O Ciclo Cinema e Psicanálise, da Diretoria de Cultura e Comunidade da SBPSP, realizado em parceria com o Museu da Imagem e do Som e a Folha de S.Paulo, apresenta e discute um filme por mês no auditório do mis. O debate conta com a participação de um psicanalista da SBPSP e um jornalista ou profissional indicado pela Folha de S.Paulo e tem a mediação da psicanalista Luciana Saddi. O público participa ativamente da conversa e contribui com novas perspectivas e interpretações sobre a obra discutida. Deve-se ressaltar que os debates do Ciclo disponíveis no canal do YouTube do mis são a programação mais acessada do museu. Alguns contam com mais de 40 mil visualizações.
Considerando que o campo cultural articula-se ao fazer clínico, com a formação dos membros da SBPSP e linhas de investigação analítica, justificam-se as atividades, oportunas e necessárias, que mantenham o espírito freudiano de questionar homem e cultura de forma indissociada. A investigação psicanalítica - desde Freud - permite observar o entrelaçamento entre expressões culturais, sofrimentos individuais, manifestações sociais e produções artísticas.
O objetivo principal do projeto é divulgar a psicanálise para um público amplo. A oportunidade de observar psicanalistas em discussões ao vivo com profissionais de outras áreas e em interação com o público torna-se aproximação valiosa da experiência com a reflexão psicanalítica. O psicanalista, por meio de uma imersão simpática em seu objeto, o reino dos sentidos, pode investigar um dado fenômeno da cultura ou da realidade social. Frayze-Pereira (2021) conceituou como análise implicada o método que não pode ser reduzido à simples verificação dos conceitos analíticos ou ao uso da livre associação por parte dos intérpretes. Trata-se de uma forma de pensar em que o método interpretativo da psicanálise constrói novos sentidos. Utiliza teorias consagradas, pois são referências importantes, e, ao mesmo tempo, nutre-se de novas possibilidades de representar com base na experiência subjetiva dos intérpretes.
A seguir comentamos os debates do primeiro semestre de 2022.
Em março o premiado filme Nomadland (dir. Chloé Zhao, 2020) marcou o retorno ao modo presencial do Ciclo de Cinema e Psicanálise. O filme acompanha Fern (Frances Mcdormand), que aos 60 anos, depois de perder marido e casa na recessão americana de 2008, inicia viagem pelo Oeste americano e passa a viver como nômade. A narrativa apresenta um modo de viver, com poucos vínculos e pertences, semelhante ao dos cowboys do passado, marcado por desolação, isolamento e perdas, questiona a forma de constituirmos nossas relações. A psicanalista Patricia Gazire, em leitura muito refinada da obra, destacou várias cenas para abordar o trauma. Falou sobre o pesado silêncio inicial, típico da experiência traumática, em relação à morte e às perdas. A paralisia, a dificuldade em sentir e nomear sentimentos sendo evidência do refluxo silencioso de uma onda gigante que se abateu sobre o Eu. Apontou também algumas etapas do processo de luto da personagem, desde o trabalho de desligamento até o retorno da linguagem e as consequentes transformações no Eu.
Em abril o filme debatido, A pior pessoa do mundo (dir. Joachin Trier, 2021), paródia das comédias românticas convencionais, subverteu o gênero ao narrar a trajetória amorosa de Julie (Renate Reinsve). A obra apresenta uma sucessão de eventos extraordinários que provocam admiração e surpresa, pois a personagem, ainda que sofra, jamais renuncia a si mesma em nome do amor. Em sua jornada, enfrenta desilusão, dor e morte; amadurece, mas continua fiel a si e aos próprios interesses. A psicanalista Marielle Kellermann abordou o filme de maneira bastante peculiar, propôs-se a contar como sentiu o filme, como o vivenciou. Diretamente inspirada pela personagem, assumiu sua própria subjetividade e apresentou seu mundo interno, pensamentos, sentimentos e associações livres em relação à obra. Entrelaçou na forma e no conteúdo a leveza das comédias romântica, o peso dos dramas, a tensão das novelas familiares e a resolução do complexo edípico.
Em maio foi a vez de debater Deserto particular (dir. Ali Muritiba, 2021). Jurenice Picado Alvares buscou ancorar sua reflexão nos ensaios de Freud sobre sexualidade e gênero. Da sexualidade infantil, perversa e polimorfa, considerou a abertura para o prazer e o descolamento da função reprodutiva. Sobre gênero, apresentou a tese freudiana, corroborando-a com o fato de não haver substrato fixo orgânico para denominar masculino e feminino nem correspondência direta com a biologia para designar homem ou mulher. O filme apresenta a jornada de Daniel (Antonio Saboia), personagem atormentado e explosivo, que cuida do pai demenciado até o desaparecimento repentino da enigmática namorada virtual. A busca pela moça o leva ao encontro de aspectos sexuais próprios que foram rejeitados ou eram desconhecidos.
Os filmes A pequena mamãe (dir. Céline Sciamma, 2021) e Tre piani (dir. Nanni Moretti, 2021), debatidos nos meses subsequentes, suscitaram reflexões em torno da família, tema psicanalítico por excelência. O “romance familiar”, termo freudiano, aponta para a complexa relação entre familiares, e as posições que ocupam, dinâmicas, mas por vezes fixas, no grupo consanguíneo. Abandono, loucura e obsessões, lados ocultos e sombrios da família, foram abordados pelos debatedores.
A psicanalista Gizela Turkiewicz salientou que a trama do filme francês enreda as relações entre três gerações de mulheres de uma mesma família e aos poucos apresenta as identificações entre elas, com base no olhar da criança Nelly. A morte da avó aponta para uma filha em luto e para uma neta em luto. Um “baú de memórias e afetos” é simbolizado pela viagem para desmontar a casa da avó, em que as lembranças são literalmente reviradas, e é preciso escolher o que guardar. Afirma que a principal herança guardada são as primeiras marcas na relação com as mães, a partir do nascimento e da primeira infância, num registro inconsciente que se acumula no decorrer da vida. Já Maria Luiza Salomão questionou a felicidade no interior do condomínio romano, referência aos três pisos ou andares do prédio de apartamentos. Salienta que o teto de uma família é o piso da outra, metáfora que alude à intimidade, ao distanciamento e até mesmo ao isolamento vivido nas famílias. A solidão e a incomunicabilidade é o lado encoberto pelos dissabores das famílias apresentadas no filme, e a dificuldade em perdoar, parte intrínseca do choque entre gerações.
O perdão e o desejo genuíno por conhecimento, podemos afirmar, foram, segundo as psicanalistas, temas de ambos os filmes. Ainda que estejam ocultos, como pano de fundo, são as forças que permitem elaborar luto, desamparo e conter a violência. Nos filmes assumem a forma de amor sutil, para superar ódio, rivalidade e conflitos. Levar a vida adiante, apesar da destrutividade e morte. Não por coincidência, Turkiewicz e Salomão destacaram a força, a capacidade de restauração e o amor das novas gerações.
Aguardamos vocês no mis e convidamos a todos para assistir aos debates que estão no canal do Youtube do mis.