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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.06 

A odisseia entre feminino e masculino

PANDORA, A PRIMEIRA MULHER

The first woman, Pandora

Raquel Efraim1 

Psicóloga clínica e mestre em filosofia (PUC-SP)

1Psicóloga clínica e mestre em filosofia (PUC-SP). São Paulo


Resumo

O presente artigo intenta discorrer sobre a figura de Pandora, a primeira mulher, mãe da raça das mulheres. Introduzida pelo próprio Zeus como castigo para toda a humanidade, Pandora é a porta de entrada para os males do mundo. Linda e virgem, surge como consequência ao roubo do fogo, cometido por Prometeu, e é responsável pelo fim da fraternidade entre o par original, os homens e os deuses, assim como pela ruptura do homem consigo mesmo a partir da introdução da sexualidade e, por conseguinte, a instauração da incompletude e da assimetria entre o eu e o outro.

Palavras-chave: feminino; antiguidade; ambiguidade; Pandora

Abstract

The present article intends to discuss the figure of Pandora, the first woman, and mother of women’s race. Introduced by Zeus himself as a punishment for all mankind, Pandora is the gateway to the evils of the world. Beautiful and virgin, she appears as a consequence of the theft of fire committed by Prometheus and is responsible for the end of the fraternity between the original pair, the men and the gods, as well as the rupture of man with himself, from the introduction of sexuality and, consequently, the establishment of incompleteness and the asymmetry between the I and the other.

Keywords: female; ancient; ambiguity; Pandora

Pandora, a primeira mulher, semelhante a Atena, nasce da astúcia do deus Crônida; no entanto, é criada pelo deus do raio como castigo à humanidade, punição divina em contrapartida aos ardis do titã Prometeu - que, entre outras benfeitorias, roubara o fogo divino para presentear os mortais. Dentro da moldura cultural da civilização grega arcaica, tudo vem e é dado pelos deuses, desde fenômenos físicos a qualidades abstratas. Os deuses, mais especificamente, Zeus, são os responsáveis pelo destino humano, detêm a existência das coisas boas e más. Assim, criando Pandora, impõe o mal sobre a humanidade.

De acordo com Rosanna Lauriola (2005), a ideia de mal como inevitável para o ser humano espelha o conceito do mal que está profundamente arraigado em civilizações mais primitivas, e também nas duas principais tradições culturais que moldaram a civilização ocidental moderna, a grega e a judaico-cristã. Em ambas as tradições,2 esse conceito é centrado na mulher, que é responsabilizada por todos os males, dificuldades e sofrimentos, Pandora e Eva são portas de entrada para os males do mundo. No entanto, como o foco do presente trabalho encontra-se no vínculo entre o pensamento grego e o desenvolvimento do pensamento ocidental, Pandora parece uma peça-chave para esta reflexão, já que, segundo a cultura grega, dela descendem todas as mulheres.

O surgimento da primeira mulher é descrito por Hesíodo tanto na Teogonia como em Os trabalhos e os dias; na primeira, em apenas duas linhas, a progenitora do que será denominado a “raça das mulheres” é trazida ao nascimento: “A raça das mulheres e toda a feminilidade provêm dela (a primeira mulher)/Dela provém a raça amaldiçoada, as tribos das mulheres” (Loraux, 1994, p. 73).3

A mulher aparece como a maldição enganadora, que atinge como mal e beleza, não apenas o cidadão grego, mas toda a humanidade, ou seja, todos os homens. Sob a aparência de virgem casta - como é descrita na Teogonia -, Pandora nasce, à semelhança dos deuses imortais, para pôr termo à estabilidade em que viviam os homens. Nas duas linhas em que apresenta a mulher na Teogonia, Hesíodo expressou, segundo Loraux, questões essenciais: as mulheres descendem de um tipo feminino, originalmente produzido como Pandora, uma amostra solitária, em contraste com a coletividade que já é um princípio estabelecido da humanidade (nesse caso, o substantivo “humanidade” alude apenas ao sexo masculino). A primeira mulher, portanto, não é mãe da humanidade, mas apenas o é das mulheres, do genos feminino. Dela descendem apenas aquelas que a ela se assemelham; por mais distintas que sejam suas tribos, são parte de uma mesma raça. Ainda de acordo com a autora de Filhos de Atena, todas as questões gregas sobre origem estão enraizadas nesse estado de isolamento feminino (Loraux, 1994).

