Quem foi meu pai? Em depoimento para o documentário Arte, ciência e um divã, de André Greco e Adriana Siqueira Lopes, ele responde: “eu me defino por uma história … A identidade de um ser humano não é fixa, não é parada. A minha identidade incorporou, por exemplo, o fato histórico do nascimento dos meus filhos; eu não era pai e me tornei pai”. E ele dizia, no diálogo entre a psicanálise e o direito, que, se a carteira de identidade houvesse realmente de fazer jus à noção de identidade, ela deveria incluir não só o nome de nossos pais, mas também o de nossos filhos. E isso quer dizer que deveríamos renovar nosso rg a cada vez que nascesse ou fosse adotado um novo filho, porque nossa identidade, afinal, teria mudado com isso.
Meu pai teve, nesse sentido, várias identidades.
Ele foi o Antônio criança, nascido em Tupaciguara (mg), no dia 15 de março de 1928, filho do Áureo e da Georgeta, irmão do meio, entre a Tereza e o José. Ele foi o seminarista que entrou aos 11 anos no convento dos dominicanos franceses em Uberaba, onde fez, como então se dizia, o curso ginasial e o curso clássico. Foi o estudante que fez sua formação superior em Teologia em Saint Maximin, na França, também com os dominicanos, e que, por fim, se ordenou nessa Ordem dos Pregadores, mudando de nome e tornando-se o frei André O. P. Foi mestre e doutor em Teologia pela Pontificiam Universitatem S. Thomae, em Roma, em meados dos anos 1950. Foi fundador, líder e conselheiro espiritual de jovens dos grupos da juc, da jec e da cjc, nos anos 1960 no Brasil, quando teve a coragem de enfrentar, com inteligência e elegância, as forças retrógradas e obscurantistas que nunca deixaram - e até hoje não deixam - de assolar nosso país.
Ele também foi o pesquisador na área de Filosofia, que, no final dos anos 1960 e início dos 1970, foi fazer seu segundo doutorado na Université Catholique de Louvain, na Bélgica, e que pretendia escrever uma tese contra o dogmatismo inerente à mentalidade dos ditadores militares que fizeram - e ainda fazem - a miséria cultural de nosso país… e que acabou defendendo, em 1974, uma tese sobre a crítica ao dogmatismo científico em Psicologia, com base na obra A estrutura do comportamento, de Merleau-Ponty, intitulada justamente Le structuralisme de Merleau-Ponty, sob a orientação de Alphonse de Waelhens. Nesse trabalho, ele procurou pensar, junto com a fenomenologia francesa, uma estrutura aberta, dinâmica e polissêmica como princípio de abordagem da vida psíquica do ser humano, marcando as insuficiências de um estruturalismo puramente formal, mas, ao mesmo tempo, sem dissociar da existência os nexos estruturantes da inteligibilidade.
Ele foi ainda - e talvez sobretudo - o homem apaixonado pela sua Sônia, sua esposa, que ele havia primeiramente conhecido no Brasil, nos anos 1960, quando ainda era frei, mas que reencontrou na Bélgica, para onde ela fora fazer seu mestrado em Psicologia, na mesma época em que ele estava iniciando seu novo doutorado. Já antes desse segundo encontro ele havia solicitado às autoridades clericais sua saída da vida religiosa, pois considerava impossível lutar contra o dogmatismo da ditadura no Brasil e, ao mesmo tempo, aceitar o desmonte do Concílio Vaticano ii e as resistências à Teologia da Libertação, perpetrados pelas alas reacionárias do clero católico. Bem mais natural lhe pareceu integrar sua identidade de teólogo esclarecido e filósofo aberto com uma identidade de homem amoroso e amante, o que ele fez até o fim de seus dias, cotidianamente dizendo à minha mãe que, para ele, ela era “uma das provas da existência de Deus” (só o Deus de um homem esclarecido e aberto pode ter Sua existência provada dessa maneira).
