A moda pode ser superficial, excludente e fugaz, como também ser capaz de salvar vidas do tédio e da massificação diária, ajudando a expressar emoções e ideias próprias. Na sociedade contemporânea, poucas indústrias conseguem ser tão lúdicas e sedutoras quanto perversas e frívolas ao mesmo tempo. Isso porque a moda encontra maneiras de materializar status, poder e posição social do indivíduo desde os primórdios das formações comunitárias e das civilizações. No entanto, é um movimento intrinsecamente coletivo, no qual tudo acontece em cadeia, envolvendo uma enorme sensação de pertencimento. Roupas têm potencial para transmitir emoções, influenciar nosso estado de espírito e fazer com que as pessoas se sintam parte de um todo. Na moda, ninguém é por si só, ela se define por se referir ao conjunto. E é sob essa ótica que analisaremos a trajetória de Gabrielle Chanel, uma criadora vanguardista e controversa, que conduziu transformações radicais no jeito das mulheres ocidentais se vestirem e se comportarem no início do século 20.
Historicamente, os cruzamentos e confluências entre moda, arte e tecnologia unem de forma inseparável os movimentos estéticos à maneira de se vestir. Nos anos que antecedem a passagem do século 19 para o 20, as ideias libertárias e disruptivas do modernismo pairavam no ar. A emancipação feminina criava bases para um novo guarda-roupa e o vestuário das mulheres necessitava de uma verdadeira revolução para acompanhar os acontecimentos da época. Depois de décadas de estabilidade econômica, nas quais a moda feminina na Europa sofreu pouquíssimas alterações, estacionada nos chapéus cobertos por plumas, nos vestidos longos acinturados, nos bordados e brocados, o mundo passou a ser chacoalhado por novos posicionamentos políticos e pela iminência da Primeira Guerra Mundial. Diante desse contexto, o papel e as atividades femininas precisaram ser amplamente revistos.
Nessa época não é exagero dizer que a moda se resumia à França e à Inglaterra e a influência política e cultural dessas duas nações no resto do mundo ocidental possibilitaram uma espécie de hegemonia fashion. Ainda que com atrasos e adaptações, o estilo europeu de se vestir era copiado nos grandes centros populacionais de todo o continente americano, até mesmo, as principais cidades do Brasil. Em Paris, nesse momento, quem estava no epicentro da elite vanguardista inventando moda e despertando o desejo de ser copiada e seguida, era Coco Chanel. Radicalmente inovadora, em tempos de mulheres submissas, ela era a própria personificação da modernidade, relacionando-se intimamente com a vanguarda intelectual e artística local. O sucesso de Chanel foi imenso: seu reinado sobre o mundo da alta-costura durou cerca de meio século.
Entender o poder da imagem foi seu maior mérito. Gabrielle Chanel nasceu em uma família francesa pobre, em Saumur, na França, em 1883. Sua mãe era lavadeira e o seu pai viajava para vender roupas, como um caixeiro. Era um homem distante da família e ligava pouco para os filhos (Chanel tinha quatro irmãos, duas meninas e dois meninos). Quando sua mãe morreu, aos 31 anos de tuberculose, o pai decidiu mandar os filhos trabalharem na roça e entregou as filhas a um orfanato da região, que funcionava dentro de um convento, na abadia de Aubazine. Chanel passou sua adolescência isolada, sentindo-se rejeitada e sozinha, atuando dentro de um sistema de regras extremamente rígidas, estipulado pelas freiras. Sua rotina, dos 12 aos 18 anos, incluía aulas seis dias por semana, missa todas as manhã e orações por horas e horas antes de se deitar. Foi nessa época que Coco Chanel aprendeu a costurar disciplinadamente e com extremo rigor.
Aos domingos, costumavam atravessar a mata para ir à igreja e ficava impressionada com o hábito dos monges, vestidos sempre de preto e branco, com golas e punhos imaculados - estética que seria a base criativa do estilo Chanel. “Há quem pense que luxo é o contrário de ser pobre. Não, é o oposto da vulgaridade”, disse Chanel, em uma entrevista para a revista Time, décadas depois, quando já havia conquistado fama e riqueza.
