A verdade, senhores ouvintes, nunca é certa - Vamos espiar atrás da cortina!
(Atwood, 2020, p. 95)
A odisseia de Ulisses foi escrita não somente por Homero, pois originalmente o material era mítico, oral e também local, além de existirem outras versões e leituras particulares. Costumamos considerar a dimensão de tal travessia diante do périplo vivido por Ulisses/Odisseu - e como este nos contagia - ao nos aproximar de nós mesmos em direção a Ser.
Ulisses retorna a sua terra natal depois de dez anos, e, nesse percurso, sua ausência teve como estímulo a guerra impetrada pelo rapto da bela Helena, que curiosamente não é personagem de destaque nos quase 15 mil versos do poema. Destaco, a princípio, duas figuras femininas: Penélope, a inspiradora da Odisseia de Ulisses e seu retorno, e Helena na Ilíada, causadora da guerra de Troia, e pergunto: de qual guerra de fato falamos e que tanto interesse desperta? Seria uma curiosidade sobre essas mulheres enigmáticas e o que elas representam, epíteto para a ofensa do narcisismo ferido? Seria a manutenção da guerra sexual diante de seus domínios e temores? E qual retorno reiteradamente proclamamos, em verso e prosa? O convite é para pensar nas experiências narradas que a epígrafe evoca, levando em conta mais a existência de sonho dentro de uma realidade psíquica imaterial, e menos de uma realizada ação acontecida de forma factual.
Com Penélope e a odisseia do feminino interminável, parto da chegada de Ulisses a Ítaca, quando ele ordena exterminar, além dos pretendentes, as 12 serviçais de Penélope (Atwood, 2020). E incluo Freud (1937/2018) nessa caminhada. Naquele momento ele considera que “desde o início seria o repúdio à feminilidade … a descrição correta dessa notável característica da vida psíquica dos seres humanos”, tanto na mulher quanto nos homens. Característica tão rejeitada quanto seguidamente desejada.
Privilegio aqui a expressão “repúdio ao feminino” mais que “repúdio à feminilidade”, que me parece também ter sido a ideia desenvolvida por Freud, mesmo que tenha utilizado o termo “feminilidade”, um adjetivo substantivado. Feminilidade é mais condizente com as qualidades do feminino do que com sua função, que é como pretendo desenvolver essa odisseia de Penélope, a que tece: o feminino interminável, através de mares por nós navegados, mares reveladores de nossa incompletude e desamparo, eterna busca/retorno às origens de nós mesmos.
I.
Penélope (II)
A trama do dia
Na urdidura da noite
Ou a trama da noite
Na urdidura do dia Enquanto teço:
A fidelidade por um fio.
(Marques, 2021, p. 105)
Penélope muitas vezes é considerada a valente e representante mulher/ esposa perfeita e fiel, que espera e preserva o reinado do marido sobre si mesma e sobre suas terras, encontrando meios ardis para ter sucesso em seu intuito de receber o pai de Telêmaco de volta. Ela tece a mortalha do sogro Laerte e a desfaz todas as noites, astuciosamente, prorrogando dia após dia a entrega do reinado, não se casando com nenhum de seus pretendentes. De que fidelidade, de fato, estamos falando?
Considero que necessitar do outro e estar sujeito ao outro nos compõe e, em contrapartida, promove a rejeição ao feminino por nos lembrar que somos precários e indigentes de amparo, tão bem expresso nesse fazer e desfazer contínuo, diário e interminável que nos constitui humanos.
Essa é a precariedade originária, perigo inominável, justo o que nos constitui como humanos. Antes de nos tornarmos Édipo com a angústia de castração, deparamo-nos com o desamparo, com a angústia de aniquilamento, com estarmos passivos diante da força traumática do mundo pulsional. Sermos receptores, sermos penetrados, sermos depositários do desejo do outro, sermos aquele que acolhe. Esses atributos emanam da essência do feminino. Com isso albergamos, em nossas origens psíquicas, no acontecer do encontro pulsional com nossa disposição feminina originária, o germe da vida e da morte. (Paim Filho, 2014, p. 7)
Ulisses retorna pelas águas marítimas (O mar, La mer, em francês, feminino) às suas origens. O que o fragiliza prolongando esse percurso? As primeiras experiências aquáticas no útero materno e as angústias de aniquilamento, provenientes da cesura do nascimento e do encontro com a incompletude?
