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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.04 

Ode a Antonio Muniz de Rezende

RELENDO BION NA VELHICE POR UMA PSICANÁLISE DE IDOSOS

Antonio Muniz de Rezende1 

1Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). (1928-2023)


Introdução

Hoje, sou mais velho que Bion. Ele nasceu em 1897 e faleceu em 1979, com 82 anos de idade. Eu nasci em 1928, e estou completando 95. Isto significa, de fato, que estou tendo uma chance que ele não teve, de “aprender com a experiência” da velhice, depois dos 80. Por outro lado, neste artigo, vou tentar fazer minha releitura de vários escritos seus, reconhecendo também a possibilidade de uma interpretação diferente da parte de nossos eventuais leitores.

Um primeiro texto bioniano tem por título Learning from experience. Uma experiência de vida, do começo ao fim, a tal ponto, que uma hipótese otimista seria de uma pessoa mais velha ter aprendido ainda mais: não apenas mais velha, mas mais sábia. Isso mesmo sem esquecer o aspecto paradoxal da sabedoria, considerando que “o verdadeiro sábio sabe que não sabe, e por que não sabe”. Neste sentido, os antigos falavam de uma docta ignorantia.

Por outro lado, a cada releitura desse texto, costumo descobrir algum aspecto mais significativo, proporcionando igualmente algum crescimento de minha parte, em função da experiência feita. Aliás, o próprio Bion é o primeiro a reconhecer que “os problemas levantados neste livro dizem respeito fundamentalmente ao aprendizado”. E, logo a seguir, observa que “a prática psicanalítica trouxe uma nova dimensão a esses problemas, principalmente no caso de pacientes com algum distúrbio do pensamento”.

Didaticamente, o autor informa que este livro estuda, com todo o cuidado, as experiências emocionais diretamente ligadas às teorias do conhecimento, especialmente no contexto da clínica psicanalítica. Isto é dito, reconhecendo que mesmo uma pessoa formada com o método filosófico (como em meu caso) nem por isso possui a experiência que um analista adquire no exame dos distúrbios que podem surgir no processo de pensamento. Por outro lado, Bion tem a honestidade de dizer que, mesmo não tendo formação filosófica, pôde, no entanto, contar com a colaboração de seus analistas, John Rickman e Melanie Klein. E, mesmo com alguma experiência a registrar, não tinha muita certeza a respeito da melhor maneira de comunicá-la.

Bion mostra isso nesse seu livro, e continua mostrando em outros, na seguinte ordem:

  1. Learning from experience.

  2. Second thoughts - (mudança de nível e de vértice).

  3. Caesura: a crise da meia-idade.

  4. Transformações.

  5. Atenção e interpretação.

  6. Cogitations.

  7. Trilogia fantástica.

  8. Conferências brasileiras.

Capítulo 1

Aprendendo com a experiência (Learning from experience)

1.

Dito de maneira bastante coerente, o que é aprendido com a experiência é repensado com a ajuda da própria experiência, principalmente em função das grandes mudanças que ocorrem ao longo da vida, na “crise da meia-idade”, mas sobretudo no “balanço da velhice”.

Semelhante cesura conota transformações significativas, sugerindo novas interpretações, em função de uma atenção mais séria e profunda. A consequência, para Bion, será mesmo uma nova maneira de pensar (com emoção), permitindo até mesmo uma atitude quase “lúdica” na Trilogia fantástica.

Daí também alguma dúvida acerca da melhor maneira de o autor comunicar-se com seus eventuais leitores. Uma primeira hipótese seria pensar principalmente nos candidatos em formação. Mas Bion acha meio esotérico limitarmo-nos a esse contexto, e começa a falar de um universo maior, em expansão, dentro do qual também o leitor é convidado a ir mais longe.

Pessoalmente, permito-me enfatizar a perspectiva de um universo em expansão, relativamente a mim, mas também ao próprio Bion. Nas palavras de Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode suspeitar a nossa vã filosofia”… e a nossa vã psicanálise.

1.2.

Como se pode ver, Bion não deixa de fazer alguns comentários sobre sua maneira de trabalhar, “levando em conta o contexto”. Um contexto mais amplo, que também os leitores deverão levar em conta, sem se limitarem a um determinado significante, já conhecido e interpretado na práxis cotidiana. E ele dá o exemplo dos termos “função” e “fator”, tais como usados na matemática. A esse propósito, também eu publiquei um livro, intitulado A identidade do psicanalista: função e fatores. E, num outro, com o título de O paradoxo da psicanálise, uma ciência pós-paradigmática, enfatizei as características da psicanálise bioniana, em face de outras ciências.

