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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo jul./dez. 2023  Epub 16-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.08 

A odisseia entre feminino e masculino

MALDITA SAIA MULHERES SÃO SEMPRE CULPADAS, DESDE O MITO DO PECADO ORIGINAL1

Damn skirt: women are always guilty, since the original sin myth

Gizela Turkiewicz2 

Helena Cunha Di Ciero3 

2Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo

3Membro efetivo e profa. assistente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo


Resumo:

Este ensaio tem como objetivo refletir sobre a influência da naturalização da violência contra a mulher tanto na construção da sexualidade feminina, quanto do pensamento psicanalítico, incluindo a formação da escuta do analista. Entre recortes literários, clínicos e relatos de vítimas de assédio, as autoras se propõem a tentar compreender um sintoma social que se repete: o silêncio após a violência sexual como formador de sintomas, e a culpabilização das mulheres, que leva ao sentimento de que não merecem ser ouvidas. Consideram que estes são fatores estruturantes de um mal-estar da feminilidade, introjetado e transmitido transgeracionalmente, como uma herança maldita que deixa marcas na subjetividade feminina.

Palavras-chave: feminilidade; violência contra a mulher; escuta psicanalítica; sexualidade feminina

Abstract

This essay aims to reflect on the influence of the violence against women naturalization both in the construction of female sexuality and psychoanalytic thought, including the formation of the analyst’s listening. Among literary and clinical examples and harassment victim reports, the authors set out to try to understand a social symptom that repeats itself: the silence after sexual violence as a symptomformer, and woman blaming, which leads to the feeling that they don’t deserve to be heard. They consider that these are structuring factors of a femininity discontent, introjected and cross-generationally transmitted, as a cursed heritage that marks women subjectivity.

Keywords: femininity; violence against women; psychoanalytic listening; women sexuality

Quando abri a porta o Pedro tinha uma faca, que colou no meu pescoço. Meu grito morreu no estômago junto com o chute que ele me deu. Caí sem acreditar naquele Pedro que arrancou meu vestido, o contato rente da faca queimava a pele e ardia enquanto o Pedro mastigava meus peitos pronto pra arrancar o bico. Ele lambeu minhas coxas por dentro a buceta meu rosto o cu e a língua um pau revirando, entre a reza e o pulo escolhi ficar dura e estranhamente pronta pra morrer. Foi quando o xixi me escorreu as pernas. - Tá mijando em mim, sua porca? Ele arrancou o pau pra fora e fez o mesmo na minha boca. - engole essa, vadia. O gosto morno era azedo. Ele socou o pau até o fundo mais impossível da minha garganta, vomitei. O Pedro ria, disse que arrombadas como eu prestam só pra dar, e olhe lá que tem muita putinha bem mais delícia do que eu em cada esquina. Ele abaixou as calças abriu minhas pernas e meteu com pressa de olho fechado, a cara toda cerrada de gozo e nenhum ódio, o ódio agora era meu. Acabou, e eu melada. O chão de ardósia. O Pedro subiu as calças virou as costas e saiu. (Bei, 2017, pp. 49-51)

A cena é protagonizada e narrada por uma mulher que tem a vida marcada pela violência, que inaugura sua vida sexual e ao mesmo tempo a condena. Por meio da voz dessa mulher sem nome, a autora dá voz a muitas outras, ao nos apresentar uma história marcada por um trauma que culmina na dor irreparável que ela carrega até o fim da vida. Pedro não era um desconhecido, era seu namorado. Ela não estava na rua, estava em casa. Mas ela aprontou? Teve desejo por outras pessoas? Só podia ser puta, queria dar. O estupro é uma condenação pela curiosidade, pelo desejo, pela vida pulsante que brota no despertar da adolescência. Pela fragilidade de ser mulher.

Este ensaio é baseado em fatos reais e qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. As notas pertencem a mulheres anônimas, cujo sigilo está preservado, e ao mesmo tempo revelam experiências tão comuns, tão próximas, que poderiam até ser identificadas. Uma prima, uma paciente, uma amiga. Certamente, não haverá uma única mulher que leia e não se identifique. E essa identificação comum é a dor compartilhada. Mirem-se no exemplo de todas essas mulheres, que fazem parte de nossa clínica, de nossa vida, de nossas lembranças. Que suportam a violência, se resignam e se desvitalizam, serenas, mulheres de Atenas: “Elas não têm gosto ou vontade, nem defeitos, nem qualidades, tem medo apenas” (Holanda & Boal, 1976).

