Introdução
O presente artigo é a sequência direta de dois trabalhos: o artigo “O lugar da mulher negra e o da analista no Brasil: um ensaio clínico-político da função negra da escuta” (Paulon & Barbosa, 2023) e o livro Mulheres que não sonharam: a precariedade da rêverie materna e o não-sonhado entre as gerações (Costa, 2022). Ao passo que no primeiro trabalho há uma discussão aprofundada do lugar da mulher negra no seio da cultura e da fantasia brasileira e como esse lugar reverbera nas transferências direcionadas às analistas negras e se assemelha ao lugar de objeto-a, no segundo trabalho há uma longa discussão sobre a importância da capacidade de sonhar da/o analista diante da dificuldade do paciente de sonhar por si.
O elo que une os dois trabalhos é a ampliação da compreensão do sonhar. Ogden (2010) sugere que uma das tarefas do analista é sonhar os sonhos não-sonhados e os sonhos interrompidos do paciente, enquanto Kaës (2004), apoiado na pergunta de Ferenczi “a quem endereçamos nossos sonhos?”, compreende que o ato de sonhar propriamente dito e o relato do sonho não podem ser distinguidos, aquele a quem contamos nossos relatos oníricos faz parte do material latente, o sonho é endereçado. Se a mulher negra de fato ocupa o lugar de objeto-a na cultura brasileira (Paulon & Barbosa, 2023), parece-nos de interesse clínico e teórico refletir sobre o possível endereçamento onírico a essas mulheres, uma vez que a função do analista, como descrito por Lacan (1998), é também a de fazer semblante desse objeto.
Käes (2004), com base em suas experiências com análise de sonhos no contexto de terapia de grupos, fez a interessante proposta da existência de um espaço onírico comum e compartilhado. Essa formulação levou o autor a apresentar a ideia de um segundo e de um terceiro umbigo dos sonhos. O primeiro umbigo dos sonhos é de caráter psicossomático (Freud, 1900/2019). O segundo umbigo dos sonhos é de caráter interpsíquico e possuiria um papel semelhante ao umbigo dos sonhos proposto por Freud: articulador de materiais oníricos não simbolizados, desejos, capacidade de sonhar e trabalho psíquico. A principal diferença reside em seus berços oníricos: enquanto, no primeiro, sua fonte é intrapsíquica, no segundo umbigo é interpsíquica. Por fim, há o terceiro umbigo dos sonhos, formado pelo entrelaçamento das representações culturais, relações sociais, lugar de articulação entre o sonho, o rito e o mito.
É a partir dos nós constituídos tanto pelo segundo umbigo do sonho quanto pelo terceiro que discutiremos o endereçamento onírico às mulheres negras no seio da cultura e da fantasia da sociedade brasileira. Em outras palavras, propusemo-nos à sustentação e à articulação do vértice intersubjetivo formado pelo vínculo entre duas mentes com o vértice cultural. Esse empreendimento está ancorado no pensamento de Kaës:
Qualificamos de espaço psíquico intersubjetivo aquele que vincula cada sujeito a outros sujeitos do inconsciente, de tal modo que o próprio conceito de intersubjetividade encontra aqui sua principal intenção. Devemos também especificar o espaço psíquico transubjetivo que percorre todos os sujeitos de um conjunto de sujeitos com a cultura e com as relações sociais. A articulação entre esses diferentes espaços de relação e as alianças devem ser pensados sob o ângulo da realidade psíquica inconsciente conjunta, comum, compartilhada que os associa e os distingue. (2014, p. 48, itálicos no original)
Para investigação da realidade psíquica inconsciente conjunta, comum e compartilhada, utilizamos como alegoria a recorrente cena da teledramaturgia brasileira dos anos 1990 nas quais a filha da “patroa” entrava na cozinha queixando-se e lamuriando-se dos desafios de sua vida amorosa e/ ou profissional à empregada doméstica - representada por uma mulher negra. Também utilizamos do mito da Odisseia, de forma mais precisa, da cena a qual Euricleia, babá e escrava de Odisseu, reconhece-o ao lavar os pés do herói. Compreendemos que, em ambas as cenas, cada qual com suas particularidades, há um endereçamento onírico de sonhos não-sonhados ou de sonhos interrompidos às personagens que desempenham papéis bastante semelhantes, visto que o lugar da empregada doméstica preta é parente do lugar da mulher babá e escrava.
Reconhecemos o tamanho do desafio que nos cercou durante a escrita desse trabalho ao propormos uma articulação de ideias de diferentes autores psicanalíticos. O conceito de objeto-a remete à metapsicologia proposta por Lacan, já a ideia de sonhos não-sonhados e sonhos interrompidos encontra guarida na teoria de autores pós-bionianos e, por fim, ainda nos remetemos à algumas ideias de René Kaës. Ao encontro de tamanho desafio, chamamos as articulações propostas por Radmila Zygouris em O vínculo inédito (2003).
