SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 issue75MÁRIO E O MÁGICO UMA EXPERIÊNCIA TRÁGICA DE VIAGEMSOBRE O CICLO DE CINEMA E PSICANÁLISE, 2022 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.75 São Paulo Jan./June 2023  Epub Aug 02, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n75.26 

Resenhas

MEU PAI, UM DESCONHECIDO?

Ana Patrícia R. Ribeiro1 

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Uberlândia

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Levisky, David Léo. Blucher, 2022. p. 242


A odisseia de David: autobiografia de um psicanalista

Resenhar esse livro autobiográfico foi um verdadeiro desafio. Como apresentar as memórias afetivas e históricas que revelam o filho, irmão, pai, renomado autor e psicanalista David Levisky?

Confiar, etimologicamente, “fiar juntos”, esse foi o sentimento que abrandou minha inibição, certamente superegoica, para redigir este texto.

Um psicanalista publicando uma autobiografia?

É muito corajoso, pois a neutralidade e a abstinência do analista, preconizadas pela técnica psicanalítica, ficam expostas. Como o autor/analista vai lidar com isso ao tornar pública a sua história?

Só um analista com o método psicanalítico tão encarnado poderia ser tão corajoso para retirar o “cinto de segurança” da teoria e da técnica e ainda assim conduzir uma análise exitosa.

Em Meu pai, um desconhecido? reencontramos o talento de David Levisky, já apresentado em obras anteriores, como em Entre elos perdidos (2011), de criar uma narrativa que mescla harmoniosamente passagens documentais e ficcionais colorindo-as poeticamente. Com destaque ao seu conhecimento psicanalítico incorporado, que marca a complexidade emocional dos personagens e suas tramas.

O texto mostra paisagens longínquas de mares, campos, estações do ano, cenas de guerra e de paz, acompanhadas de seus respectivos aromas: especiarias, temperos, maresia, campos, florestas e, também, o cheiro impregnante do medo aterrador que compunha as partículas do ar. O frio dos invernos rigorosos, a brisa refrescante trazida pelo mar, arrepios no corpo e na alma, tanto da tristeza extrema como da intensa alegria. Partidas e reencontros, conquistas e derrotas, cada capítulo desperta no leitor um sentimento de gratidão por tanto conhecimento e sabedoria envoltos na beleza dessa história íntima compartilhada que permite incontáveis identificações.

Países distantes com seus costumes, palavras e expressões hebraicas, rituais judaicos, apresentam-se no início causando estranheza e instigando curiosidade, mas cada nova página envolve uma atmosfera familiar. Suponho que aos leitores com ascendência estrangeira, judeus ou não, a experiência da leitura desse livro possa vir a ser a revivência de sentir-se asilado, de reencontro, reconhecimento, ajudando, talvez mais que ofertando um refúgio, na construção de um novo lar para um esperançoso renascimento.

Freud já dizia: “Seguramente, escrevemos em primeiro lugar para satisfazer alguma coisa que se acha dentro de nós, não para outras pessoas” (Jones, 1989, p. 393).

Ao longo do livro, o autor confirma a necessidade quase vital de “realizar esse trabalho de resgate arqueológico, histórico e, principalmente, emocional … Suponho seja um meio de preencher lacunas existenciais, cuja investigação amplia o sentido da vida, em um momento tão cheio de incertezas” (p. 36).

Iniciando o primeiro capítulo uma declaração com ares de envergonhada confissão: “Chorei diante de um dos quadros de Marc Chagall…” Esse foi o big bang para o emocionado e atônito David nos apresentar toda uma sequência de acontecimentos internos que eclipsaram os externos.

O versado psicanalista valorizando sua intuição se indaga: “Vale a pena mergulhar nessa caverna escura? Para quê?” E conclui em seguida: “Aprendi com a minha própria experiência que o bem-estar e a felicidade dependiam do respeito que eu dava à minha intuição” (p. 35).

Marc Chagall parece ter sussurrado a David: “A arte é sobretudo um estado de espírito” (Magalhães, 2009). E ele nos narra a vigorosa turbulência emocional que o invadiu: “Eu não era capaz de nomear os elementos que compunham minha inquietação e mal-estar, estimulados por algo, ao mesmo tempo, estranho e familiar, contradição excitante e geradora de indagações” (p. 28).

Inevitável para alguém que conheça o artigo “O estranho” (Freud, 1919/1977) não identificar aqui o talento do experiente psicanalista com o inoportuno mal-estar experimentado pelo narrador diante da tela Artista e seus noivos, de Chagall. Nesse texto, Freud nos remete aos sentidos antitéticos contidos no conjunto semântico de íntimo, familiar, desconhecido e estranho.

Capturado nessa constelação de emoções, David, assim, também mantém o leitor. Inicialmente, por meio da biografia do pintor: “Chagall seria o ponto de partida do regresso ao passado presente em mim. Nas investigações sobre o silêncio ruidoso que me fez chorar, sentir estranhas sensações, mistérios a serem desvendados” (p. 32).

