No início de suas memórias, a ressalva que o narrador escreve, referindo-se ao título do livro, “não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo”, expressa o desconcerto de si que adensará todo o ambiente de sua escrita autobiográfica. No ensejo dessa observação de Bento Santiago, indiciária de mais uma sutileza narrativa, ao tentar afastar a atenção do leitor do sentido corrente da palavra “casmurro”, “teimoso, irredutível, preso a ideias fixas”, para uma certa percepção de um abandono em si, objetivamos verificar como esses sentidos atritam entre si ou se somam para potencializar o mal-estar oculto e/ou manifesto desse marido-narrador que está a escrever o livro do seu acerto de contas com a vida. Para fazer esse percurso em Dom Casmurro, iremos abordar o trabalho ensaístico de Sigmund Freud em Das Unheimliche (1919/2010).
Em nossa análise, identificamos, nesse narrador casmurro, além da recorrente dissimulação de si no ato de escrever as suas memórias para sentenciar Capitu, a presença contraída e incômoda, entretanto reconhecida pelo próprio texto do narrador, desse conceito freudiano do unheimlich, “e tudo me era estranho e adverso”. Há uma constante angústia no ato de reescrever a sua vida, que irá evoluir para o inquietante em muitos momentos do seu livro, “mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. Em nossa percepção, o narrador, através de sua escrita memorial, permite que identifiquemos o campo da estranheza e da adversidade, e, no mesmo ato, o campo de uma íntima ausência. Veremos adiante a perfeita inquiétante familiarité do narrador, que, em sua autobiografia, atravessará as nuances de l’étrange familier, l’inquiétante étrangeté, recrudescendo, em momentos-limite de sua narrativa, para a presença manifesta de les démons familiers. Freud, nos preâmbulos do ensaio sobre esse tema, e aqui adotaremos a tradução de unheimliche como inquietante, orienta-nos melhor sobre as possibilidades de diferença, especificidade e derivações do conceito.
“O inquietante” é um desses domínios. Sem dúvida, relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e horror, e também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante. É lícito esperarmos, no entanto, que exista um núcleo especial [de significado] que justifique o uso de um termo conceitual específico. Gostaríamos de saber que núcleo comum é esse, que talvez permita distinguir um “inquietante” no interior do que é angustiante. (Freud, 1919/2010, pp. 329-330)
Em Dom Casmurro, na elaboração narrativa de suas memórias, Bento Santiago manifesta, desde a adolescência, sempre em contraste de si com Capitu, ao medir o poder de inteligência e ações de ambos, esse estranhamento inquietante que já enraizava numa angústia, apontando para o esvaziamento de um poder que ele julgava seu. Há algo, em sua condição de homem, que o obriga a lidar com esse íntimo impossível: a marca de uma feminina independência emocional e intelectual que, em Capitu, evoluirá para algo insuportável todas as vezes que o narrador repetir o contraste de si com ela.
Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais ou quais, ou dois lances de há quarenta anos, é para demonstrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe; o pai não lhe meteu mais medo. No meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja. … A todas as perguntas, Capitu ia respondendo prontamente e bem. (Assis, 1899/2008, p. 59, grifos nossos)
Freud vai desenvolver o ensaio sobre das Unheimliche tendo como alicerce a análise de um texto literário. Ao estabelecer uma ressalva inaugural, de que buscava na literatura outras camadas além das “investigações estéticas”, e mediante uma “teoria das qualidades de nosso sentir”, podendo ocupar-se não apenas de nossas “sensibilidades positivas”, mas cuidando das sensibilidades “contrárias, repulsivas, dolorosas”, o trabalho de investigação do criador da psicanálise, movendo-se também pelo campo da linguagem, em especial, sobre as acepções de um sentimento unheimliche, objetiva identificar as marcas de fratura, os silêncios inquietantes, o estranhamento que se recalca no campo de nosso inconsciente.