Um crime comum

Apesar de o estupro ser criminalizado no Brasil desde seu primeiro Código Penal, que data dos tempos do Império (Machado, 2016), a lei, escrita majoritária e por muito tempo exclusivamente por homens, sempre deixou brechas para interpretações em que a culpa recai sobre a vítima; com isso, grande parte das mulheres que sofrem agressão sexual não denunciam seus agressores. Atualmente, a expressão “cultura do estupro” é utilizada para abordar as maneiras pelas quais a sociedade culpa as mulheres vítimas de estupro e normaliza o comportamento sexual violento masculino.

Em 2020, veio a público o caso de um homem acusado de estuprar a modelo Mariana Ferrer enquanto ela estava entorpecida.

A vítima, ao testemunhar, torna-se a algoz: as roupas que usava, o lugar que frequentava, sua profissão, o uso de álcool. Não bastou que ela apresentasse provas que continham material genético do acusado, no julgamento é explorada a ideia de um suposto estupro culposo, pois, afinal de contas, “ela provocou” e “ele não teve a intenção de estuprar”. (Alves, 2020)

Na mesma época, o podcast documental Praia dos ossos (Vianna, 2020) reconstrói a história do feminicídio de Ângela Diniz, ocorrido na década de 1970, um crime passional em que o assassino é tratado como celebridade, num julgamento que conclui ter a vítima sido responsável por seu próprio assassinato. O veredicto: legítima defesa da honra, uma lei escrita e interpretada por homens, que nos esfrega na cara que nestes mais de quarenta anos passados entre os crimes, quase nada mudou.

Em 2022, a atriz Klara Castanho, após ter engravidado como consequência de um estupro, optou por doar o bebê. Seu direito ao sigilo foi quebrado por profissionais de saúde que a atenderam e divulgaram a informação, que rapidamente viralizou na internet. Nessa situação, não temos notícias de que o agressor tenha sido julgado, mas, mais uma vez, o julgamento que a sociedade faz da vítima é implacável. Se aborta, é assassina. Se leva a gravidez adiante e doa o bebê, é desumana. Se não divulga detalhes da agressão, quer acobertar alguém. Em todo caso, é puta. Em carta aberta publicada pela atriz, ela diz:

Pensei que levaria essa dor e esse peso somente comigo. … Fui estuprada. … Relembrar esse episódio traz uma sensação de morte, porque algo morreu em mim. … Estava completamente sozinha. … Tive muita vergonha, me senti culpada. Tive a ilusão de que, se eu fingisse que isso não aconteceu, talvez eu esquecesse…

(Splash, 2022)

A escrita deste texto nasceu de uma necessidade: em uma de nossas conversas, que são um misto de cumplicidade entre amigas e supervisão horizontal, nos demos conta de quantas mulheres sem nome deitam-se em nossos divãs, algumas ainda meninas, e revelam a nós e a si mesmas cenas de violência das quais foram vítimas, em busca de um nome para a dor da violação e de que sejamos testemunhas de que foi de verdade.

Não precisamos ir muito longe para perceber que essas mulheres estão também em nossas rodas de amigas, em nossos círculos mais íntimos e todos os dias nos jornais. “Ela dá para qualquer um, maldita Geni” (Holanda, 1978). Maldita Ângela, maldita Mariana, maldita Klara, maldita saia, maldito decote, malditas mulheres sem nome. As falas a seguir estão intencionalmente misturadas, assim como as histórias das pacientes, analistas, amigas e irmãs caminham cruzadas pela mesma maldição.

Esta é nossa tentativa de pôr a psicanálise para repensar sobre o que nos parece ser um sintoma social que se repete, mas acima de tudo é uma resposta a essas mulheres. Bendita a psicanálise, que busca a ressignificação de dores irrepresentáveis.