Nem mesmo a tradição subsequente a Hesíodo, de Simônides a Eurípedes, altera seu relato; a mulher permanece como criação de Zeus, e a raça das mulheres, em sua coesão, continua a ameaçar a unidade da sociedade masculina. Kalón kakón - belo mal -, imagem feminina ambígua que, a partir de Pandora, passa a permear o imaginário masculino, incerto sobre quais as consequências que esse “segundo ser” poderá trazer às suas vidas, pessoal e coletiva.

É válido ressaltar que Hesíodo não utiliza a mesma estratégia em ambos os textos; enquanto na Teogonia o autor se encontra focado em narrar a organização do mundo dos deuses e a separação destes dos homens, em Os trabalhos e os dias a organização do mundo dos mortais está em evidência. Há, entretanto, numerosas indicações de mediação e intervenção dos deuses na vida dos homens. Isso posto, a primeira a mulher aparece em cada uma das obras do poeta de maneira distinta, respectivamente, como a apresentação de uma criação artificial na forma de uma parthenos e como a emergência de uma criatura mista, composta por partes divina, humana e animal.4

Segundo Nicole Loraux, a mulher aparece como um suplemento, algo que foi acrescido ao par original composto por deuses e homens, e é por isso considerada responsável pelo fim dessa fraternidade. Para além dessa ruptura houve ainda outra, mais profunda e significativa: a do homem consigo mesmo, pois a mulher introduz a sexualidade, essa assimetria entre o eu e o outro. A alteridade dos sexos torna problemática a condição dos anthropos,5 põe em xeque a segurança do eu, que se encontra agora em um ambiente díspar, o qual ele não consegue compreender em toda a sua magnitude, já que o ser humano encontra na sexualidade, assim como na morte, sua maior limitação.

Aquela que convenientemente chamamos de “a primeira mulher” nem mesmo é nomeada na Teogonia; nesta, seu caráter é inteiramente descrito por meio de seus papéis, tais quais o mal concebido por Zeus, a imagem forjada por Hefestos, a armadilha estendida para a humanidade e a maldição plantada entre os mortais. Loraux faz uma analogia entre a armadilha que representa Pandora na Teogonia, e a armadilha representada por um enfeite, um adorno, belo e desnecessário; goza de um sublime e constantemente evidenciado exterior, enquanto há apenas um único e discreto indício da existência de uma corporalidade, e nenhuma interioridade. Tanto o véu brilhante utilizado pela deusa de olhos glaucos para cobrir seus protegidos, entre eles, Pandora, como o diadema esculpido por Hefestos, posto ao redor de sua cabeça, somam, segundo Loraux, equivalentes da própria mulher.

A noção de disfarce é uma parte importante do mal que figura a mulher. A palavra kalyptré, véu, provém do verbo ocultar, no entanto, sob o véu de Pandora, tecido pela própria Atena Penitis, não há nada escondido além da própria mulher, já que esta é concebida sem interioridade alguma. Há um brilho misterioso nos adornos que cobrem Pandora: o cintilante véu e as brancas vestes, com brilho prateado, e a luminosa graça (charis) do diadema esculpido, somam atributos para que os homens sejam rapidamente atraídos por essa armadilha. A cor branca é a cor das vestes de deusas e semideusas, como Helena, Calipso e Circe. Geralmente, branco é a cor das aparições oníricas e de figuras de outro mundo, mas também dos vestidos de noiva, portanto, é tão ambivalente quanto aquelas que com esta se vestem.

A primeira mulher é descrita por Hesíodo na Teogonia pelos seguintes versos:

E criou já ao invés do fogo um mal aos homens:

plasmou-o da terra o ínclito Pés-tortos

como virgem prudente, por desígnios do Cronida;

cingiu e adornou-a a deusa Atena de olhos glaucos

com vestes alvas, compôs um véu laborioso

descendo-lhe da cabeça, prodígio aos olhos,

ao redor coroas de flores novas da relva

sedutoras lhe pôs na fronte Palas Atena

e ao redor da cabeça pôs uma coroa de ouro,

quem a fabricou: o ínclito Pés-tortos

lavrando-a nas mãos, agradando a Zeus pai,

e muitos lavores nela gravou, prodígio aos olhos,

das feras que a terra e o mar nutrem muitas

ele pôs muitas ali (esplendia muita a graça)

prodigiosas iguais às que vivas têm voz…

(Hesíodo, 1991, vv. 570 a 584)