De fato, a moda contemporânea foi construída com base nos desejos de uma menina órfã. Influenciada por sua infância nesse orfanato, Chanel buscou simplicidade e funcionalidade em suas roupas, evitando os excessos ornamentais que caracterizavam a moda da época. O logotipo com os dois C entrelaçados, hoje um dos maiores sinais de status e ostentação em vestimentas, considerando que a Chanel é a grife mais cara de moda do planeta, vem de um dos vitrais da Abadia. Curiosamente, Chanel acreditava que a elegância não residia na ostentação, mas sim na harmonia das formas e na qualidade dos materiais.
A influência da infância em um ambiente tão austero se refletiu na estética de suas criações, especialmente de seu grande best seller, o vestidinho preto. Chanel buscava simplicidade e funcionalidade em suas roupas, evitando os excessos ornamentais que caracterizavam a moda da época. Assim como o Ford T, produzido em série sempre na cor preta, os vestidos de Chanel propunham uma abordagem minimalista e despojada, baseada no fato de que a elegância pode ser democratizada e está sim ao alcance de todos.
No convento, tudo era austero, nada era doce. O silêncio reinava absoluto. E Chanel sentia muita vergonha de ter sido abandonada, por isso tornou-se uma mentirosa compulsiva. Costumava dizer que seu pai havia ido para às Américas e que voltaria para buscá-la quando ficasse rico. Seu espírito inquieto a levou a Paris, onde ela começou a trabalhar como cantora em um cabaré aos 18 anos. Foi nesse ambiente boêmio que Gabrielle Chanel ganhou o apelido de “Coco”, porque costumava cantar uma música popular chamada Qui qu’a vu Coco dans l’Trocadéro? (Quem viu Coco no Trocadéro?, em tradução livre), que se tornou sua canção assinatura. O Trocadéro era um bairro famoso de Paris na época. O apelido “Coco” provavelmente derivou dessa música e começou a ser usado por seus amigos. Gabrielle Chanel, mais tarde conhecida como Coco Chanel, acabou adotando esse apelido íntimo, que virou uma marca registrada de sua identidade.
Foi nesse cabaré também que ela conheceu seus primeiros amantes e foi alçada ao convívio da juventude aristocrata do eixo Londres-Paris. Nunca se casou nem foi assumida oficialmente por seus amores da juventude. Mas foram eles que abriram os horizontes para que ela se tornasse uma estilista requisitada. Um dos casos mais conhecidos foi seu romance com Arthur “Boy” Capel, um rico empresário britânico por quem ela ficou loucamente apaixonada. Foi ele que a ajudou a abrir sua loja de chapéus parisiense em 1910, bem como a boutique Deauville em 1912.
Embora no início Chanel fosse financeiramente sustentada por Boy Capel, mais tarde ela fez questão de devolver a ele cada centavo. Para ela, era quase um instinto de sobrevivência não depender de ninguém nunca, e permanecer livre a todo custo. Capel introduziu Chanel aos tecidos masculinos e ao estilo esportivo, elementos que ela incorporou em suas roupas femininas, criando uma estética única, unissex e um tanto andrógina.
Outro amor significativo na vida de Chanel foi o duque de Westminster, Hugh Richard Arthur Grosvenor. Seu relacionamento com o duque lhe proporcionou acesso à alta sociedade e ao luxo, permitindo que ela experimentasse materiais exclusivos e técnicas de alta costura. A experiência adquirida durante esse período influenciou seu trabalho posterior, levando-a a criar peças elegantes, porém confortáveis, que se destacavam pela simplicidade e pelo uso inovador de tecidos. Suas roupas permitiram que as mulheres se sentissem confortáveis e confiantes, rompendo com as restrições da moda tradicional que enfatizavam a opressão e a objetificação feminina.
Assim, Chanel rejeitou os espartilhos apertados e as saias volumosas da época, introduzindo roupas mais confortáveis e práticas, que permitiam às mulheres maior mobilidade e liberdade. Quebrando códigos, derrubando fronteiras de gênero para lançar um futuro clássico para a moda, o do “masculino-feminino”, Gabrielle Chanel foi bastante ousada. Roubou o tweed da moda masculina e transformou uma simples malha de jérsei em um material privilegiado; desenhou saídas de praia e lançou a moda da pele bronzeada como sinônimo de um lifestyle esportivo - antes disso, a pele bronzeada remetia ao trabalho rural, visto de forma preconceituosa pelos mais ricos.