Podemos encetar dois caminhos agora: explorar que significado a evolução da língua depositou na palavra unheimliche, ou reunir tudo aquilo que, nas pessoas e coisas, impressões dos sentidos, vivências e situações, desperta em nós o sentimento do inquietante, inferindo o caráter velado do inquietante a partir do que for comum a todos os casos. Já antecipo que os dois caminhos levam ao mesmo resultado: o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora, que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar. … Faço também notar que esta investigação, na realidade, principiou pela reunião de casos individuais, e somente depois achou confirmação no uso da linguagem. Mas na presente exposição tomarei o caminho inverso. (Freud, 1919/2010, p. 331, grifos nossos)
No âmbito da psiquiatria, o conceito de unheimliche já tinha sido estabelecido por Ernst Jentsch em 1906. Trata-se de uma “incerteza intelectual” sobre se um dado objeto animado está realmente vivo ou, inversamente, se um objeto reconhecido como inanimado pode vir a ter uma existência autônoma. Jentsch destaca que, na literatura, a ocorrência do unheimliche verifica-se quando um escritor utiliza, em suas histórias, objetos nos quais a natureza física não é clara (animada ou não animada), ficando o leitor incapaz de posicionar-se de forma definitiva numa única interpretação. Uma vez que esses objetos possuem conotações familiares oscilantes em novas/estranhas, há a manifestação dessa “incerteza intelectual” que, na psicologia do início do século 20, é identificada como “dissonância cognitiva”. Esse conceito de Jentsch tem como base a análise feita por ele de O homem da areia, de E. T. W. Hoffmann (1986), conto no qual a figura da boneca Olympia representa o elemento inquietante. Em Das Unheimliche, Freud irá tensionar esse conceito do “inquietante”, delimitado sempre pelo antagonismo dos limites “estranho-familiar”, propondo uma extensão, que aqui nos importa:
Tudo somado, Jentsch limitou-se a esse vínculo do inquietante com o novo, o não familiar. Para ele, a condição essencial para que surja o sentimento do inquietante é a incerteza intelectual. O inquietante seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim dizer. Quanto melhor a pessoa se orientar em seu ambiente, mais dificilmente terá a impressão de algo inquietante nas coisas e eventos dele.
Notamos facilmente que essa caracterização é incompleta, e procuramos ir além da equação inquietante = não familiar. Primeiro nos voltamos para outras línguas. Mas os dicionários que consultamos nada nos dizem de novo, talvez simplesmente porque nós mesmos somos de língua estrangeira. De fato, adquirimos a impressão de que muitas línguas não têm uma palavra para essa particular nuance do que é assustador. (Freud, 1919/2010, p. 332, grifos nossos)
Na verdade, Bento Santiago, no início do processo de escrita para narrar o seu livro de memórias, encontra-se restrito a esse limite do “inquietante = não familiar”. Capitu era tão do seu domínio, tão apropriada por esse amor casmurro, que qualquer movimento de ruptura, provocado sempre pelo contraste que o rebaixava diante de uma ativa performance feminina de Capitu, lança o narrador a um estranhamento potencializado por uma angústia de si que vai voltar-se contra as práticas perceptivas de um feminino que o diminui como sujeito.
Em verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia tão nela, dela e para ela, que a intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade; nunca me acudiu que havia peraltas na vizinhança, vária idade e feitio, grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns olhavam para Capitu - e tão senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim, um simples dever de admiração e inveja.
… Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que perturbava assim a adolescência de um pobre seminarista. Não fosse ele, e este livro seria talvez uma simples prática paroquial, se eu fosse padre … (Assis, pp. 85-86, grifos nossos)
Assim como Freud, inicialmente no ensaio, orienta-nos para esse inquietante como inerente ao não familiar (veremos a seguir como esse processo evoluirá para uma imbricada ambiguidade na qual o familiar irá gerar o inquietante), Bento Santiago, em sua escrita autobiográfica, constantemente a comparar-se a Capitu, somente percebe as performances da namorada como algo estranho a um natural mundo de poder que, assim como foi dos homens históricos da parede de sua sala, era suposto ser seu.