Duas analistas e os ecos da clínica

Existem verdades que não podem ser reveladas, precisam ser descobertas: (Mouawad, 2013)

“Já te contei que tenho medo de homem? Outro dia saindo daqui minha mãe queria que a gente fosse andando pra casa, mas eu não queria, estava anoitecendo… Sinto que, quando eu passo por homem na rua, eles ficam olhando, mexem, não me sinto segura, nem com minha mãe, ela também é mulher… Parece que tudo mudou de repente quando menstruei, no começo do ano passado, eu passei a sentir que não poderia mais ficar sozinha com um homem adulto”.

Alguns dias depois, a analista caminha ao entardecer, e cruza com três meninas da mesma idade de Bárbara na rua. Andavam muito juntas, com o passo apressado. Seus olhares se encontram em cumplicidade, enquanto ela se lembra de que também já teve 13 anos, amigas que andavam grudadas e o sentimento de que andar pela rua não é seguro para as meninas-mulheres. Lembra-se também da paciente adolescente da semana anterior chegando assustada à sessão. Era a primeira vez que vinha a pé para análise, nunca tinha usado barriga de fora e estava se sentindo bonita naquela terça. Ao descer do ônibus, escuta de dois homens bem mais velhos: “Vou te arregaçar todinha”. Caminha chorando, e chega à sessão como quem acorda de um pesadelo.

A escritora Rosa Montero (2020, prólogo) descreve seu trajeto no metrô a caminho da escola:

Não houve um único dia em que eu estivesse livre de uma mão na bunda, ou de alguém se esfregando em mim pelo menos uma vez nos trajetos. Sobretudo nos primeiros anos, quando eu era menor e mais indefesa… Desenvolvi habilidades de fazer ouvidos moucos para não escutar as barbaridades que jogavam sobre nós quando andávamos na rua. Eu era especialista em mudar de fileira toda vez que no cinema alguém vinha encostar a mão em mim. Tudo isso faz parte da paisagem de minha infância desde os 10 anos. Nós, meninas, éramos como gazelas assustadas tentando escapar dos leões, resignadas diante de uma realidade aterradora e humilhante, mas infelizmente normal.

Por sua vez, as leis da selva são mais respeitosas com as fêmeas que a civilização. As leis do mal-estar da feminilidade estão introjetadas pelas mães, avós e amigas que nos rodeiam, e são transmitidas numa herança transgeracional silenciosa, que de muitas maneiras nos ensina a calar e nos resignar diante das múltiplas formas de violência contra a mulher, como quem entende que são parte inexorável de nossa existência.

Trachtenberg (2017, pp. 77-89) apresenta a ideia de Benghosi de “traumatismo como herança”, que designa situações em que o fato traumático sofrido pelo progenitor é transmitido ao descendente, mesmo sem nunca ter sido mencionado. Para esse autor, há um risco constante de que o traumatismo psíquico sem possibilidade de elaboração psíquica seja repetido durante as gerações seguintes, que são compulsoriamente atravessadas pela pré-história familiar. As gerações futuras têm de lidar com uma experiência traumática que não é própria, mas sim daqueles de quem dependem psiquicamente. A transmissão transgeracional possui esse caráter invasivo que percorre os sujeitos e as gerações, como um lençol freático que flui silencioso nos subterrâneos da terra inconsciente e paulatinamente umidifica a malha do aparelho psíquico.

A psicanálise nasce do olhar de Freud para a sexualidade feminina e seus conflitos manifestos na sintomatologia histérica. Em 8 de dezembro de 1895, ele escreve a Fliess: “na raiz da histeria há sempre o conflito, o prazer sexual possivelmente é acompanhado pelo desprazer” (Masson, 1985, p. 154). Essa carta é contemporânea ao Manuscrito J, em que ele se debruça sobre um caso de histeria, mas, ao escutar sua paciente, ao mesmo tempo questiona sua verdade:

uma sensação na parte mais baixa do corpo, uma câimbra e a necessidade urgente de urinar. … A insinceridade das mulheres começa por elas omitirem os sintomas sexuais característicos ao descreverem seu estado. Portanto, tratara-se realmente de um orgasmo. (p. 156)

Até então, o trauma sexual como origem da histeria tinha para Freud status de descoberta, ideia que ele próprio revê na famosa carta de 21 de setembro de 1897, quando escreve: “não acredito mais na minha neurótica”. E considera que a necessidade da presença concreta de um trauma para a formação sintomática seria o mesmo que afirmar serem perversos todos os pais. É quando ele privilegia a fantasia, ao afirmar: “não se pode distinguir entre verdade e ficção afetivamente investida” (Masson, 1985, p. 264).