Aliás a noção de paradigma tornou-se ainda mais atual no contexto epistemológico das ciências paradigmáticas e pré-paradigmáticas. O “pós-paradigmático” acabou virando uma característica do mundo pós-moderno, sem consistência, a cujo respeito Zigmunt Bauman não deixa de evocar os três estados da matéria: sólido, líquido e gasoso. Aos poucos, fomos chegando a um mundo líquido, inconsistente, com sinais de já estarmos passando para um mundo gasoso, “nas nuvens da informática”.

Bion não pôde atingir esse ponto, mas eu estou atingindo, coerentemente com ele, quando afirma que “o objetivo deste livro será alcançado se o leitor tentar ir mais longe que o autor”. É o que estou tentando fazer, a convite do próprio Bion, e em atenção a meus eventuais leitores. No sentido não apenas de facilitar-lhes a leitura, mas de torná-la ainda mais rica, se possível. Bion acaba reconhecendo que esse não deixa de ser mais um sinal de bom texto - cuja leitura enriquece o texto original, até porque “um texto sem leitores é significativamente mais pobre”.

1.3.

A respeito dos termos “função e fatores”, Bion tem o cuidado de mostrar uma possível relação com o “vocabulário da matemát.ca” (a propósito dos números) e da filosofia” (a propósito das categorias). Mas, honestamente, ele prefere que o leitor perceba a possibilidade de ir além das duas, por exemplo, reconhecendo como “função da personalidade” a “sua maneira de andar” ou a sua “atitude invejosa”.

Em seguida, passa a valorizar a “penumbra de associações”, com base no emprego das palavras “função” e “fatores” por filósofos e matemáticos. E o desafio que aceita é o de ajudar o leitor a perceber o que de fato está acontecendo: quer no sentido estrito (filosófico-matemático), quer no sentido mais amplo da “penumbra de associações”. Um exemplo simples e prático poderia ser o seguinte: um homem está caminhando. Sua caminhada pode ser considerada uma “função de sua personalidade”, mas pode ser vista também em relação com “fatores” tais como o amor que sente por uma moça - ou mesmo a inveja que sente do amigo dessa moça. Em semelhante “função amorosa”, estariam presentes os “fatores” do amor e da inveja. Outra possibilidade seria partir da teoria kleiniana da identificação projetiva.

1.4.

Na metodologia psicanalítica, o critério não é mais o “certo” e o “errado”, o pertinente e o comprovado, mas saber se a realidade favorece ou não o desenvolvimento da personalidade. Eu diria: finalmente, um critério de crescimento em função da aprendizagem. No entanto, isso não quer dizer que seja um critério absoluto. Dependendo das circunstâncias, podemos sentir necessidade de reformular nossas ideias sobre a origem e a natureza dos pensamentos, juntamente com os mecanismos com os quais estão sendo pensados. Neste sentido, a experiência psicanalítica permite também uma retomada da teoria do pensamento.

Com suficiente humildade, Bion reconhece que a metodologia proposta nesse livro não deve ser considerada definitiva. No entanto, isso não o impediu de utilizá-la. “Eu me vi na situação do sábio que continua utilizando uma teoria imperfeita, pelo simples fato de ainda não ter descoberto uma melhor”. Nesse contexto, ele faz uma primeira síntese a respeito das “fontes da experiência”, com as funções beta e alpha… mas sem ainda mencionar a função sigma!

Pois bem, nesse primeiro capítulo de seu livro, Bion desenvolve sua teoria da função alpha e da função beta, dando-me a oportunidade de ir mais longe ainda, no desenvolvimento de uma teoria experimental a respeito da função sigma. E, desde logo, permito-me lembrar que sigma é a primeira letra da palavra symbolon, em grego. Função sigma quer dizer função simbólica.

1.5.

Dito de maneira mais interlocutória: eu tento ir mais longe, mostrando como, de fato, o sentido (semântica) da função sigma já estava presente nos textos de Bion, mesmo que essas palavras aí ainda não se encontrassem (semiótica) de maneira explícita.