Gurgel tornou à sala e disse a Capitu que a filha chamava por ela. Eu levantei-me depressa e não achei compostura; metia os olhos pelas cadeiras. Ao contrário, Capitu ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe se a febre aumentara. …
Nem sobressalto nem nada, nenhum ar de mistério da parte de Capitu; voltou-se para mim, e disse-me que levasse lembranças a minha mãe e a prima Justina, e que até breve; estendeu-me a mão e enfiou pelo corredor. Todas as minhas invejas foram com ela. Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não? (Assis, 1899/2008, p. 104, grifos nossos)
Freud, em um estudo dialético no que se refere à semântica das palavras unheimliche/heimliche, elabora questões que objetivam, no plano da linguagem, identificar como se dá a não reversibilidade dos termos em análise. Como já foi possível constatar, no ensaio do médico vienense, além dos limites antitéticos entre as palavras, há a perspectiva de uma partilha de sentido, um deslizamento entre os significados que vai gerar, à luz do conceito freudiano, a percepção de que o “inquietante é aquela espécie de coisa assustadora, que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar”. Para que se pudesse chegar a essa compreensão, mediante dados de uma pesquisa no Dicionário da língua alemã (1860), de Daniel Sanders, Freud buscou investigar referências etimológicas sobre as palavras:
Heimlich, adj., (subst. Heimlichkeit, fem. pl. com en): também Heimelich, heimelig, pertencente à casa, não estranho, familiar, caro e íntimo etc. ..., ver Heimlicher - de animais, domesticado, que se aproxima confiantemente às pessoas. 2. oculto, mantido às escondidas, de modo que outros nada saibam a respeito, dissimulado, cf. Geheim [secreto]. ... Unh. chama-se a tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas apareceu. Schelling, 2,2.
... O mais interessante para nós é que a palavra heimlich ostenta, entre suas várias nuances de significado, também uma na qual coincide com o seu oposto, unheimlich.
O que é heimlich vem a ser unheimlich; cf. o exemplo de Gustzkow: “Nós chamamos a isso heimlich, vocês, unheimlich”. Somos lembrados de que o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias, que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado e o do que é escondido, mantido oculto. Unheimlich seria normalmente usado como antônimo do primeiro significado, não do segundo. Sanders nada nos diz sobre uma possível relação genética entre os dois significados. Nossa atenção é atraída, de outro lado, por uma observação de Schelling, que traz algo inteiramente novo, para nós inesperado. Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu. (Freud, 1919/2010, pp. 337-338, grifos nossos)
Seguindo na escrita de suas memórias, o narrador de Dom Casmurro já tinha demonstrado o seu assombro diante da capacidade emocional e intelectual da namorada, julgando-a naturalmente como sua posse familiar, “tão senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim”. Capitu era, portanto, do seu domínio. As qualidades dela eram transferidas ao namorado, revelando, nesse pensamento do narrador, a perfeita representação dos espelhos descritos por Virginia Woolf (“ao longo de todos estes séculos, as mulheres têm servido de espelhos, dotados do poder mágico e maravilhoso de refletirem a imagem do homem com o dobro do tamanho normal”). Por outro lado, o olhar de outros homens para a multíplice potência simbólica de Capitu vai despertar em Bento Santiago, sempre a medir o corpo e as ideias de sua futura esposa, o campo do inquietante nessa sutil ameaça a um domínio familiar garantido pela posse matrimonial da mulher. O corpo, as ideias e a desenvoltura emocional de Capitu deveriam permanecer como um patrimônio secreto e dele. Ao escaparem ostensivamente ao seu controle começam a angustiar o homem-narrador:
- Está uma moça, observou Gurgel olhando também para ela.
Murmurei que sim. Na verdade, Capitu ia crescendo às carreiras, as formas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade moralmente a mesma coisa. Era mulher por dentro e mulher por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até a cabeça. Esse arvorecer era ainda mais apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra reflexão, e a boca outro império. (Assis, 1899/2008, p. 104, grifos nossos)
Evidencia-se, nessa descrição, a premissa freudiana na qual “o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora, que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar”. À medida que Capitu vai crescendo, revelando-se como uma mulher em potência de si e de suas ideias, com práticas efetivas de um sujeito perceptivo das suas possibilidades no mundo, ameaçando o poder do menino-marido-advogado-narrador, essa nova mulher, que revela-se a si e à vida, surge, como o l’étrange familier do livro que está a ser escrito: a aflição mais íntima e mais inquietante do narrador, Capitu, a marca unheimliche do homem que está a escrever, “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas apareceu”, a “mulher por dentro e mulher por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados”.