Ao mesmo tempo em que Freud dá voz às mulheres através da psicanálise, desde um tempo em que elas eram consideradas desprovidas de subjetividade, ele questiona a honestidade de sua narrativa. A metapsicologia freudiana, centrada na presença ou ausência do falo, torna a mulher alguém com algo que falta, seja o falo ou a verdade. Não podemos esquecer que sua teoria é escrita com base na óptica e na experiência de um homem que viveu em seu tempo, o que se manifesta em muitas passagens de sua obra, que deixa diversas lacunas a respeito da feminilidade, como é reconhecido pelo próprio autor.

Em 1933, na conferência sobre a feminilidade, o autor segue se debatendo com o enigma da mulher, que permanece sem resposta (Freud, 1933/2011). E deveria ter resposta? É possível resolver esse enigma sem ser mulher? Parecenos que, por fim, ele se resigna à incompreensão, ao propor: “se quiserem saber mais sobre a feminilidade, interroguem suas próprias vivências, ou dirijam-se aos escritores, ou esperem até que a ciência possa dar-lhes informação mais profunda e coerente” (Freud, 1933/2011, p. 293). Disso, o que nos ocorre é que, para conhecer as mulheres, é preciso nos escutar. Mas não tomemos esse ato de forma leviana, essa escuta precisa buscar constantemente se descentrar da estrutura patriarcal, que ouve a mulher com base em uma perspectiva masculina, seja o ouvinte homem ou mulher.

Ainda que Freud tenha sido rodeado por analistas mulheres, os principais lugares ocupados por nós na história da psicanálise são de pacientes, os analistas que se tornaram clássicos são quase todos homens. As primeiras mulheres psicanalistas por muito tempo ficaram à margem, como se seus escritos fossem considerados de segunda classe, e só mais recentemente têm sido resgatados por pensadoras contemporâneas em busca de uma compreensão da sexualidade feminina com base no olhar da mulher.

Muito antes de Freud interrogar-se sobre o quer uma mulher, Lou Andreas-Salomé (2007) busca uma resposta olhando para dentro de si e da sociedade em que vivia, no ensaio “O ser humano como mulher”, de 1899. Ela propõe que a mulher vive o sexual em toda a estrutura de seu ser, muito além das funções femininas ou maternais, possibilitando que sempre emerja algo de novo para a totalidade da existência. No entanto, aponta o fato de que a sexualidade feminina é represada, guardada por cem portas de ouro, pois, ao contrário dos homens, as mulheres não tinham direito à individualidade e eram socialmente consideradas como parte de um grupo indiscriminado. Assim, a fala do homem sobre a mulher “tanto vale uma, como outra” atribui a todas características estereotipadas como humildade, subordinação, cuidado com o outro, pureza, religiosidade, que supostamente seriam predisposições naturais, mas servem para mantê-las infantilizadas e submetidas, num apagamento da individualidade e da criatividade, impedidas de ocupar espaços reservados a homens e de ampliar suas possibilidades.

Mais adiante, em 1910, ela propõe que a imagem da virgem aproxima-se da concepção da prostituta: ambas se submeteriam a uma entrega sem escolha, sem prazer, a motivações sexuais externas a elas. A prostituta e a virgem conectam-se como caricaturas da mulher, tocam-se nos extremos, o corpo da mulher não é dela, ou é morada do filho de Deus ou é lugar de desfrute, o que simbolicamente a condena a passividade e submissão (Andreas-Salomé, 2007).

Muitos leitores e interlocutores de Freud consideram que ele abandonou a teoria do trauma cedo demais. Um dos primeiros foi Ferenczi (1933/2011), que retoma a importância do traumatismo real, em especial, do sexual, na formação sintomática. Ele propõe que a sedução incestuosa se dá quando, na relação amorosa entre adulto e criança, há uma confusão de línguas em que a fantasia infantil se passa no registro da ternura e o adulto atua no registro erótico de uma pessoa madura. Essa assimetria faz com que a criança sinta-se física e moralmente incapaz, submetendo-se ao agressor por medo da perda do amor. Repetidos traumas dessa natureza levariam a uma série de clivagens no eu, resultando na dissociação observada na histeria.