E, com esse amor, Antônio também se tornou pai; uma das transformações que, como já dito, ele considerava das mais decisivas em sua identidade móvel e histórica. Com minha mãe, deu a vida a mim e ao meu irmão, André (que, não por acaso, recebeu o nome que meu pai tivera enquanto frei, o que, a meu ver, mais uma vez exprime sua recusa a cindir essa trajetória de vida em compartimentos estanques e incomunicáveis). Eu nasci no Canadá, em 1972, onde ele, acusado e perseguido no Brasil por seu enfrentamento à ditadura, teve de exilar-se por algum tempo ao lado de minha mãe. Lá, no Cégep de Trois-Rivières, ele lecionava filosofia da cultura e ela ministrava várias disciplinas de psicologia, já com um olhar psicanalítico, enquanto eu ficava em casa sob os cuidados de minha babá ou de alunos e amigos solidários que ajudavam fazendo babysitting. E quando minha mãe, por razões incontornáveis, precisou fazer uma arriscada viagem ao Brasil sem que eu e meu pai pudéssemos acompanhá-la, ele, que não era muito versado nos cuidados com bebês, cuidou de mim, nas minhas noites insones, com o melhor que tinha, ao mesmo tempo em que redigia seu doutorado sobre Merleau-Ponty: na falta de canções de ninar, lia-me a tese ao lado do berço (o que decifra para vocês a dedicatória que lhe fiz de minha dissertação de mestrado em filosofia: “para Antônio, cujas cantigas desde o berço me acompanham”. A bem dizer, havia sim uma cantiga brasileira, Luar do Sertão, que ele me cantava na hora de dormir - desde então e mesmo depois - como que a lembrar-se, no exílio, de sua origem simples numa cidade do triângulo mineiro, de sua família de origem e da pátria a que estava impedido de retornar: eu nasci naquela serra, num ranchinho beira-chão…
Mas, depois de um julgamento que o absolveu, juntamente com vários outros religiosos e ex-religiosos acusados de subversão, ele retornou ao Brasil, em 1975, antes mesmo da famigerada “anistia”, para dedicar ao seu país natal os derradeiros frutos de tão rica e vasta formação, estabelecendo-se em Campinas (SP), onde nasceu meu irmão, em 1978, no mesmo Centro Médico de Campinas em que ele próprio há pouco faleceu.
Filósofo da cultura, foi diretor (1976-1980), professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, onde, além de continuar lutando contra os interventores da ditadura claudicante, trabalhou em defesa de uma identidade dessa faculdade, que a elevasse muito acima de um mero centro de licenciaturas dentro da UNICAMP, concebendo-a, antes, como lugar em que a universidade pensa o fenômeno da educação em toda a sua amplitude, aí incluídos os processos formativos em curso dentro e fora do contexto universitário e das escolas normais. E, depois de ali haver se aposentado, voltou corajosamente à condição de aluno, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, para tornar-se psicanalista, integrando sua crítica ao dogmatismo científico em psicologia às fecundas influências de sua amada Sônia, há muito já envolvida com a psicanálise. Nesse novo contexto, encontrou no psicanalista Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) - inglês, mas nascido na Índia, como meu pai insistia em lembrar - não um mestre cujas obras ele haveria de repetir, mas sim um interlocutor culto, cosmopolita e profundo, com quem ele podia pensar e repensar sobre a psicanálise em múltiplos registros simultâneos (por exemplo, o científico-filosófico, o estético-artístico e o místico-religioso), como é próprio aos poliglotas do pensamento.
Tornou-se sogro de Paula, Fernanda, Laura e Giovana, a quem ele acolheu, chamando-as ternamente de “filhas” e sempre as tratou como tais, mesmo depois desta ou daquela separação. E tornou-se avô, adensando sua identidade, que com isso passou a incorporar referências a Eleonora, Bento e seu xará Antônio. E gostamos, em nossa família, de emprestar sentido às coincidências e brincar de imaginar que haveria alguma conexão entre sua partida e a chegada do Vitor, que se anunciou para ser adotado imediatamente depois que papai se foi, após uma espera de mais de uma década.
E, ao longo dessa trajetória, ele fez tantos amigos, que seria impossível nomear a todos eles. Basta olhar ao redor, neste cemitério, para ver quanta gente lhe queria bem… e aqui está apenas a pequena parcela dos que puderam se fazer presentes fisicamente hoje. Mas eu faço questão de nomear, usando a parte pelo todo, as pessoas com quem ele, ao lado de minha mãe, partilhou seu cotidiano aqui em Campinas: nossa finada Raimunda, a Cotinha, a Silene e o Thiago (filho da Cotinha e de quem ele foi padrinho, isto é, uma espécie de pai); e também minha madrinha Ivany e meu saudoso padrinho Pino, bem como o dr. Walter (Minicucci), que lhe deu assistência - assim como foi por ele assistido - em muitos âmbitos do cuidado com a saúde e a vida. Também gostaria de lembrar-me da já falecida dona Judith (Andreucci), no divã de quem ele partilhou certamente alguns dos momentos decisivos de sua vida e de sua formação analítica. Mas eu gostaria de dar especial destaque à famosa dona Neide; famosa porque qualquer pessoa que tenha feito os cursos do papai desde a época da SBPSP sabe que era ela que o secretariava e ajudava a transcrever as aulas faladas, que depois ele burilava (como gostava de dizer) para transformar em textos, artigos e livros.
Bem, para finalizar minha fala, eu gostaria de destacar - nesse movimento integrador da multiplicidade na identidade, e vice-versa, perpassado pela coragem, pela inteligência, pelo amor e pela amizade - três coisas, das muitas que dele eu recebi como heranças.
Em primeiro lugar, quero dizer que dele recebi certo modelo de homem forte. Num momento de crise cultural da masculinidade, meu pai surge, para mim, na condição de um de seus filhos, ambos homens, à maneira de refutação da falácia segundo a qual um homem forte e firme seria alguém que não se afeta nem muda de ideia. Ao contrário, com ele aprendi que um homem é forte porque é capaz de ser afetado e de mudar sem deixar de ser quem é, numa espécie de coerência e consistência totalmente diversas da intransigência e da impassividade, justamente porque “a identidade de um ser humano não é fixa, não é parada”. Na pessoa de meu pai, afeto e sensibilidade se manifestavam como uma forma exemplar de força. Fraco, ao contrário, seria quem precisa “abafar as emoções” para não ser destruído por elas.