Lidar com esse inquietante feminino, que expressa a diversa força simbólica de Capitu, para esse marido-narrador casmurro, metido em si e preso a preconceitos da sua ordem patriarcal, será o desafio mais secreto de Bento Santiago. Em um delírio sobre o dia do casamento, mais uma vez, apropriando-se agora de uma voz das escrituras, a posse amorosa da mulher pelos laços do matrimônio sugere a domesticação de um feminino, a mulher subalternizada e valorizada como uma propriedade do marido:
S. Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos… Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração… Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida…”
…
Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um exseminarista que ouvir por toda parte latim e Escritura. É verdade que Capitu, que não sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por exemplo: “Senteime à sombra daquele que havia tanto desejado”. Quanto às de S. Pedro, disse-me no dia seguinte que estava por tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais finas rendas deste mundo. (Assis, 1899/2008, p. 121, grifos nossos)
No livro das suas memórias pulsa o “inquietante familiar” que urge ser silenciado para que toda a sua narrativa faça sentido, e ele, o Dom Casmurro, seja o senhor da sua vida, sobretudo, o senhor da sua escrita. Mediante a voz de São Pedro, Bento Santiago declara, com base no rito matrimonial, a submissão da Capitu perceptiva e independente, garantindo assim o restabelecimento da sagrada ordem familiar patriarcal: “as mulheres sejam sujeitas a seus maridos… vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida”. Lucia Serrano Pereira (2004), psicanalista que estuda a ficção machadiana, orienta-nos nestas intersecções do narrador casmurro com as reflexões do estudo ensaístico freudiano.
Em Das Unheimliche, Freud segue a vertente da palavra na língua alemã, que permite à significação disso que é estranho deslizar, terminando por se relacionar com o que há de mais íntimo e familiar. Ele transporta esse deslocamento ao funcionamento psíquico. Unheimliche vai também relacionar-se às formas do mal-estar que situa na modernidade. Freud trabalha a psicanálise referindo-se a um sujeito fundado na relação com o declínio da função paterna. O simbólico já não dá conta da subjetividade nos moldes anteriores, com as grandes representações, com o épico, com a transcendência. Ele constata que, quando isso declina, emerge um estranhamento, uma relação com o mal-estar, sob novas formas. (Pereira, 2004, pp. 16/17, grifos nossos)
Temos então um narrador em profundo mal-estar. Embora declare que o ato da escrita do seu livro é movido pela memória dos homens célebres de sua sala, Bento Santiago, diante de sua narrativa, atravessada agora pela insurgência desse “inquietante familiar” (Capitu não vai submeter-se ao agrado e ao preço “das mais finas rendas deste mundo”), ao contrastar-se com o simbolismo dos homens históricos fixados na parede de sua casa, vai perceber-se um estranho confrade: ele é um homem não igual aos outros homens, um homem que não conseguirá manter a história familiar do pai. Assim, ainda que o eixo verossimilhança-verdade seja o recurso constante (e potencial) para a narrativa de um homem que precisa afirmar-se em sua escrita autobiográfica, veremos a aflição desse mesmo homem diante da perda de uma função que ele julgava histórica, sagrada, lícita e transmissível.
O narrador, ao elaborar e reelaborar as suas memórias, a fim de que possa escrevê-las à semelhança do brocardo “vim, vi e venci” (enunciado atribuído ao seu “grande César”, o busto declarado anteriormente que o aconselha e o move a escrever), regressa às paredes de sua sala. Ao comentar sobre a denúncia de José Dias de que ele, Bentinho, estava envolvido em uma relação de desejo amoroso por sua amiga tão familiar, Capitu, reflexamente a simbologia da percepção vai migrar dos limites menino-menina para a relação homem-mulher, traduzida no retrato de casamento de seus pais na parede de sua sala. A denúncia repercute em seu olhar para a compreensão de uma felicidade conjugal: uma mãe linda, um pai com olhos policiais, o desejo de uma mulher por seu homem; a certeza, pelo homem, de ser alvo sempre do desejo feminino e a sutil submissão da mulher que era capaz de garantir a fixa felicidade familiar na loteria dos matrimônios.
Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá ideia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e que usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comprada à sorte grande, eles tiraram no bilhete comprado de sociedade.
Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem-casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: “Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!” O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: “Vejam como esta moça me quer...” ... (Assis, p. 22, grifos nossos)
No momento em que afirma estar a escrever as suas memórias, nessa segunda contemplação às paredes de sua casa, a referência aos olhos de seu pai, que, ainda no tempo presente, o “acompanham para todos os lados”, aliada à primeira passagem quando evocou os bustos de César, Augusto, Nero e Massinissa, indica-nos uma fratura melancólica em seu destino de cumprir-se como um homem chefe de família. Existe uma herança que em seu livro de memórias não se cumprirá: o legado da felicidade conjugal. A história imaginada do seu pai não se repercutirá em sua história de um homem casado, a escrita do seu livro autobiográfico será então a escrita desse ressentimento, que se manifestará sutil ou ostensivamente durante toda vibração do eixo verossimilhança/verdade para mobilizar as suas memórias e assim reescrever a sua vida. O libelo do marido/narrador/advogado objetivará convencer-nos da inexistência dessa escrita do ressentimento. Ela será apenas o meio para encaminhar a percepção da denúncia implícita: um homem honrado que foi vítima de uma mulher indigna.
O livro do narrador trará esse ressentimento instrumental que se expressará como uma queixa surda que não cessa, reinventa-se engenhosamente para denunciar o dano à posição familiar de um homem de bem: a privação de uma felicidade histórica que era um direito natural de Bento Santiago. Assim informavam os bustos dos homens célebres nas paredes de sua sala, assim estava expresso no retrato do casamento de seus pais. O narrador/advogado escreverá um livro-libelo para ressarci-lo desse dano, portanto, a escrita do ressentimento visa a indulgência do leitor, em especial, da leitora. O exílio e a sentença lançada a Capitu, “a terra lhe seja leve”, traduzem um voto de justiça, é a percepção que o narrador deseja que tenhamos. Não de vingança ou ressentimento. Maria Rita Kehl (2005), psicanalista, em um ensaio no qual estuda o campo de uma estética do ressentimento na masculinidade, orienta-nos a respeito:
Então, a dimensão subjetiva do ressentimento na masculinidade (além da dimensão social) tem relação com a incompreensão do desejo da mulher, quando este desejo escapa ao lugar que o homem lhe concede, de objeto do desejo dele. …
Na estética do ressentimento o personagem ressentido é apresentado de maneira tal que convoca o leitor a uma identificação com o ressentimento, com os avatares do ressentimento, que o revestem de uma espécie de nobreza moral. …
Para isso o homem do ressentimento está sempre pronto a culpar o outro pela falta, interpretada como dano, como privação. (Kehl, 2005, pp. 132 e 137, grifos nossos)
Escrever as suas memórias é escrever sobre esse ressentimento que não se manifesta verbalmente. Não ter sido digno de ser o único desejo de sua esposa, não ter cumprido em si um rito familiar, não ter sido aquele homem capaz de, aos olhos do pai, manter o mundo patriarcal em suas estruturas fixas de poder e domínio (“vejam como esta moça me quer”) resultará em uma melancolia casmurra que somente poderá ser mitigada se a culpa desse fracasso não residir no homem que escreve. Para o menino burguês que será o homem de bem, proprietário de toda a herança familiar burguesa, era suposto, naturalmente, casar-se com uma mulher mantida sob o império do homem que Bento Santiago deveria ter sido (“sou toda sua, meu guapo cavalheiro”) e assim reescrever, mais uma vez, a felicidade herdada do pai. Era esse o destino para ser reescrito, não tivesse sido esse íntimo inquietante (vindo de um campo familiar que gerou o estranho em novas práticas de um feminino, Capitu, além de casar-se, possuía outros desejos), que, na história de um marido-narrador, vai sobrescrever a sua própria história.
A fratura da felicidade familiar, à qual Bento Santiago julga ter sido lançado pela perfídia desse inquietante feminino personificado em um l’étrange familier que Capitu representará, serve para ocultar o fracasso da sua condição patriarcal (e narrativa) de ainda acreditar ser o único sujeito capaz e legitimado a escrever uma história. Se, por um lado, uma inquietante voz feminina foi silenciada, por outro lado, essa mesma voz (que foi exilada do livro, da vida e de uma história que um marido-advogado conseguiu escrever) será a inquietante voz a tecer os fios de uma narração que possui a sua marca perceptiva.