Posteriormente, Laplanche (2015) propôs a ideia da “situação antropológica fundamental”, em que nenhum ser humano escaparia dos efeitos da sedução. Em toda relação entre adulto e criança, o inconsciente sexual do adulto impõe-se sobre o inconsciente da criança, numa relação assimétrica que torna a sexualidade traumática em sua origem. Nesse sentido, ainda que nem todo pai seja perverso, todo pai ou mãe é um adulto que também teve a sexualidade infantil permeada por essa violência, o que seria transmitido de geração em geração.

A assimetria adulto-infans inverte a lógica das primeiras identificações. Laplanche considera que é o adulto e o grupo social mais próximo à criança que lhe impõem suas primeiras identificações, e não a criança que se identifica com o adulto. Assim, o que se passa é uma identificação pelo adulto, e não uma identificação com ele. Quando uma menina chega ao mundo, salvo em poucas exceções, ela receberá os primeiros cuidados de uma mulher (ou de várias), e por sua vez também as marcas do medo, da violência e da culpa vividos pelas gerações anteriores. Tal qual uma marca de nascença que é herdada.

Carolina procurou análise, pois sofria com seu comportamento sexual: embora não conseguisse ter prazer, dizia-se uma pessoa “transuda”. Trazia histórias de muitos parceiros, o que em nada parecia a marca de uma mulher livre, como ela se descrevia, mas o enredamento numa espécie de compulsão sexual, parecia que ninguém era capaz de satisfazê-la: “Às vezes eu nem quero transar, faço só porque estou ali, não consigo falar não, mas não consigo gozar”.

Aos 17 anos foi assediada por um professor, e embora tenha contado ao pai e a família denunciado, ele segue lecionando no colégio. A justificativa dada pelo coordenador foi que provavelmente tudo isso aconteceu por ela ser muito bonita.

“Como faltavam semanas para o vestibular, acabei ficando na escola mesmo assim e cruzava com ele no recreio. Era muito constrangedor.” No mesmo ano, fez uma viagem com os colegas.

Quando acordei estava toda ensanguentada, pelada, no box do banheiro. Com uma dor enorme na vagina… Me lembro tão pouco daquela noite. Todos nós bebemos tanto, era a viagem de formatura, eu estava ficando com o Roberto da minha classe. Sei que num dado momento acabou a luz no hotel, e, desse momento em diante, já não me lembro de mais nada, só de acordar, nua.

Durante a análise de Carolina, a analista vai se dando conta de que ela sofreu um estupro. Mas o trabalho da análise muitas vezes consiste em esperar até que a paciente possa compreender o que aconteceu, então silenciava por saber que, se fizesse uma intervenção, seria mais uma violência, como forçá-la a olhar para a luz após um longo tempo de escuridão. Ouvir a paciente trazia a imagem de estar num campo minado, resguardado por muitas defesas, particularmente a negação, que funcionavam como guardas de um tesouro precioso, ou uma caixa de Pandora que deveria ser aberta com cuidado e delicadeza, tamanho seu efeito tóxico. Até que um dia Carolina lhe disse bem baixinho, durante uma sessão: “Sabe, acho que o que aconteceu comigo na festa de formatura é que eu fui estuprada”.

A história de Carolina se mistura e se confunde com a de Beatriz, com a da personagem de O peso do pássaro morto, de Aline Bei, e as de tantas outras mulheres.

Eu estava no começo da faculdade e peguei uma carona com o Zé. Ele parou o carro e me beijou. Até aí, tudo bem… Aí ele falou: vamos pro motel. Eu não queria transar, mas, quando falei isso, ele travou a porta do carro. No caminho, pensei: fodeu, não adianta gritar, chegando lá eu vejo o que faço. Foi humilhante, eu só queria que acabasse logo, e ele me chamava de porca enquanto me comia. Quando acabou, fui no banheiro, e ele escondeu minha roupa, me ameaçou para que eu não contasse para ninguém; eu demorei para entender o que estava acontecendo, meu corpo inteiro começou a pipocar, eu tive uma reação alérgica, minha boca ficou inchada, foi horrível… Quando contei para minha analista da época, ela me disse que era isso que acontecia com moças que não se dão ao respeito. Demorei muito para falar disso com outras pessoas, foi só quando pude começar a conversar com você e com minhas amigas que me dei conta de que tinha sido um estupro.