Quando se está aprisionado, sem contenção, a plenitude narcísica se arvora como defesa imperiosa de ser semelhante aos deuses, em constituir-se pleno, e a ação/reação domina como expressão somática contra o sentimento de estar sujeito ao “germe da vida e da morte”. “O retorno manifesta necessidade de pertencimento, de referências estáveis e estabilizadoras” (Matos, 2021, p. 12) nesse eterno regresso ao feminino, na busca por integrar na psique seu elemento continente, portador do destino, do amparo/desamparo e da vida/morte.
Segundo Olgária Matos (2021), os gregos consideravam a ideia de limite como a sua maior invenção, diferentemente da modernidade que a vê como limitação e privação. Quais os limites que Penélope e Ulisses apresentam? Ecoa em mim que as noções de limite são distintas sob o vértice feminino e sobre o masculino, pertencentes às duas funções de forma específica e propriedades particulares. Sendo assim, contenção, fronteira e proteção são próprias da função feminina e barreira, interdição e segurança, próprias da função masculina da mente.
Qual a segurança/insegurança de Ulisses ao chegar como mendigo à sua terra e depois eliminar os pretendentes, bem como as serviçais de Penélope? O que o acometeu? O que elas sabiam que ele não suportou saber?
II.
Penélope:
E agora, cara ama, a banha está no fogo -
Ele me matará por satisfazer meu desejo!
Enquanto ele se divertia com ninfas e beldades,
Pensava que eu não faria nada além do dever?
Enquanto ele satisfazia moças e deusas à vontade.
(Atwood, 2020 p. 96)
Incomoda-nos Penélope tornar-se humana, infiel, falível e necessitada como Ulisses. Esse incômodo seria para a manutenção da mãe incondicional que alimentamos na nossa idealização? Essa humanidade nos aflige, pois, narcisicamente, esperamos que alguém alimente nossa onipotência: a bravura do retorno, não a insegurança presente e a espera submissa, não a receptiva dos limites humanos.
Na guerra entre gregos e troianos, a Ilíada nos apresenta essa faceta receptiva dos limites humanos. Aquiles, por exemplo, se torna feminino quando atende as súplicas de Príamo, pai de Heitor, que beija suas mãos - único beijo presente em ambos os poemas (Junqueira Filho, 2021, p. 38) -, devolvendo o cadáver do filho para ser pranteado. Interagem em si as duas funções, feminina e masculina, de contenção e segurança, instaurando a ordem, legitimando a função masculina. Aquiles também se rende aos pedidos paternos, aceitando-os para acudir o solene enterro do filho Heitor, exercendo as duas funções, com liberdade, para viver os desígnios humanos da vida. Há quem considere que esta foi a morte de Aquiles, mais do que a flecha certeira de Páris em seu calcanhar. Diferentemente desse olhar, considero, em meu olhar, que a vida foi enfim vivida, em uma bissexualidade psíquica integrada, com harmonia entre a segurança e a compaixão.
Penélope (III)
De dia dedais.
Na noite ninguém.
(Marques, 2021, p. 125)
Se Odysseus em grego significa “ninguém” (Matos, 2021, p. 16), podemos aventar que, depois do luto da Guerra de Troia, a Odisseia da volta - constante retorno - é carregada de perplexidade, por conter a vida prática da observação, algo próprio de nossa função psicanalítica, quando afeita ao desconhecido que nos interessa. Quem somos? Quem queremos nos tornar? Conseguiremos ser nós mesmos?
Odisseu é posto à prova nos vinte anos em que esteve ausente. Apaixonouse, envolveu-se, lidou com seduções mortíferas, mas queria voltar. Desfigurado pela deusa Atena para entrar incógnito em Ítaca, Odisseu volta como um zé-ninguém, um mendigo, e precisa lutar para que a herança deixada possa enfim se tornar sua.