Em Zygouris (2003), observamos que a construção da clínica psicanalítica se dá a partir de um elemento que não se restringe a ela, o vínculo. Entretanto, a forma como intervimos e interpretamos esse vínculo a partir da transferência, que funda as condições, repetições e possibilidades do enlace amoroso, produz, dentro da clínica, o que Zygouris nomeou como inédito: a capacidade de, pela escuta, construirmos um mapa do vínculo e, munidos desse mapa, apontarmos para horizontes novos aportes possíveis a esse território que é o vínculo. Para que tal “façanha” se concretize, Zygouris marca a necessidade de que a clínica não dogmatize a teoria, tornando-se uma repetição conceitual e uma reprodução positivista de noções teóricas. A clínica deve ser um espaço de construção e invenção para além das amarras da teoria. A teoria, nesse sentido, é um direcionamento que modaliza e contorna a experiência sem mortificá-la.
É com base nesse vértice que escrevemos, ou seja, apesar de não citarmos diretamente a experiência clínica, esperamos que novos pensamentos possam ser evocados no leitor e que esses possam conduzir a novos espaços de construção metapsicológica ancorada nas experiências brasileiras de subjetivação. Também nos permitimos uma certa liberdade com o trato de metapsicologias pertencentes a diferentes vértices psicanalíticos, visto que foge ao escopo deste trabalho tecer uma delicada construção de pontes entre o pensamento pós-bioniano, lacaniano e de René Kaës, contudo acreditamos que esse seja um trabalho para futuras publicações. No presente artigo, nosso objetivo é refletir sobre o endereçamento onírico à analistas negras na sociedade brasileira e oferecer um paralelo entre a típica cena da teledramaturgia brasileira da empregada doméstica negra como aquela que alimenta os filhos da patroa não somente com comida, mas com acolhimento e alteridade com a cena de Euricleia, a babá e escrava que reconhece o herói Odisseu.
O lugar de objeto-a e da mulher negra
Gonzalez (1984), autora e estudiosa da psicanálise no Brasil, em suas releituras sobre a articulação da teoria com o território, produz uma fundante afirmação: o racismo atua como sintoma na neurose da sociedade brasileira, dado o recalque da população negra no país. Esse recalque ocorre pela memória apagada, da importância do trabalho das populações escravizadas, da cultura brasileira que se ergue a partir de referências que essa população trouxe além-mar e da importância dessa população no que tange o processo de produção identitária do povo brasileiro. No cerne desse recalque encontra-se a mulher negra, representação fundante de feminilidade e maternidade desse território.
Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura em empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí também que se constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas. (Gonzalez, 1984, p. 228)
A autora aponta, nesse trecho, para a posição ambivalente que a mulher negra ocupa na sociedade brasileira: desejada e empregada doméstica. Essa condição de trabalho que remete, em um passado não tão distante assim, as mucamas, escravas de casa. Elas ofereciam cuidados à Casa Grande, também aos seus senhores e às senhoras a partir do que ficou documentado como “prática do cafuné” (Bastide, 1941/2016). A prática do cafuné aponta para esse costume comum nas fazendas de engenho brasileiro, momento, ao longo das tardes, nos quais escravas de casa massageavam a cabeça de suas senhoras. Segundo Expilly (1977, citado por Bastide 1941/2016):
Na hora de maior calor, quando se mover ou mesmo falar torna-se cansativo, as senhoras, recolhidas no interior de seus aposentos, deitam-se no colo de sua mucama favorita, à qual elas confiam sua cabeça. A mucama passa, repassa seus dedos indolentes na espessa cabeleira que se desenrola diante dela. A escrava lavra, em todos os sentidos, naquele luxuriante tosão. Coça delicadamente a raiz dos cabelos, pinça a pele com habilidade, fazendo ouvir, de tempos em tempos, um rumor seco entre a unha do polegar e o dedo médio. Esta sensação torna-se uma fonte de prazer e sensualismo das nativas. Um voluptuoso arrepio percorre os seus membros ao contato desses dedos acariciantes. Invadidas, vencidas pelo frisson que se espalha em todo o seu corpo, algumas sucumbem a deliciosa sensação e desfalecem nos joelhos da mucama. (p. 190)
Bastide (1941/2016) localiza nessa prática não só uma estrutura social que remonta a desigualdade e ao funcionamento estrutural de uma sociedade escravagista. A mulher negra estaria no cerne de um funcionamento erótico em tal sociedade: a prática do cafuné diz do desenvolvimento psicossexual do Brasil, dado que remonta a um aspecto da sexualidade infantil - o órgão genital deslocado para a cabeça. Assim, o sociólogo localiza nessa prática um eixo estruturante da erótica brasileira calcada na mulher negra que Gonzalez (1984) retomará ao mencionar o lugar da mulher negra no carnaval, endeusada, desejada, porém, contraditoriamente, recusada e excluída, quanto ao seu papel de doméstica na sociedade brasileira. Afirma Ambra:
A abjeção em jogo [que funda a neurose brasileira] é a invenção discursiva da mulata que a localiza, ao mesmo tempo, no domínio de uma brutal opressão e de uma verdade e desejo inseparáveis da constituição do sujeito brasileiro. De fato, para a psicanálise, o objeto a … é, por um lado, um objeto/dejeto, pois é expulso do domínio da inteligibilidade, do compartilhável, do compreensível e do humano, mas, por outro, é também nomeado como objeto causa de desejo, ou seja, é ele quem está, escamoteadamente, por trás de toda a empresa que move o sujeito, seja ele histórico ou do inconsciente. E o mérito de Gonzalez é mostrar o núcleo da analogia entre a constituição do sujeito falante e a sintomática formação cultural brasileira: o lixo causa. (2019, p. 98, itálicos no original)
A essa posição que remete, concomitantemente, ao desejo e à exclusão, Lacan (1992) conceitualiza a noção de objeto-a. Este, que apresenta, de forma simultânea, desejo e rebotalho, é o que deve sustentar o motor e desenvolvimento de uma análise. O analista, em sua função, age como causa de desejo para a abertura ao saber inconsciente ao mesmo tempo em que se torna o rebotalho de uma análise. Um analista opera uma análise, nunca um analisando (Lacan, 1998). A conclusão dessa operação posiciona o analista como resto, permanecendo, então, o sujeito do inconsciente. No primeiro momento, o analista atua como semblante do objeto-a a fim de causar o desejo e, em um segundo, recai como resto.
É de fundamental importância que o analista permaneça em sua função nessa posição para que o que possa se formular em relação ao discurso do analisando. Ocupar a posição de objeto-a seria, então, o que possibilitaria circular a partir de um certo vazio, que orientaria a análise ao sentido do saber inconsciente. Quando Gonzalez (1984) afirma que a mulher negra ocupa o lugar de objeto-a na cultura é a esse aspecto que ela se refere: desejo e rebotalho, que, simultaneamente, faz a cultura circular, se concretizar e historicizar, tal como faz um analista no decorrer de uma análise.
Representação na teledramaturgia brasileira
Ao longo da história da teledramaturgia brasileira, a população negra sempre ocupou espaços de subalternização concordantes com a história e costumes brasileiros. Segundo Araújo: “nenhum dos grandes atores negros parece ter escapado do papel de escravo ou serviçal na história da telenovela brasileira” (2008, p. 979). Esse fato põe em questão o mito da democracia racial brasileira e desvela, em uma perspectiva gonzaleana, o sintoma neurótico brasileiro por excelência: o racismo. De tia Anastácia, em Sítio do Picapau Amarelo, às telenovelas de época ou que representam momentos atuais, é comum, até meados dos anos 2010, que o negro ocupasse a posição de serviçal, babá, doméstica
Essas posições de subalternização, entretanto, vinham também munidas de um saber, saber esse acessado em especial pelas mulheres brancas que, ao entrar no território doméstico de suas empregadas, descobriam segredos de suas próprias casas, eram acolhidas, encaminhadas, reorganizadas.
Um bom exemplo desse funcionamento na teledramaturgia brasileira pode ser observado na personagem de Neuza Borges, a Florência, da novela A indomada, de 1997, transmitida pela Rede Globo. Na definição dessa personagem nos arquivos digitais da emissora, encontramos:
Florência (Neuza Borges) - Aquela babá de família, descendente dos escravos que pertenceram aos Mendonça e Albuquerque. Detentora de poder porque sabe de todos os segredos da casa. É a única que consegue colocar limites nos desvarios de Altiva (Eva Wilma), por motivos desconhecidos no início da história. Adorava Eulália (Adriana Esteves), e transfere esse amor para Helena (Adriana Esteves). É o ponto de equilíbrio da história, capaz de intervir com seu bom senso em todas as situações. (Arquivos digitais TV Globo, 2022)
A babá de família, descendente de escravos, detentora de poder por saber os segredos da família, única capaz de dar contorno, também de orientar a personagem de Adriana Esteves. De nossa parte, acrescentaríamos que ela era a única capaz de oferecer consolidação de seu desejo, de retomar o que pertencia a seu pai, tornando-o seu e reencontrar seu verdadeiro amor. Florência é uma representante desse lugar da mulher negra abjeto/objeto de desejo dentro da cultura brasileira e que, justamente por isso, detém poder - sem, no entanto, usufruir dele - tal como um analista, diria Lacan (1998).