Isso posto, pode-se notar que o surgimento da mulher não garantiu a esse gênero um lugar, mas para conquistá-lo o feminino travou uma luta onerosa, que, ainda assim, não lhe garantiu vitórias significativas. Sua descrição ameaçadora, pois extremamente sedutora, fez dificultar-lhe o caminho; afinal, era este o intuito do poeta, exprimir por meio das palavras o que permeava, se ainda não permeia, mesmo que de maneira distinta, o imaginário masculino. Misteriosas e perigosas, como se vindas de outro mundo, portadoras de males infindos, quanto mais oprimidas e controladas, menor seria o perigo por elas oferecido.

Em Os trabalhos e os dias, diferentemente da primeira obra citada, Hesíodo descreve Pandora como a criação artificial que representa a união entre Zeus e Hefestos; o Deus dos deuses elaborou-a conceitualmente e o artífice foi responsável por confeccioná-la. A pedido de Zeus, todos os deuses colaboraram na constituição de Pandora, cada um dos que habitavam o Olimpo favoreceu-a com uma característica; é daí que provém o significado do nome Pandora, que pode ser tanto panta dôra, a que possui todos os dons, como pânton dôra, a que é o dom de todos, neste caso, os deuses. No entanto, na hora de levá-la à companhia dos homens, Zeus deixa de lado os deuses secundários, e realiza ele mesmo a tarefa; segundo Loraux, como um pai que leva sua filha ao altar. Fruto de sua autoridade, a primeira mulher, assim como todas as que dela descenderem, encontrar-se-á sempre sob a proteção do deus Crônida; sendo, até mesmo, parte essencial do mecanismo de poder de Zeus.

Disse assim e gargalhou o pai dos homens e dos deuses;

ordenou então ao ínclito Hefesto muito velozmente

terra à água misturar e aí pôr humana voz e

força, e assemelhar de rosto às deusas imortais

esta bela e deleitável forma de virgem; e a Atena

ensinar os trabalhos, o polidedáleo tecido tecer;

e à áurea Afrodite à volta da cabeça verter graça,

terrível desejo e preocupações devoradoras de membros.

Aí pôr o espírito de cão e dissimulada conduta

determinou ele a Hermes Mensageiro Argifonte.

Assim disse e obedeceram a Zeus Cronida Rei.

Rápido o ínclito Coxo da terra plasmou-a

conforme recatada virgem, por desígnios do Cronida;

Atena, deusa de glaucos olhos, cingiu-a e adornou-a;

Deusas Charis e soberana Peithô6 em volta

do pescoço puseram colares de ouro e a cabeça,

com flores vernais, coroaram as bem comadas Horas7

e Palas Atena ajustou-lhe ao corpo o adorno todo.

Então em seu peito, Hermes Mensageiro Argifonte

mentiras, sedutoras palavras e dissimulada conduta

forjou, por desígnios do baritonante Zeus. Fala

o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou

Pandora, porque todos os que têm olímpia morada

deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão.

(Hesíodo, 2002, pp. 27-29, vv. 59-82)

Da mistura entre terra e água, isto é, de uma terra argilosa - diferentemente do ateniense autóctone que proveio do solo fértil8 -, Hefestos, assim como se torneia um vaso, plasma Pandora. O primeiro elemento que a ela é acrescido, ainda como massa informe, constitui a fala, audén, linguagem humana em potência, e subsequentemente o vigor físico; somente então sua aparência passa a ser delineada. Pandora assemelha-se, em seu aspecto, às deusas imortais, e também a uma virgem casta; a primeira mulher é uma imagem (ikelon), uma cópia sem original. De acordo com Nicole Loraux, a palavra “semelhança” nem sempre estabelece uma relação entre dois objetos, ou ainda, uma relação de conformidade entre uma imagem e seu modelo, mas frequentemente antevê o conceito platônico de mímesis, composto por identidade e participação, que caracteriza o parecer verídico, e permite ao homem orientar-se em um mundo de signos. A mulher, segundo Deleuze, é um simulacro no sentido de que o simulacro põe em questão as noções de cópia e modelo (Loraux, 1994). Ela aparece como a imagem de uma virgem, e desta forma é entregue a Epimeteu, como uma gyné parthenos, uma esposa virgem, ou seja, em uma forma aparentemente problemática, pois na língua grega os significados das palavras gyné e parthenos9 são normalmente opostos.