São esses os nossos desígnios, o nosso legado na vida: o navegar da volta às origens de um casal parental internalizado para realizar uma bissexualidade psíquica integrada. Continente e conteúdo, distintos e unidos, para poder existir, sempre renováveis, inalcançáveis em enigmas.
A Odisseia de Penélope e o feminino interminável ficam destacados no tempo e espaço, nos fatos e sonhos, na cultura e na atualidade, que se encontram em emoções que se tornam ideias que os reapresentam, em sua complexidade, nesse eterno vir a ser.
A odisseia é atual, seja com nós mesmos, seja com nosso diferente, o outro.
Com o que Ulisses depara, na volta ao lar, que precisa matar seus desafetos e as acompanhantes da mulher? O que ele não pode saber que está envolto no passado, que atrapalha seu desejo de viver o presente, sem poder tolerar, sem conter o desconhecido que o impede de preencher um vazio que em si mesmo se constituiu?
E Penélope construiu um espaço interno nessa lacuna? Ela o aguardou em esperança silenciosa, no tecer e desmanchar diário, quando a noite a atingia em sonhos/pesadelos?
A cesura e o tempo/espaço
O depois pode ter sido o antes, que se tornou depois, depois do agora. E depois? Pode ser o agora. Que se tornará em antes para se atualizar num durante para se transformar num depois. (Perrini, 2011, p. 120)
O espaço/tempo construído e desfeito por Penélope contém uma fidelidade amofinada no presente, envolta pela ausência nostálgica de um luto que não pode ser feito, num tempo composto por cesuras. Ulisses sabe estar vivo. O desconhecido de Penélope se faz presente na construção de um espaço que ela espera, amotinada por conflitos internos e externos.
A tolerância à ausência do objeto é a única origem do pensamento simbólico e sua condição de desenvolvimento. Bion (1962b) fundamenta a teoria do pensar nessa origem, mas a entende de uma forma emocional, como experiência centrada na frustração, cuja complexidade se espraia no espectro da dor psíquica… As transformações decorrem da maior ou menor tolerância a essa ausência/frustração/dor psíquica. (Chuster, 2021, p. 137)
O que houve na ausência de Ulisses que ele não suporta e cujo existir busca eliminar? Ulisses não abriga no espaço de seu desaparecimento o seu ser, recusando o feminino potencial e desamparado. Ele ordena onipotentemente eliminar as mulheres, causadoras de seu desastre psíquico, que se reedita no agora, mas que já estava no antes, no durante e no depois. Ulisses funcionou de modo primitivo, agindo mais do que pensando. Diante do material radioativo do desamparo (conteúdo), sem continente para acolhê-lo, não pôde trilhar um caminho na relação continente ↔ contido para assim examinar as diversas possibilidades que poderiam se abrir. O desastre da guerra e sua catástrofe em perdas está contido no drama da volta, que nada vale se não tiver sentido. Esse drama permite que possamos pensar, sonhar reescrevê-la, imaginar e criar o agora para o amanhã… interminável, que se tornará depois e hoje novamente, num suceder de criações na travessia da vida. Do conhecido para o desconhecido, infinito, inominável.
Reencontro, reconhecimento e renovação
Penélope:
E então se sentam
lado a lado
para que ela lhe conte
a odisseia da espera.
(Marques, 2021, p. 142)
Se consideramos a Ilíada como a onipotência e a Odisseia, o desamparo, ambas não poderiam ocorrer separadas uma da outra (Trachtenberg, 2022). Na primeira, a guerra é a representante da virilidade narcísica que culmina com a morte heroica em busca de glória eterna; na segunda, a busca de autoconhecimento possibilita viver a humanidade sentida como humilhação.
