Gostaria de contar para vocês um pouco da história de quando entrevistei, para meu doutorado, um grupo de mães adolescentes em situação de rua.2 Pelas ruas e calçadas, no cruzamento entre a Ipiranga e a Avenida São João, como diz o poeta Caetano Veloso, alguma coisa acontecia no meu e em nossos corações. Entrei em contato com a alteridade, com o feminino-encontro através dos olhos das jovens meninas, afinal, “Narciso acha feio o que não é espelho”. Frequentando oito abrigos temporários pela cidade de São Paulo, pude viver uma verdadeira odisseia, pois, durante aquele mesmo período, passei pela experiência, atavicamente compartilhada, de uma gravidez e maternidade. Estive em encontros fortuitos marcados na catraca do metrô do Anhangabaú, em meio a perseguições, peregrinações e penitências ou falando baixinho para não ser escutada na penitenciária feminina, ouvindo e registrando histórias com três aparelhos de gravação, que subitamente “morreram”, cessaram de funcionar, pelo impacto e força de tal emoção, que mal podia ser decodificada. Tudo isso marcou profundamente minha alma de mulher, de mãe e meus encontros como psicanalista em meu consultório.
O presente volume aborda a ideia de que a jornada autobiográfica de todo analista é a narrativa da “viagem rumo a homophrosyne, o encontro de Ulisses com Penélope atravessado por curiosidade, arrogância, estupidez, hybris ou Fé. A jornada de Odisseu de retorno à origem, a Ítaca, e à criatividade no lar (oikos), pode ser vista como a jornada psicanalítica da interlocução entre a função feminina e a masculina da personalidade” (Carta ao Leitor). O encantamento, a beleza, o mistério e o terror diante do contato com a vida mental, a descoberta da câmara virginal em que os pensamentos tomam suas formas, “câmara do pensamento virginal” (Keats, 1819). Esse íntimo despertar ao original/origem é dar-se conta da essência de si mesmo, uma luz, uma presença desde o início. Vem à mente a parábola bíblica dos talentos, ao trazer o modelo do mito do senhor de terras que viaja deixando seus “talentos” (moedas da época) para seus serviçais. Quando ele retorna, o leitor esperaria que dispensasse o serviçal que apostou, e perdeu todos os talentos, contudo, diferentemente, ele dispensa outro serviçal, aquele que os escondeu, guardando os talentos embaixo da terra.
Schnitzler, que, como Freud, deixou a medicina por se encantar com o poder literário dos estudos de casos clínicos, na subjetividade inescapável de quem os interpreta, foi influenciado por Freud em A interpretação dos sonhos. Sua Traumnovelle (novela dos sonhos), escrita em 1924, foi posteriormente transformada no filme De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick. É o relato da mudança catastrófica de um casamento ao se desvelar que a mulher tem uma vida psíquica interior. Schnitzler explora a exposição à vida mental do outro como parte de si mesmo, no limiar entre sonho, fantasia e realidade. Em seus monólogos interiores, assombrados entre o privado e o público, o escritor se revelou um psicólogo da alma feminina.
Os artigos presentes nesta revista salientam como muitas vezes negligenciamos tal busca sob os efeitos da intolerância à dor mental, da idealização narcisista que liga o encontro do masculino com o feminino, a origem no seu mistério, a um desastre deletério. Como exemplo disso, algumas das interpretações dos mitos de Lilith, Pandora, Eva, entre outros, nas quais o feminino é o “porta-dor” da destrutividade, do mal para a humanidade, enfim, da frustração devido à entrada na realidade. Freud em 1937 afirmou que o repúdio à feminilidade é uma característica da vida psíquica dos seres humanos e o ponto de virada no final da análise. É preciso viver o luto pela fantasia de uma mãe originária que “deveria” prover o herói-infante de um escudo que o protegesse, que o blindasse da dor de cada ausência, dos sofrimentos inerentes à vida, jorrando seu leite interminável - mas nem mesmo Tétis ao banhar Aquiles nas águas da imortalidade lhe confere tal situação favorável a proezas! O retorno a Ítaca não poderia, portanto, privar o herói do contato com sua condição humana de incompletude, de finitude. É somente por meio da lucidez que podemos nos responsabilizar - no sentido psicológico da responsabilidade, e não do moral - por nossa vida e potencialidade.
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
(Hilda Hilst, “Dez chamamentos ao amigo”.
Júbilo, nocividade da paixão, 1974)