui em obra de ficção relevante para a compreensão da história política e social do século 20 e seus desdobramentos, favorecendo a reflexão sobre o momento atual.

Referências

Mann, T. (2023). Mário e o mágico (J. M. Macedo, Trad.). Companhia das Letras. [ Links ]

Rosa, J. G. (2019). Grande Sertão: Veredas. Companhia das Letras. [ Links ]

Santos, G. M. (2014). “Anche se non vuole!” Manipulação e resistência em Mário e o mágico, de Thomas Mann. Revista DisSoL, Universidade do Vale do Sapucaí, Pouso Alegre, ano I, nº 1, out/2014. http://ojs.univas.edu.br/index.php/revistadissol/article/view/9/19. Acesso em 27/03/2023. [ Links ]

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