Ele começa falando da função alpha, tomando cuidado para não ficar limitado relativamente a seu uso. Assim, a liberdade quanto ao uso deixa-nos maior flexibilidade do ponto de vista prático, levando em conta o diálogo entre os diversos autores. E é o que também eu pretendo fazer oportunamente, depois de Bion, passando a falar de função sigma, além das funções alpha e beta.

O termo “função alpha”, de início, é intencionalmente desprovido de significação (semântica). Isso nos leva a examinar de mais perto qual é mesmo seu papel. E eu costumo dizer que tudo fica mais claro dependendo do modelo de que nos servimos. Por exemplo, usando o modelo do aparelho digestivo, podemos dizer que o elemento beta é o que entra e sai, ao passo que o elemento alpha é o que entra e fica. Os elementos beta, assim como urina e fezes, são “coisas” que entram e saem de maneira saudável. Já os elementos alpha entram e também podem ficar de maneira saudável. Ficar não por acaso, mas por vocação: com um papel específico de nutrição. Ficando, o elemento alpha é transformado em nutriente.

E assim surge outro referente importante, com base no tipo de nutrição e de crescimento que se torna possível: não apenas nutriente para o corpo, mas alimento para a alma. Indo além do sensório, Bion passa a falar de uma nova função com novos elementos: a função sigma e os elementos sigma, característicos do nível cognitivo propriamente dito. E a frase que costuma ser citada é bem esta: “intuição sem conceito é cega; conceito sem intuição é vazio”.

1.6.

Dando continuidade ao “pensamento de Freud”, Bion também distingue vários níveis de percepção e, portanto, de conhecimento: o aparelho perceptivo sensorial, o aparelho perceptivo emocional, o aparelho cognitivo intelectual. E é nesse terceiro nível que passamos a falar de conceito e intuição, em termos qualitativos, e não apenas quantitativos. “Intuição sem conceito é cega, conceito sem intuição é vazio”.

E é essa abordagem qualitativa que nos permite estabelecer um diálogo também com Lacan, quando distingue os três níveis do real, do imaginário e do simbólico. ris, de baixo para cima, mas também sir, de cima para baixo. Subindo, nós temos um movimento (ris): com elementos beta, principalmente no nível do real; elementos alpha, principalmente no nível do imaginário; elementos sigma no nível do simbólico.

E no movimento de cima para baixo (sir), nós vamos ter uma transformação do imaginário à luz do simbólico; bem como do próprio real à luz do simbólico. Em outras palavras, a função beta e os elementos beta são passíveis de transformação, tanto à luz dos elementos alpha e da função alpha, como dos elementos sigma e da função sigma - agora simbolizados.

Mas nós podemos ir ainda mais longe, com a ajuda de André Green (e sua crítica a Lacan), para ficarmos finalmente sabendo que também o processo simbólico não é meramente abstrato, mas vivido, na união da representação com o afeto, conotando escolha e ligação, tanto em relação à semântica como à semiótica. Uma coisa é o que está sendo dito de fato, outra coisa, o que o falante está querendo dizer, e nem sempre consegue. Dizer nem sempre é sinônimo de querer dizer, tanto em relação à fala do paciente, como à escuta do analista. E, retomando o que Lacan está sugerindo com a fórmula S/s (Significante, barra, significado), nós entendemos como essa barra de fato significa referência. Esse significante (semiótica) de fato é uma referência a esse significado (semântica) no interior da experiência de simbolização!

1.7.

Tudo isso nos ajuda a entender ainda melhor o sentido simbólico da palavra “compreensão”, como uma “percepção de conjunto”, se possível, de maneira total. Uma tentativa de responder em que sentido há sentido no singular, mas também no plural em que sentidos há sentidos. Essa a verdadeira questão simbólica, entendendo o símbolo como uma “polissemia encarnada, estruturando-se dinamicamente, na dialética da imanência com a transcendência”.

A esse propósito, Bion continua falando de um movimento de K para O, em direção à Realidade Última, com os terminais abertos para captar seus sinais, venham eles de onde vierem. Como se pode ver, a prática de uma psicanálise simbólica tem tudo a ver com uma concepção simbólica tanto da humanidade, como da Realidade Última. E, finalmente, esta acaba sendo uma das principais características (talvez mesmo a principal) da psicanálise bioniana: uma psicanálise entendida como exercício da simbolização, com todas as suas consequências, tanto teóricas como práticas, indo de K para O, mas também de O para K.

