Caro Leitor,
- Som! Som! - Orfeu, cadê o som? - Cadê a palavra? - Preciso procurá-la para dar início a essa prosa, mas encontro-me pesarosa pela responsabilidade… Encontrá-la significa encontrar-me.
Segundo Yeats, uma bela jovem sempre pode esperar que Troia se incendeie de novo por sua causa: como fazer nosso aquilo que herdamos? A beleza, a sensibilidade e a inteligência podem ser utilizadas a favor ou contra.
“- Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas!” disse o poeta. Em outra ocasião, Chico Buarque declara a necessidade de sustentar a ambiguidade do mistério, do feminino, quando canta “Amo tanto e de tanto amar, acho que ela acredita… tem um olho que não está e outro, me fita”.
Amar e mar, navegar. E tanto mar! Estamos de novo no mito do pré-Édipo, do pré-humano da Odisseia quando o herói evoca suas musas inspiradoras para fazer sua viagem rumo a homophrosyne, ao encontro entre Ulisses e Penélope atravessado por curiosidade, arrogância, estupidez, pela hybris/fé. A jornada de Odisseu de retorno à origem, a Ítaca, e à criatividade no lar (oikos), pode ser vista como a jornada psicanalítica de encontro da interlocução entre a função feminina e masculina da personalidade. Esse íntimo encontro é muitas negligenciado sob os efeitos destrutivos, ignorado pelos pressupostos básicos do grupo interno com correspondência dos sintomas do grupo externo: machismo, feminicídio, violência, homofobia, negação das diferenças entre os gêneros, entre tantas expressões da crueldade humana através e em todos os tempos.
Odisseu ou homem da dor, é luta e dor, é um mestre contador de histórias que se envolve com poderosas deusas da sexualidade possessiva que lhe prometem eternidade, como Calipso. O épico inicia com o protagonista chorando na praia encerrado em seu claustro; ele é inspirado pela parceria da deusa da sabedoria, Atenas, a construir sua jangada transportada pelas asas do pensamento, para navegar nas ondas de sua dor mental em busca de sua masculinidade. Mas o masculino existe na relação com o feminino. É com seus objetos internos, Argos, o cão, Eumeu, o guardador de porcos, Euricleia, sua babá, Telêmaco, a realização do encontro entre a rainha e o mendigo: Odisseu e Penélope se encontram na velhice após uma separação de 20 anos. Quanto mar, quanta análise!
Aqui, assim como na ópera de Turandot, a decisão da mulher é condição: Penélope afirma que se casará com quem souber dobrar o arco e atirar através dos machados, seja ele quem for (xix. 68.79) enquanto Turandot estipula que se unirá somente com aquele que solucionar seu enigma. Contudo, assim como a pergunta lançada pela Esfinge, para incerteza humana não cabe uma resposta, é apenas esperança.
Para manter o mistério, Murilo Mendes, enumerando suas mulheres com ternura sustenta:
Outras vezes não me conformava com as fases da lua. Achava que havia diversas luas, uma delas magra, outra redonda, uma que se escondia no quarto, assim como Prima Hortência, outra que aparecia sempre como a professora Esmeralda … procuro nas flores algo de feminino corporal além da flor, arqui-dálias, rosas menstruadas, orquídeas estilo liberty que nem certos vestidos, noiteclareando em cada quarto, um travesseiro traz bordada a palavra boa-noite; minhas irmãs camisolando cantarolam. (2014, pp. 65-69)
Para não dizer que não falei das minhas flores preferidas, homenageio alguma delas como Cecília Meireles, Raquel de Queirós, entre todas, cito o encontro com Clarice Lispector por meio do livro Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres.
Teresinha Vânia Zimbrão da Silva (2008) faz uma leitura do livro com base na mitologia ponderando a respeito da escolha do nome dos personagens:
Lóri (Loreley), uma referência implícita ao folclore alemão, e Ulisses, uma referência explícita ao canto xii da Odisseia de Homero. É então narrado o episódio em que o herói Ulisses resiste ao canto sedutor das sereias, ninfas aquáticas que atraem os homens para dentro do mar, levando-os à morte. Para escapar à sedução das sereias, Ulisses comanda seus companheiros a taparem os ouvidos com cera, enquanto ele, desejoso de ouvir o canto sedutor das ninfas, é amarrado ao resistente mastro do navio. É assim que o herói supera mais um obstáculo na sua odisseia de retorno ao lar.
Aqui, de novo o duplo, o ser e o não ser, masculino e feminino, continente e contido, pois a sereia é metade mulher e metade animal capaz de despertar no homem o que há de mais turbulento e inquietante, Unheimlich.
Adélia Bezerra de Meneses no ensaio Sereias: a sedução do saber (2021) sustenta que o ser humano vive sob o signo da fragmentação, aquilo que existe de prometeico sempre disruptivo como o roubo do fogo dos céus ou ainda da maçã proibida, ressaltando a semelhança entre Odisseia e Gêneses. Lóri não somente se descola da protagonista da Odisseia como identifica-se com o viajante Odisseu pela temática ligada à sereia. O canto que encanta é a detenção do saber de uma amplidão totalizante. Não há sinal de beleza corporal ou sexual nas sereias, no entanto sua voz doce fascina o viajante prometendo o conhecimento. Adorno desenvolveu sua famosa interpretação da Odisseia, que pode ser resumida como a viagem metafórica do homem ocidental em busca da constituição do sujeito. Esse autor analisa os episódios em que Odisseu, no retorno de Troia a Ítaca tem embates com seres arcaicos, místicos e mágicos. Sabemos que a literatura é a testemunha do desenvolvimento espiritual do ser humano no sentido psíquico mais elevado e a necessidade de constituir-se como sujeito passa pelo desejo de domínio.
Clarice faz uma referência ao episódio homérico, pois “Loreley” é o nome de uma sereia, tal como seu próprio personagem Ulisses explica a Lóri:
É uma pena que seu apelido seja Lóri, porque seu nome Loreley é mais bonito. Sabe quem era Loreley? … Loreley é o nome de um personagem do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar. (Lispector, 1998, p. 106).
A autora inverte a Odisseia, na qual o centro da narrativa é um herói que apresenta a mulher pelos olhos masculinos, para focalizar uma mulher, Lóri, em busca de sua alteridade e é Ulisses quem aguarda, pacientemente, seu crescimento. Não é à toa, que o livro de Clarice começa com uma virgula e termina com dois pontos. Quem somos é também parte dessa busca infinita, que não cessa.
O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam - ela havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses viera a aprender que não se podia cortar a dor - senão se sofria o tempo todo … Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contato. (Lispector, 1998, p. 48)
Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama “eu existo”, a solução é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que exista. (Lispector, 1998, p. 177)
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente-atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém… (Lispector, 2009, n. p.)1
Obs. As propostas deverão ser encaminhadas à secretaria da revista até o dia 10/7/2023 para fabiana.santos@SBPSP.org.br
As orientações encontram-se em “Orientação editorial e normas para publicação de artigos e resenhas na revista Ide” no final da revista ou no site da SBPSP.
Podcast: https://open.spotify.com/episode/3SEg8HBQGaRya4z5Wfg2s4?si=VmVFycxhSIaN 0wOeEIO7jQ