Beatriz foi duplamente violentada, pelo estupro e pelo descrédito. A reação alérgica denuncia a brutalidade da invasão, mas ela mesma por muito tempo duvidou se a experiência havia sido real. O sentimento que ficou foi o de estar vazia, desconectada do próprio corpo. Sentia-se um lixo, pensava: se ele não queria que ela contasse para ninguém, por que tinha vergonha de ter “transado” com ela.

Beatriz e Carolina têm em comum o fato de terem sido estupradas por homens conhecidos, e terem sofrido uma segunda violência ao não poderem compartilhar com ninguém o que havia acontecido, nem consigo mesmas. Elas também têm em comum o fato de se sentirem responsáveis pelo que aconteceu, seja por serem bonitas ou por não se darem ao respeito, por serem “transudas”.

Para elas, a análise tornou possível que fossem nomeadas experiências vividas e não pensadas, violências que ficaram manifestas em seus corpos como feridas que não cicatrizam. Aquilo que nunca foi dito finalmente encontra um lugar de pouso, o que nos faz pensar sobre uma sociedade patriarcal que submete e adoece as mulheres, produzindo sintomas com base naquilo que cala.

A negação, ou o desmentido, de um relato por parte de uma figura de confiança pode ter efeitos tão ou mais deletérios que a própria violência vivida (Kahtuni & Sanches, 2009). É preciso coragem para uma mulher vítima de violência poder falar sobre a experiência, que muitas vezes envolve lapsos de memória, sentimentos ambivalentes e extremamente dolorosos. Ao encontrar dúvida ou desconfiança no outro, isso faz com que ela própria passe a duvidar de suas percepções, e assim suas dores vão ficando guardadas em partes inacessíveis de si mesma e retornam como sintomas.

Para nós analistas, encontrar com tamanha frequência relatos tão similares revela muito. Para poder compreender como a violência chega a cada mulher, é preciso antes dar crédito ao que elas estão dizendo aos quatro cantos do mundo. Se nem todo homem é abusador, não é toda mulher que finge. É preciso acreditar em nossas neuróticas. Quando consideramos a violência como um desejo reprimido, nos pomos transferencialmente no lugar do agressor e, em vez de testemunhar e ressignificar a experiência, repetimos e perpetuamos o trauma.

Ao considerarmos a sexualidade igualmente traumática para homens e mulheres, corremos o risco de retornar a uma situação semelhante à da teoria inicial das neuroses, que minimiza os efeitos do trauma real. A clínica e a realidade nos revelam que as mulheres são as maiores vítimas de violência sexual. Em muitos aspectos, a sexualidade não é igual para homens e mulheres, e há aqui uma outra assimetria que não parece derivar apenas da diferença do complexo de Édipo entre eles e elas, mas de algo que é moldado socialmente ao acreditarmos que a violência faz parte das relações para os meninos, enquanto ensinamos as meninas a falar baixo, ser delicadas e não brigar.

As mulheres são inerentemente culpadas e cresceram esperando tão pouco dos homens, que a ideia de vê-los como criaturas selvagens e sem autocontrole é de certa forma aceitável. Ensinamos as meninas a sentirem vergonha. Fecha as pernas, olha o decote. Nós as fazemos sentir vergonha da condição feminina, elas já nascem culpadas, crescem e se transformam em mulheres que não podem externar seus desejos. Elas se calam, não podem dizer o que realmente pensam, fazem do fingimento uma arte. (Adiche, 2015, p. 36)

Chimamanda Adiche traz luz à ideia de Freud da insinceridade da mulher. As mulheres vivem tão familiarizadas com o medo, que sentem que precisam constantemente se defender, se desculpar ou se calar.