Na prática, chegamos ao nível do ser, além do conhecer. E entendemos melhor o que Bion quer dizer com a letra “O”, como primeira letra da palavra “ser”, em grego (on-ontos). Uma letra que, em sua simplicidade, pode também ser lida como símbolo do infinito, informe, inominável. O = zero, ou melhor, igual a tudo. O = todo!!

Oportunamente, mais à frente, vou retomar os comentários de Bion (e Freud) a respeito da atenção com vistas à interpretação. E o primeiro comentário importante será sobre uma atenção flutuante, suficiente para perceber os diversos aspectos da questão, de maneira que não sejamos levados a uma interpretação unívoca, característica da posição esquizoparanoide. Em todo caso, desde agora, podemos sublinhar a relação da atenção com a função alfa e, mais precisamente, com a função sigma. No final desse parágrafo, Bion informa-nos que vai dar alguns exemplos - entre os quais eu mesmo privilegio o caso dos idosos.

1.8.

Como é tudo isso em se tratando de pacientes idosos? Bion, depois de Freud, começa falando da “experiência emocional durante o sono”, ao longo da vida. Eu também, levando em conta o que nos é dito sobre outras fases da vida, vou agora comentar a experiência emocional na velhice, com ênfase em sonhos e pesadelos. E, como primeiro exemplo, trago o caso de um paciente idoso, tendo um sonho recorrente, com características de pesadelo, mais ou menos na seguinte estrutura:

Sonhei que estava dirigindo um carro. Sabia aonde queria chegar e tinha quase certeza do caminho a seguir. Mas, à medida que o carro andava, o caminho me levava noutro rumo, a tal ponto, que cheguei a perguntar onde mesmo me encontrava. E, para surpresa minha (pesadelo), acabei chegando a um lugar que não tinha previsto, encontrando pessoas que também não me conheciam. Minha angústia aumentava quando percebia o engano, sem saber como poderia ser a volta.

Como se pode ver, desde a primeira frase, o grande assunto desse sonho é o movimento (de uma caminhada), com a ajuda de um meio de locomoção (o corpo próprio), dirigido pelo próprio sonhador (sujeito-ativo). Mas o tema principal passa a ser o caminho (cf. revista Ide), supostamente conhecido, com alguma “certeza” a respeito do lugar aonde deveria chegar (destino). E, no entanto, o sonhador teve a impressão de que o caminho o levara noutra direção (destino), a tal ponto, que ele próprio já não sabia muito bem onde se encontrava. De fato, e surpreendentemente, o caminho o levou a outro lugar (destino), onde havia pessoas igualmente desconhecidas (outros). Sua angústia só fez aumentar quando se deu conta do desencontro, bem como da impossibilidade de um eventual retorno.

Nos termos da função sigma, trata-se da relação entre os meios (caminho) e o fim, por meio de uma ação responsável, característica de um sujeito-agente, supostamente consciente, no uso de seu próprio corpo, localizado no tempo e no espaço. E eu me permito lembrar, com Merleau-Ponty, as cinco propriedades de nosso corpo: corpo próprio, corpo sujeito, corpo fenomenal, corpo simbólico e corpo humano.

Outro sonho:

Sonhei que tinha chegado ao local de uma reunião de que ia participar junto com meu filho. Estacionei o carro e fui para a sala de conferências. De repente, fiquei na dúvida a respeito do lugar em que havia estacionado o carro. Fui ver, mas já não me lembrava do lugar exato. Onde eu imaginava que pusera meu carro, havia outro, com outra placa. Fiquei angustiado, sem saber o que fazer, até porque meu filho tampouco percebera meu engano, e não podia me ajudar.

Como se pode ver, o que está em questão é o lugar, como fator de identificação, juntamente com os números da placa, evitando qualquer confusão. Os números da placa são como o nome daquele indivíduo, possibilitando reconhecimento fácil e rápido. Dessa forma, “o carro com suas características” não deixa de representar o motorista ou mesmo o “proprietário com as características que permitiriam identificá-lo”. No sonho (pesadelo), o sonhador se angustia ainda mais, por não poder contar nem mesmo com a ajuda do filho, que, por sua vez, tampouco percebera o engano. Nem o pai nem o filho dispunham de suficientes critérios de identificação.