Cada passo precisa ser conquistado e envolve sua humilhação, com a quebra desse orgulho e onipotência, o reconhecimento da dependência dos vínculos familiares internos. Sua realeza é ilusória; a fim de adquirir verdadeira autoridade, ele precisa se humilhar… (Williams, 2021, p. 91)
Retornar ao seio familiar é um momento frágil, delicado, que requer força e ternura. Não é um simples reencontro, mas um momento de grande turbulência emocional. Penélope demora a reconhecer Ulisses, eles precisam se casar de novo, e, no movimento final, depois de uma conversa enfim tranquila, ele a chama de “coração de ferro” (Williams, 2021), denominação a ele atribuída, reconhecendo o masculino internalizado em Penélope, não mais de sua exclusiva posse. No teste da cama, ela “redescobre o marido de forma antiga e nova” (p. 97), alcançando seus sentimentos mais íntimos - próprio do feminino -, confinados e encobertos por tanto tempo, integrando o masculino e o feminino em si mesma, em uma bissexualidade psíquica que lhe permitiu chorar.
No momento em que Penélope o reconhece, ela o aceita “como aquele que corresponde à sua imagem mais íntima de marido” (p. 97), e ele também pode chorar, femininos se tornam, ambos em mútua aceitação do desamparo e fragilidade, e renunciam a arroubos onipotentes heroicos de quem é mais ou melhor.
Penélope (IV)
E ela não disse
já não te pertenço
há muito entreguei meu coração ao sossego
enquanto seu coração balançava em viagem
enquanto me consumia
entre os planos da noite
você percorria distâncias insuspeitadas
corpos encantados de mulheres com cujas línguas
estranhas eu poderia tecer uma mortalha
da nossa língua comum.
E ela não disse
no início ainda pensei em você
primeiro como quem arde diante de uma fogueira apenas extinta
depois como quem visita em lembrança a praia da infância
e então como que recorda o amplo verão
e depois como que esquece.
E ela também não disse
a solidão pode ter muitas formas,
tantas quantas são as terras estrangeiras,
e ela é sempre hospitaleira.
(Marques, 2021, p. 134)
Mais que humilhação, o sentimento de aceitação é um dos mais nobres e complexos da função feminina da mente, por nos remeter à vivência primordial de sujeição diante de uma mãe insubstituível, do amparo/desamparo irrefutável e próprio dos limites femininos da contenção, fronteira e proteção. Esse movimento é o que nos permite Ser.
Ulisses
Escuta:
a odisseia da volta
está escrita
na chama de seu olhar. (Perrini, 2015)
Com ênfase no vínculo que a psicanálise convoca entre permanência e separação é que se constitui a relação com nós mesmos e com o outro. O encontro pode ser um reencontro no qual o reconhecimento da diferença e da cumplicidade possam coabitar.
Implica enfrentar paradoxos e contradições, encarar problemas insolúveis, alcançados os limites do conhecimento, conviver com esses limites pelo tempo que for necessário, para que novas variáveis surjam e criem novos espaços para pensar. (Chuster, 2021, p. 142)
Esse é o fulcro da observação psicanalítica, iluminar a luta cotidiana pelo autoconhecimento, a épica absolutamente única de cada um de nós na viagem da vida, oscilando entre esses dois polos, nasci-sismo e social-ismo. É uma encruzilhada e um caminho a ser percorrido; comporta a tomada de decisão e, em decorrência, leva a assumir as consequências por outros caminhos não trilhados. (Scappaticci, 2021, p. 4)
Defrontar-se com incertezas intermináveis - ser potente - sem conferir dominação nem submissão, mas sujeitos da própria vida, sem expiação ou compensações indevidas. Vir a ser, tornar-se nessa incansável busca que compõe a nossa incompletude nascente de mistérios e outras realidades próprias do não entender e mais imaginar do que saber. Ser real para perceber as Penélopes que somos, nessa tecitura noturna e diurna dos sonhos. Um caminho a seguir.
Há uma noite para os jogos
e uma para as lutas
uma para os raptos
uma para os ritos
uma para o erro
uma para o êxtase
Penélopes são todos os amantes
destecendo de noite
o que tecem de dia
na noite do poema
outra noite
se anuncia.
A outra noite.
(Marques, 2021, p. 72)