No entanto, a virgindade de Pandora está atrelada ao fato de ela ser um presente maléfico, sua periculosidade advém, primeiramente, da suposta pureza e inocência contidas nessa qualidade. Não há nada mais ambíguo no mundo mítico do que a parthenos, que combina e incorpora todas as proibições da feminilidade, e ainda, por vezes, vincula-se à morte, uma vez que traz em si a condição de mortal e o tormento da sexualidade não realizada. Segundo Lafer (2002), tanto na Teogonia quanto em Os trabalhos e os dias, a mulher carrega consigo mais poderes de destruição do que de fecundidade, “A figura feminina traz a polaridade Eros e Thánatos quase por um processo mimético por que passou a partir de Afrodite e também de Atena” (Hesíodo, 2002, p. 69), como acima descrito nos versos de Hesíodo.

Ambas as deusas estão significativamente presentes na constituição de Pandora; enquanto a primeira é ligada a Eros desde o seu nascimento, e, sendo assim, patrocina os atos amorosos e une os elementos mais opostos, a segunda, deusa virgem e guerreira, é vinculada às Érides (Lutas) - a érides boa, representada pelo epiteto Ergané de Atena, é obreira, industriosa, e a má é a da Guerra;

Afrodite e seu Eros é a forma de ligação ambígua que une opostos, tentando misturá-los, reduzi-los à unidade, enquanto Atena e sua Éris é uma separação que força à dualidade. Afrodite associa o tema do amor ao da morte, já que a perpetuação da espécie implica a morte. Atena se forma a partir da Métis, modo de sabedoria, mas também de habilidade que têm os homens nos trabalhos guerreiros e nos de artesanato. (Hesíodo, 2002, p. 69)

Entre os perigos que representam as mulheres encontram-se essas duas potências, que são evidenciadas nas deusas Atena e Afrodite, a dissociação e dissolução. Tanto a união plena, simbiótica, quanto a segregação levam o homem a perder-se de si, ou pelo menos é este o seu temor; desviados de sua razão, perdem de vista a autoconservação - já que ambas, dissociação e dissolução, não favorecem nem a continuidade do indivíduo nem a da própria espécie. São infelizes aqueles que se deixam levar tanto quanto aqueles que negam a experiência. Cabe aqui porquanto uma breve referência ao nobre Ulisses, aquele que se deixou perder para poder encontrar a si mesmo.

Atena é a responsável por adornar e cingir Pandora, como se faz com as noivas; a deusa intervém fixando todas as armas de sedução, ao lado de Hefestos, pois é deusa da métis, ou engenhosidade, astúcia. O vínculo entre Atena Parthenos e Pandora reforça a natureza virginal que a constitui. Atena adorna-a para torná-la bela ou perigosa, o que, no fim, segundo Loraux, são coisas equivalentes. Dessa forma, a deusa de olhos cinza prepara a primeira mulher para os regimes de dominação de Afrodite; sob o véu da pureza está escondida a dominação, sob o exterior belo e sedutor, o ardil. Como dom, ensina-lhe os trabalhos e o complexo ofício da tecelagem, “Pandora é o produto das habilidades dos deuses e também os imita à medida que aprende suas artes” (Hesíodo, 2002, p. 67). No dom ofertado por Atena, a mulher encontra uma forma de atuar no mundo, já que perante a ameaça que representa, quanto maior domínio que se tiver sobre o genos feminino, mais segura estará a “humanidade”.

A Afrodite cabe a tarefa de rodeá-la de “graça, desejo cruel, e cuidados que amortecem os membros” (Hesíodo, Os trabalhos e os dias, vv. 65-66, citado em Loraux, 1994, p. 83), entretanto, a deusa se faz presente por intermédio de suas fiéis acompanhantes Charis e Peithô - Graça e Persuasão. Na evocação do desejo cruel está inserida a alteridade; de acordo com a teoria psicanalítica, o desejo é o responsável pela distinção entre o “eu” e o “outro”. Segundo algumas vertentes da psicanálise, é com base no desejo que o sujeito inicia o seu processo de individuação; por querer intensamente o outro que não pode ter, pelo menos não de maneira simbiótica, percebe-se diferente e passa a ter de lidar com a sensação de incompletude que constitui o ser humano.