Ainda que possa ser compreendida, a real condição de ser mulher se revela quando sentida na própria pele. Rosa, uma advogada com ampla experiência em defesa da mulher, sofreu seu primeiro assédio aos 45 anos, numa situação profissional. Embora tenha se defendido, seu primeiro pensamento foi: “Onde estava com a cabeça quando vim trabalhar com esse decote?”. Foi quando ela percebeu que, por mais letrada que fosse, naquele momento finalmente alcançava o que todas suas clientes sentiam. As leis que tanto protegeram, vieram secundariamente. Em primeiro lugar, seu pensamento constatou que ser mulher é estar sempre no banco dos réus. Mulheres são sempre culpadas, desde o mito do pecado original.

Embora existam verdades que não possam ser reveladas, mas precisam ser descobertas, acompanhar o momento dessa descoberta é bastante dolorido contratransferencialmente. Dor suscitada por nossa própria experiência de ser mulher, e que prescinde de interpretação, pelo contrário, antes precisa ser acolhida, testemunhada e nomeada. E, quando é possível reconhecer a violência como verdade e não ilusão, abre-se espaço para a investigação do impacto do trauma sofrido por cada mulher, possibilitando a busca de simbolização de dores muitas vezes irrepresentáveis. Nesse sentido, o estar junto da dupla analítica pode ser transformador por si só.

É melhor não dizer nada

Dizia o escritor Eduardo Galeano que, ao fim e ao cabo, o medo da mulher à violência do homem é o espelho do medo do homem à mulher sem medo. Soa bem, mas o conceito me parece confuso. Como não ter medo, se o mundo conspira para nos assustar? Mulheres sem medo há muito poucas, exceto quando nos agrupamos, então nos sentimos invencíveis. (Allende, 2020, p. 113)

Rita é uma jovem profissionalmente bem-sucedida que se casou com um homem que tem um histórico de negligência familiar na própria infância. Encantada por ele ser um self-made man, ela desde o namoro o percebe como alguém extremamente inflexível, mas se esforça para não ver alguns sinais. Após o casamento, ela se vê progressivamente submetida: ele passa a controlar seu dinheiro, começa a questionar como ela se veste e a manipulá-la para que deixe de ver sua família. Perplexa, ela assiste a uma escalada de agressividade vinda dele em que gritos passam a ser frequentes, ele chega a trancá-la em casa, e perde o controle numa discussão, segurando-a com força pelos braços. Ela então se dá conta de que, depois disso, viria um tapa. Quis fugir, mas era noite, e estavam na casa de campo, se saísse andando sozinha pela estrada escura, seria estuprada.

Não contei isso a ninguém, não sei como meus pais reagiriam se soubessem, mas sinto que preciso que alguém saiba do que está acontecendo, preciso contar para alguém… No dia seguinte fui à farmácia e tomei a pílula do dia seguinte, não quero pensar que engravidei neste dia, não sei nem se ainda quero engravidar.

Luiza é uma médica que escuta da mãe de sua paciente de 16 anos que a filha fará uma cirurgia plástica com o dr. Fulano de Tal. Luiza congela, imediatamente se recorda que anos antes, ela própria procurou o mesmo médico para um procedimento e foi assediada. A lembrança dele se transformando de médico em monstro enquanto a acariciava ainda hoje a paralisa. Ela, enquanto adulta, conseguira se desvencilhar, mas não sem sequelas. Consulta colegas próximas sobre qual a melhor maneira de agir, eticamente, mas sem deixar a paciente à mercê do médico. No grupo de WhatsApp “meninas da faculdade”, a fala de uma das colegas a convence a fazer algo a respeito: “Se fosse minha filha, gostaria de saber”.

Então, considerando a vulnerabilidade de sua paciente, decide contar para a mãe da jovem uma meia-verdade: “Tenho algo a lhe dizer sobre o dr. Fulano de Tal… Tenho uma prima que foi operada por ele e sofreu assédio. Diante disso, considero que vocês poderiam reavaliar a realização do procedimento com ele”. A resposta da mãe da paciente para Luiza foi: “Entendo… Mas vai saber o que ela fez para que isso acontecesse, né?” Ela insiste: “Se realmente optarem pelo procedimento, não deixe sua filha sozinha com ele”. A conversa se encerra, e Luiza fica com a fala da mãe da paciente ecoando a voz de sua própria mãe quando lhe contou o que aconteceu: “Minha filha, em hipótese alguma deixe que alguém saiba disso. É melhor não dizer nada e encerrar essa história”.