Em segundo lugar, dele também recebi certa noção de símbolo. Na filosofia, o pré-socrático Parmênides é chamado (por Platão, por exemplo) de “pai”, no sentido de haver sido o formulador do princípio supremo da racionalidade: o princípio da não-contradição, dizendo que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ora, um dos livros de papai tem justamente esse título: Ser e não-ser: sob o vértice de “O”, em que “O” designa, no vocabulário de Bion, a “realidade última”. Seria meu pai, ele próprio, um suspeito desse “parricídio” - para mais uma vez evocar uma expressão de Platão, no diálogo O sofista - que consiste em destruir o princípio da racionalidade em nome, no caso de papai, de um misticismo que a tudo cala em proveito de uma contemplação passiva da transcendência inefável? Haveria ele resolvido tão mal, sob a forma de uma ruptura com a racionalidade, esse conflito edípico no seio da cultura filosófica do Ocidente? Vejam, eu mesmo briguei bastante com ele sobre esse ponto, principalmente durante o início de minha graduação em Filosofia. E hoje minha resposta a essas perguntas é um tranquilo “não”. Pois a razão, quando concebida como uma razão ampliada (une raison élargie, nas palavras de Jean Ladrière, outro de seus diletos professores em Louvain), nos ensina que algo pode sim ser e não ser, até ao mesmo tempo, desde que sob distintos aspectos, em diversas relações, segundo múltiplos sentidos. E essa polissemia, essa aptidão para simultâneas relações e para essa riqueza de aspectos seria, em última análise, a própria essência da função simbólica. É possível, por exemplo, ao mesmo tempo amarmos e odiarmos nossos pais, se cultivarmos em nós essa polissemia terapêutica, que papai praticava no consultório e na vida. Quando há sentido, ele dizia, há sempre mais e mais sentidos.
Por fim, eu queria destacar algo que, em meu sentir, é quase um fio condutor, que liga o jovem teólogo, frei André, ao sábio e nonagenário Antônio Muniz de Rezende: a fé.
Em seu doutorado, chamado Do desejo de sabedoria à fé teologal, concluído e aprovado em 1954, o jovem frei defendia a ideia de que não há uma quebra entre esses dois polos, a filosofia e a fé, porque esta última não é a adesão precoce a soluções mágicas imaginárias, uma espécie de refúgio da ignorância. Muito pelo contrário. “O Senhor é o verdadeiro Sol dos espíritos e pode iluminar nossa alma, aumentando a força de nossa inteligência para colocá-la à altura do objeto, isto é, de Deus”, escreve ele, na conclusão de sua tese. E prossegue: como esse objeto é infinito, “o fiel experimenta uma insatisfação relativa ao modo de conceber: aderindo firmemente, permanece curioso e procura, na esperança de conhecer melhor”. Vejam que notável! A fé é a certeza de que o infinito há de nos manter firmemente curiosos.
Em outra passagem ele escreve: “se, como diz São Paulo, ‘a fé é a substância das coisas que são esperadas’, é porque ela torna presente, em certo sentido e de certa forma, a realidade que esperamos possuir no céu”. Mas, afinal, de que forma e em que sentido a fé torna presente, na vida, a infinitude da qual veio a própria vida e à qual ela retorna? Ora, a vida do papai Antônio nos dá o exemplo: sob a forma da abertura à transformação. Tal fé é, portanto, revolucionária e solidária à “expansão do universo mental”. E ouso dizer que, dentro de certos credos - como acontece de ser, por vezes, o próprio credo psicanalítico -, essa fé é herética e desmascaradora do dogmatismo, mesmo lá onde ele aparece camuflado de um ateísmo supostamente emancipatório. Não por acaso, seu último curso planejado - que ele não chegou a começar só porque não lhe foi permitido dar a aula inicial on-line, a partir de seu quarto no Centro Médico, como ele chegou a propor - teve como um dos títulos provisórios Felicidade: uma ilusão sem futuro?, conotando um questionamento dirigido ao próprio Freud, a propósito das relações entre fé, felicidade e saúde mental.
Há uma frase que papai dizia, inspirando-se, antes, em Bion: “manter os terminais abertos para captar os sinais da realidade última, venham eles de onde vierem”. Ele praticou isso, não apenas escreveu e ensinou. Essa abertura ao infinito, essa fé como douta ignorância - que é a ignorância do sábio, que sabe que sabe tão pouco - não é a autonegação do asceta, nem a covardia intelectual do supersticioso, mas a alegria de quem é grato à manifestação presente do infinito na finitude. A gratidão é para os fortes! E meu pai foi muito… muito forte. E por isso, em casa, cantava todos os dias: gracias a la vida, que me ha dado tanto.