Hermes, o mensageiro Argifonte, mestre do senso de oportunidade, é quem coloca no peito desse novo ser o espírito de cão e a conduta dissimulada, e a estes acresce, como um artifício a mais em seu dom, as mentiras e as sedutoras palavras. A linguagem realizada (phonén) é também um elemento no exercício da sedução.

Diferentemente da Teogonia, nessa versão do mito a mulher possui uma interioridade, e nesta está escondido seu quinhão animal. Pandora, a criatura mista, participa pela aparência da natureza divina, pela fala e pela força da natureza humana e pela mente canina da natureza animal. Nela estão inscritas todas as tensões e ambivalências que marcam o estatuto do homem, entre animais e deuses (Hesíodo, 2002, p. 71; Vernant, 2004, p. 192).

Após todo esse processo de criação, a primeira mulher é enfim nomeada. Nessa versão do mito, Pandora traz consigo um jarro. Nele estão contidos todos os males do mundo, enviados pelo astucioso Crônida, certo de que Pandora abriria seu tampo. E assim ela o fez, disseminando por entre os homens toda sorte de sofrimentos, doenças, discórdia, loucura, guerra, tudo o que atrapalha a vitalidade dos homens. Ao perceber o que havia feito, tentou fechar o jarro, no entanto, dentro deste somente havia restado a esperança - élpis. Assim como a mulher, que permanece dentro do oikos, a esperança permanece dentro do jarro. De certa forma a criação de Pandora é retomada nesse episódio, o jarro que carrega é sua própria metáfora; um objeto confeccionado artesanalmente que contém em seu interior os males do mundo, como a própria Pandora. No entanto, os males que dispersa não vêm como punição, pois Pandora já é a punição contra o fogo roubado do Olimpo. O fogo, signo da civilização, tem como contraponto a mulher; esta representa, portanto, a anticivilização, a contracultura, a natureza desgovernada e repleta de prazeres.

Essa nova ordem que tem início com Pandora, último presente dado aos homens pelos deuses, é edificada sob o signo da ambiguidade. Este talvez seja o maior mal trazido pela gyné parthenos, pois com ela surge a possibilidade, ou melhor, a necessidade de escolha.

Sob a proteção de Atena e Hefestos estão os dois nascimentos que dão origem aos habitantes de Atenas e que são celebrados na Acrópole. Erectônio, o autóctone, e Pandora, a primeira mulher, um artifício. Se de Erectônio descendem todos os cidadãos atenienses, dela, e dela sozinha, descendem todas as mulheres, isto é, a raça das mulheres; atenienses e mulheres, estas não têm nenhum vínculo com a cidade, são uma raça à parte, isoladas do todo.

O genos feminino, para Hesíodo, tem uma só função, uma raça para sempre amaldiçoada, a personificação do infortúnio dos homens. Há, no entanto, diversos graus de infortúnio, tantos quanto são as tribos (phyla) que compõe o genos feminino. A raça das mulheres é composta de maneira heterogênea, são muitas as tribos que a constituem, no entanto, há uma unidade que prevalece.

Como um mal necessário, sua existência na vida dos homens é sempre ambivalente. Se decidem por não se casar, findam sozinhos, amargurados e sem descendentes, se tomam em núpcias alguma mulher, devem esperar que a sorte lhes proporcione uma boa esposa, pois com esta podem tentar equilibrar o mal com o bem.

A boa esposa, a mulher abelha ou melissa, como era designada na Grécia Antiga, é aquela que corresponde ao amor e ao carinho que lhe dedica o marido, é aquela com quem se pode realizar um intercâmbio saudável, aquela que vai envelhecer ao lado de seu senhor. Aos cuidados da melissa, a casa floresce, as riquezas do marido multiplicam-se; a mulher abelha garante seu futuro dando à luz diversas crianças. Ela é o emblema de todas as virtudes domésticas, é envolvida por uma graça divina, nunca quer saber demais, não faz perguntas ao seu marido, assim como não se envolve com mulheres com características opostas às suas. A melissa é um modelo.