Em reflexão sobre o silêncio das mulheres, Silvia Lobo (2022) escreve sobre as diferentes formas de manifestação que ele pode representar. Entre elas, considera que o silêncio se estabelece quando abandonamos a expectativa de sermos vistas, ouvidas e consideradas como cidadãs, mães e pessoas; é uma não resposta à palavra vigente - dominante, dominadora, excludente. Muitas vezes, as mulheres se calam pela certeza de não serem ouvidas ou pelo medo do julgamento do interlocutor: um silêncio estratégico.

Para que dizer se vai se repetir? Se entre gerações, mulheres terão que se resignar a ter em sua biografia experiências como essa? Se há uma violência sexual herdada a ser computada que se repete num pacto silencioso permanente?

Virginia Woolf (2014) afirma: “A maior glória de uma mulher é não ficar falada, a publicidade é algo detestável para uma mulher. A anonímia está em seu sangue. O desejo de ficar escondida a toma por inteiro”.

O que a revelação de um assédio ou de um estupro tem de tão ameaçador, mesmo para as próprias mulheres? Mirem-se no exemplo das mulheres de Atenas, que espelham o monstro que habita em tantos. E nós como analistas? Podemos nos indignar com a barbárie se repetindo? Por que não seria nossa tarefa validar ativamente a dor dessas jovens para que elas possam vislumbrar um futuro menos opressor?

Isabel Allende (2020), renomada escritora chilena e defensora dos direitos das mulheres, escreve:

A violência contra as mulheres é universal e tão antiga quanto a própria civilização. Quando se fala de direitos humanos, na prática se fala de direitos dos homens. Se um homem é surrado e privado da liberdade, é tortura. Se uma mulher suporta a mesma coisa, chama-se violência doméstica, que na maior parte do mundo ainda é considerada assunto privado. (p. 111)

A naturalização da violência contra a mulher deixa marcas na subjetividade e na sexualidade femininas, que se constituem permeadas pelo medo, pela constante ameaça à integridade do corpo e pela incerteza do direito à defesa. Desde cedo, as meninas aprendem a ir ao banheiro acompanhadas. Já adultas, mulheres pensam duas vezes antes de entrar em um táxi sozinhas. Não é à toa que nos sentimos mais fortes quando estamos juntas, em boa companhia.

Unimos nossa voz à de Isabel Allende, e ainda à de Rosa Montero, entre tantas outras mulheres que não podemos aqui nomear.

Dizíamos e nos dizíamos, é assim mesmo. Mas não, acontece que o mundo não é assim. E acontece que sua mudança, depende em boa medida de nós mesmas. Portanto, minhas irmãs, vamos abrir nossa goela de dragão e cuspir fogo.

(Montero, 2020, p. 4)

Este texto é nosso grito de esperança e de socorro, por nossas filhas, amigas e irmãs. Enquanto escrevíamos, todos os dias deparávamos com novos relatos da clínica e da literatura que nos faziam pensar mais e mais, nos questionando: quantas mulheres mais precisam levantar sua voz para que sejamos ouvidas? Mas correríamos o risco de permanecer debruçadas sobre o tema, num trabalho interminável, resguardadas em silêncio. Ainda que haja muito o que possa ser dito sobre a violência contra a mulher, é hora de levantar nossas vozes e apostar que a psicanálise é capaz de acolher as dores de sermos mulheres, em um mundo tão hostil para com o feminino, e considerá-las por outros vértices além daqueles que já são nossos velhos conhecidos. Não foi a saia, ou o decote, mas é preciso romper o silêncio, maldito silêncio. Que saibamos afastar de nós esse “cale-se”.

Referências

Adiche, C. N. (2015). Sejamos todos feministas. Companhia das Letras. [ Links ]

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Trabalho apresentado em reunião científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) em 15/12/2022. Coordenação: Berta Hoffmann Azevedo. Comentários: Eduardo de São Thiago Martins e Silvia Lobo.

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