Seu estilo minimalista e descomplicado também desafiou as convenções sociais da época, encorajando as mulheres a abandonar o exagero e a buscar uma elegância mais natural. Se nas últimas décadas do século 19 a abundância de tecidos, plissados, drapeados e babados em saiões e saiotes compunham a toalete feminina, no século 20 essa indumentária limitadora perdeu o sentido entre as mulheres que, aos poucos, conquistavam novos papéis na sociedade. A abordagem andrógina de Chanel abriu caminho para uma nova era de moda, na qual as mulheres podiam se vestir de maneira mais livre e autêntica. Em 1926, criou a calça pantalona e muita gente atribuiu a ela a “invenção” da calça comprida masculina para as mulheres. Também foi precursora no corte de cabelo curto, à la garçonne. Moda subversiva, escandalosa e inicialmente muito mal vista, esse penteado marcou os anos 1920 traduzindo audácia, sex appeal e o desejo de cortar laços de opressão aos quais as mulheres vinham sido submetidas há séculos. Por um bom tempo, Coco Chanel não fez nada igual a ninguém. Ela só abriu caminhos.
Ao desafiar as normas de gênero estabelecidas, contribuiu para o processo de emancipação feminina. Impelida por esse mesmo desejo de liberdade, tornou-se proprietária da vila Bel Respiro em Garches, perto de Paris, e ergueu a vila La Pausa, em Roquebrune Cap-Martin, na Riviera. O edifício da 31 rue Cambon em Paris, onde ela montou seus apartamentos, e onde, até o hoje, funciona o escritório central e o principal ateliê da marca.
Ela já era uma das estilistas mais renomadas da Europa quando ocorreu a Segunda Guerra Mundial e foi acusada de ter envolvimento controverso com o regime nazista, o que manchou sua reputação e teve um impacto duradouro em sua carreira. Durante a ocupação alemã na França, Coco Chanel estabeleceu uma relação próxima com um oficial alemão de alto escalão, Hans Günther von Dincklage. Essa ligação pessoal gerou especulações de que ela teria sido uma colaboradora ativa dos nazistas, usando sua influência e conexões para favorecer o regime. Há relatos de que Chanel teria espionado para a Alemanha durante a guerra, embora essas alegações nunca tenham sido comprovadas de forma definitiva e Chanel nunca tenha sido julgada oficialmente por isso.
Após a libertação da França, em 1944, Chanel decidiu se auto exilar na Suíça. Esse foi um período de ostracismo e reclusão, no qual a estilista viu sua carreira sofrer um grande revés. No entanto, em 1954, uma reportagem na Vogue America, escrita por Janet Flanner, ressaltou a influência duradoura de Chanel no mundo da moda e a reconheceu como uma figura icônica do estilo parisiense. Essa exposição positiva ajudou a resgatar sua imagem e a reintroduzi-la ao cenário da moda. Desde então, Coco Chanel começou a reconstruir sua marca e a recuperar seu status de criadora. Lançou novas coleções que rapidamente ganharam popularidade entre as mulheres da alta sociedade e introduziu o tailleur de tweed, que virou febre no final dos anos 1950 e começo de 1960. Naquele momento, novamente o feminismo dava saltos com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e nos escritórios de Nova York, enquanto a pílula anticoncepcional era disseminada e uma atitude mais libertária das mulheres começava a entrar em voga. Esse foi um novo momento de consagração para a estilista que voltou a ter suas criações como verdadeiros objetos de desejo.
Em 1971, aos 87 anos de idade, Coco Chanel faleceu em Paris, marcando o fim de uma era na moda. Sua influência e seu legado estético estão aí até hoje. Chanel é reverenciada como uma das pioneiras da moda moderna, uma mulher que revolucionou o vestuário feminino e criou um estilo atemporal que transcende gerações - enquanto sua relação controversa com o nazismo permanece como um ponto sombrio em sua história, lembrando-nos da complexidade e ambiguidade da vida de uma figura tão influente e visionária.