Outro sonho:

Sonhei que estava dirigindo um carro em direção à universidade. Cheguei e entrei. Mas quando estava lá dentro, me dei conta de que era o prédio de outra universidade. Eu procurava a biblioteca, mas chegava à sala de conferências, cheia de gente que eu não conhecia. E o pior é que o porteiro me disse que, tendo entrado, só poderia sair no fim da conferência, para não atrapalhar os outros ouvintes. Fiquei ansioso e duplamente frustrado, sem saber o que fazer.

Ao falar de universidade, entendemos facilmente a conotação de universo, mais propriamente de universo mental. No sonho do paciente (pesadelo), tratava-se de um universo fechado, que, por assim dizer, deixava o sonhador preso, dentro de seu mundo interno. Preso e obrigado a ouvir uma conferência, do interesse de outros ouvintes - que ele não devia atrapalhar. Outros ouvintes, com outro discurso. O sonhador procurava a biblioteca, com outros livros, mas chegava à sala de conferências com um discurso só, apresentado por um único conferencista. Ele não devia atrapalhar, nem mesmo se retirando. Sentia-se obrigado a ficar num universo fechado, que não o deixava à vontade.

E eu não deixo de pensar nos versos de Carlos Drummond de Andrade: “Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo … seria uma rima, não seria a solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração”. Evidentemente, aqui também se trata de um mundo pequeno, apertando meu coração, que fica angustiado, sem espaço.

Outro sonho:

Sonhei que ia dar uma conferência sobre um assunto que me interessa muito. Quando cheguei na sala, fiquei surpreso com o número de pessoas presentes: a sala estava lotada. Só que, quando comecei a falar, percebi que estava sem voz. Por mais que me esforçasse, minha voz parecia mais um gemido soprado. Com a frustração de todo o mundo, desisti … e acordei gemendo!

Sem voz, o sonhador sentiu-se incapacitado de comunicar-se com um número maior de interlocutores. O que estava em questão era provavelmente uma imagem idealizada de si mesmo, a ponto de não ter uma voz correspondente à situação igualmente idealizada. Idealizando o auditório, o sonhador ficou com a impressão de que não tinha voz para atender à expectativa dos ouvintes. Idealização do auditório, correspondendo à idealização do conferencista. Como consequência, em ambos os casos, o sonhador ficou sem voz, protegendo-se, mas também se autopunindo. “Idealização castradora”, por um lado, e, por outro, “Inibição, sintoma e angústia”.

1.9.

Os comentários de Bion relativamente aos sonhos são principalmente a respeito da função alpha, mas eu vou tentar mostrar como, na interpretação desses quatro sonhos, podemos fazer apelo também à função sigma, no sentido de experimentarmos uma expansão do universo mental em termos de cultura e simbolização, na experiência de situações mais ricas em significação. Um desafio para o sonhador, mas também para o intérprete analista.

Exagerando muito, podemos perguntar como seria o sonho de um grande cientista ou de um grande artista. Pensemos em Einstein e Van Gogh. Talvez fosse mesmo preferível pensar num romancista poeta, como Guimarães Rosa. “A terceira margem do rio” é um excelente exemplo de elementos sigma na produção, e de função sigma na interpretação! E, na cultura universal, temos o belíssimo exemplo de Sidarta, com os comentários de Hermann Hesse. No cinema, dois filmes mais sofisticados, mostrando a passagem de uma função para outra: Tigre branco e Coringa.

Capítulo 2

Second thoughts

Começando a rever: Second thoughts… “Pensando e repensando melhor”: Mudança de nivel e de vértice, expansão do universo mental, de K para O.

Capítulo 3

Mudança catastrófica

“Cesura”: crise da meia-idade” e “mudança catastrófica mais tarde na vida”.

No meu caso, a crise da meia-idade aconteceu em 1968, com a revolução militar no Brasil. Eu tinha 40 anos e me sentia movido pela pulsão de vida. Agora, com 93 anos, a crise do fim está acontecendo junto com a pandemia e um inevitável confronto com a pulsão de morte.

Nota: Dr. Rezende não pôde terminar suas observações a respeito dos capítulos seguintes: Transformações, Atenção e interpretação, Cogitations - Meditação, Bion no Brasil, Com Bion hoje. Ele deixou esse legado, um pouco antes do seu falecimento, para Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci, editora da Ide.

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