Contrapondo-se à tradição grega que considera a mulher abelha como modelo de esposa, Hesíodo compara a mulher com o zangão. Essa analogia aparentemente estranha encontra seus fundamentos no fato de os zangões viverem dentro da colmeia, exercendo o seu poder sobre as abelhas, que trabalham para sustentá-los. Fica, portanto, explícito nessa ideia - que despreza a concordância entre artigos e substantivos - que a mulher realiza uma inversão, uma troca de papéis, violando o que seria considerado sua posição normal.

Dela é a funesta geração e grei das mulheres,

grande pena que habita entre homens mortais,

parceiras não da penúria cruel, porém do luxo.

Tal quando na colmeia recoberta abelhas

nutrem zangãos, emparelhados de malefício,

elas todo o dia até o mergulho do sol

diurnas fadigam-se e fazem os brancos favos,

eles ficam no abrigo do enxame à espera

e amontoam no seu ventre o esforço alheio,

assim um mal igual fez aos homens mortais

Zeus tonítruo: as mulheres, parelhas de obras

ásperas, e em vez de um bem deu oposto mal.

(Hesíodo, 1991, p. 146, vv. 591-602)

É perceptível a importância que Hesíodo confere à questão do trabalho; descreve a mulher como um peso a mais a ser sustentado, o ponos, a fadiga, é mais um dos males que saem do jarro de Pandora, se não o próprio mal por ela representado. No entanto, de acordo com Lessa, os textos antigos têm uma tendência significativa e latente interesse em associar a imagem feminina à vida doméstica, distanciá-las das atividades externas e também, das economicamente produtivas, com o intuito de criar uma visão normativa acerca da questão, fazendo-nos crer em uma categoria feminina homogênea - o feminino. A história foi escrita por homens, vale ressaltar, portanto, que estes escreveram-na de acordo com sua própria linguagem, ou seja, a patriarcal.

2 Pandora e Eva, advindas respectivamente das culturas grega e judaico-cristã, são culpadas pelo distanciamento entre homens e deuses, assim como são consideradas a porta de entrada dos males do mundo, isto é, são a personificação do mal. Inúmeras relações podem ser estabelecidas entre essas duas figuras femininas, entre elas, a curiosidade.

3 Tradução livre da autora.

4 “One side is the presentation of an artificial creation in the form of a parthenos, and on the other, the emergency of a mixed creature composed of god, man, and beast” (Loraux, 1994, p. 76). (A palavra beast em inglês pode ser traduzida para o português como: 1. animal, 2. besta (animal híbrido e estéril, normalmente originado do cruzamento de duas espécies diferentes), 3. qualquer animal quadrúpede de grande porte, 4. fera, 5. pessoa bruta. Neste caso específico, a tradução mais adequada pareceu ser “animal”. Essa escolha pode também ser justificada pela versão francesa - p. 80 -, na qual a palavra que aparece é bête, cuja tradução é “animal”.

5 O substantivo anthropos significa “homem”, no sentido de “humano”, não de “sexo masculino”; é normalmente usado em oposição aos deuses ou ao divino.

6 Respectivamente, as deusas Graça e Persuasão.

7 Assim como as Moiras, as Horas formavam uma trindade; Eunômia, Irene e Dique representavam a Disciplina, a Paz e a Justiça na mitologia grega, eram responsáveis pelo fluxo do tempo e as estações. Na sociedade ateniense, no entanto, possuíam outros nomes e também qualidades; Talo, Auxo e Carpo faziam, respectivamente, brotar, crescer e frutificar. Eram frequentemente representadas como jovens graciosas que carregavam flores ou plantas.

8 Segundo Nicole Loraux, o pensamento grego é fiel a essa distinção e, portanto, não reconhece a mulher como autóctone, já que a própria ideia seria em si uma contradição.

9 O termo gyné, cujo plural é gynaîkes, significa a mulher, ou as mulheres. É o contrário de homem, no entanto, é normalmente utilizado como esposa. No plural designa o “sexo feminino”, entendido como espécie. Já parthenos, como anteriormente explicitado, significa virgem, jovem, mulher jovem (s. f.).

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