E o leitor passa a acompanhar o autor em sua odisseia, transformar o “terror sem nome” (Bion, 1962/2021) em literatura, cumprindo assim o que eu entendo ser uma crucial função das artes:

A arte proporciona experiências emocionais ao seu interlocutor quando, ao expressar o impensável do desamparo ontológico, aquele que se refere ao sujeito em si mesmo em sua complexidade irrestrita, permite desenvenená-lo das angústias inomináveis. Significando tudo aquilo que não possuía definição nas áreas incipientes do psiquismo individual e do social. (Ribeiro, 2019)

Apesar da confissão de David de que sempre teve dificuldades em compreender a geopolítica da Europa daquela época, apresenta com leveza e vivacidade os sucessivos conflitos em diferentes períodos da história, desde o passado longínquo até nos aproximar da guerra russo-turca em 1878 e dos pogroms, indicadores de um antissemitismo severo e suas consequências na mente de seus antepassados:

Tais circunstâncias ampliaram minha curiosidade e ansiedade na tentativa de entender características da infância de meu pai, que mal conheço… e os enigmas escondidos nas criptas do meu eu. Segredos represados em mim ou transmitidos de geração em geração… (p. 40)

Novamente o psicanalista com sua bem treinada intuição, combinada com o talento para a escrita, nos aponta outro rico conceito: a transmissão psíquica transgeracional, na qual uma vivência traumática não elaborada, cindida e silenciada numa geração, se presentificará em outra geração como sintoma. Esse fenômeno clínico foi frequentemente observado em descendentes do Holocausto judeu, o Shoá. David nos narra:

Hoje, permito-me suspeitar da presença ausente em minha memória profunda… Episódios que não poderiam ser lembrados, falados, mas que permaneceram vivos como nuvens negras que se aglutinavam em determinadas situações, capazes de gerar tempestades íntimas. (p. 40)

Impulsionado pela imperiosa necessidade de conhecer seu pai ou, melhor, de “re-conhecer” a si mesmo pela história e percurso de seu pai, o leitor pode, pelo “periscópio” do olhar de David, refazer toda a viagem no tempo e espaço do casal Annita e Emanuel, desde sua partida da distante Odessa de 1920 até a São Paulo de 1928.

No capítulo intitulado “Reencontro com o passado”, o autor foi capaz de coreografar, poética e psicanaliticamente, a complexa ressignificação das relações com os pais internalizados à medida que se libertou da força paralisadora do transgeracional. Ilustro com alguns trechos:

Parte dos meus medos infantis devia estar relacionada às experiências vividas por meu pai em sua infância, nunca reveladas, transformadas agora em história … O passado por eles vivido se refletiu, por certo, em minha infância, na minha criação e, em consequência, nas ansiedades e medos que vivi. Tento compreender meu pai, que foi, para mim, um quase desconhecido durante a minha infância. (p. 199)

E Odessa volta a ser cenário no último capítulo, quando “a ala masculina dos Levitsky” (p. 229) se reúne para conhecer a cidade natal dos antepassados ucranianos. As emoções são provenientes de diferentes fontes: a primeira vez na vida de David em que realizou uma viagem e esteve um longo tempo ao lado do seu único irmão, Hélio. Estar na companhia do filho Ricardo e nas visitas aos locais de origem para homenagear entes desconhecidos. O clímax da viagem me pareceu ser a visita ao número 5 da Praça Catarina II, a casa em que viveu “Emmatchka”, o pai de David: “Ficamos ali parados, extasiados, olhando para cada ponto, esquadrinhando o espaço, inalando cada milímetro, desejosos de incorporar o conteúdo histórico e emocional condensado ao longo dos tempos” (p. 233).

Encerro esta resenha com a dedicatória de David aos pais: “Em gratidão aos meus pais, que me alimentaram com amor, dedicação, sabedoria, ética e capacidade de lutar pela vida” (p. 7). E um trecho da emocionante carta de seu filho Ricardo, ao término da viagem a Odessa: “Pai, você escolheu os três homens da sua vida para esta linda caminhada. Tenha certeza de que você foi um filho maravilhoso, um grande irmão, e, como pai, tenho toda a autoridade para dizer: você é um excelente e maravilhoso pai” (p. 239).

Referências

Bion, W. R. (2021). Aprender da experiência. Blucher. (Trabalho original publicado em 1962) [ Links ]

Freud, S. (1977). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 273-314). Imago. (Trabalho original publicado em 1919) [ Links ]

Jones, E. (1989). Recorte de uma carta de Freud a Mari Bonaparte de 1925. In E. Jones, A vida e obra de Sigmund Freud. Imago. [ Links ]

Magalhães, F. (Cur.) (2009). O mundo mágico de Marc Chagall - O sonho e a vida [exposição]. Casa Fiat de Cultura. [ Links ]

Ribeiro, A. P. R. (2019, 20 de setembro). “Conhe-Ser”, trabalho de sonho alfa? E/ou Transformação em “O”? [Apresentação de trabalho]. Reunião científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.