Contudo, não precisamos voltar até 1997 para observar que essa posição ainda continua em relação às mulheres negras. Na edição deste ano de 2023 do Big Brother Brasil, há um mês para o encerramento do programa, um dos grupos formado na casa constituído por três mulheres brancas adotaram o apelido de Mammy para a única mulher negra que compunha com elas (Moraes, 2023). O apelido remete a esse passado, ainda tão presente, de representação da mulher negra na cultura brasileira, como fundante da nossa constituição identitária, seja pela via do erótico seja pela via da maternagem. A mulher negra permanece, desse modo, excluída das relações de poder, mesmo que utilizada para o seu exercício, emprestando, em seu corpo, uma função muito semelhante à que, em psicanálise, nomeamos como a do analista.
Euricleia, a babá e escrava que reconhece Odisseu
Em Odisseia, acompanhamos a jornada de retorno de Odisseu a sua amada terra natal, Ítaca. Como colocado por Da Silva (2018), desde a Antiguidade, é indicado que o reconhecimento é um dos temas nodais dessa narrativa. Isso se dá em razão de a Odisseia ser uma história de retorno para casa depois de anos de ausência. Por essa perspectiva, a Odisseia é um poema de nóstos, visto que essa palavra grega significa uma longa jornada de retorno à pátria amada.
Nessa complexa e intrigante trama, Euricleia é considerada uma personagem menor da obra, contudo é de grande importância (Da Silva, 2018). A personagem é uma velha criada/escrava de Odisseu que foi comprada por seu pai, Laertes. Em sua condição de criada/escrava, Euricleia criou tanto Odisseu quanto Telêmaco, príncipe de Ítaca, e foi confidente de seus segredos. Em um primeiro momento, Telêmaco confia a ela o segredo de que irá à Esparta em busca de informações sobre o paradeiro de seu pai e é Euricleia que reconhece Odisseu enquanto esse estava disfarçado de mendigo no Palácio de Ítaca.
Da Silva (2018) discute a cena do reconhecimento de Odisseu por Euricleia. O palácio de Ítaca foi ocupado por diversos nobres que desejavam desposar Penélope, rainha de Ítaca, e, enquanto ela resistia a um novo casamento, eles dilapidavam o patrimônio com banquetes e desrespeitavam Telêmaco e Penélope. Odisseu, depois de uma longa e fantástica jornada, regressa à Ítaca, e se encontra diante de um novo desafio: retomar sua posição de direito como rei e vingar-se dos pretendentes que tanto fizeram sofrer sua família.
Sob a orientação de Atenas, Odisseu se infiltrou no palácio para que pudesse realizar sua vingança. Ele é recebido como um pedinte estrangeiro e, em razão da norma da hospitalidade regida por Zeus,4 ele é convidado a se hospedar. Penélope pergunta ao seu convidado se gostaria de que alguma de suas criadas o banhasse, Odisseu diz que não aceitaria a oferta, que se contentaria que seus pés fossem lavados pela criada mais velha de todas. A criada mais velha era, justamente, Euricleia. A criada prontamente descobre que o mendigo na verdade se tratava de Odisseu ao tocar uma cicatriz em sua perna.
Essa cena é cercada de polêmicas, visto que há uma acalorada discussão se o herói queria ser identificado ou não pela criada, ou seja, se Odisseu deseja ou não ser reconhecido. O autor argumenta que o herói desejou ser reconhecido, visto que esse momento é crucial para a narrativa. Nas palavras de Da Silva:
Odisseu pode ter desejado ser reconhecido por Euricleia? … Os elementos para uma resposta a essa difícil questão acumulam-se em torno de alguns pontos principais: uma tentativa de estabelecer as bases no seu próprio oîkos, dentro de um plano mais amplo para a retomada estratégica do seu espaço como o grande patriarca, uma vontade de recuperação do nome, perdido em suas errâncias por terras ignotas (lembremo-nos, por exemplo, do episódio na caverna de Polifemo, onde literalmente passa a ser chamado de “Ninguém” [Oûtis]), por meio de uma recuperação do significado profundo desse seu nome, um desejo de reconhecimento do seu passado, da sua genealogia e do poder contido em suas raízes familiares. Ora, a figura que reúne a possibilidade de responder a todas essas aspirações é Euricleia. (2018, p. 22)
Acreditamos que é possível montar um paralelo entre todos os efeitos listados no trecho acima em Odisseu com os cuidados oferecidos ao paciente por seu analista. Figueiredo (2012) sugere que, ao longo de uma análise, o psicanalista circula e oferece diferentes tipos de cuidado ao analisando. As diferentes dimensões de cuidados oferecidas são o sustentar e o conter, o reconhecer, o interpelar e o reclamar (reclaiming) e a reserva. A partir dessas considerações, surge-nos na mente a pergunta: nesse ponto da narrativa, Odisseu já havia sido reconhecido por seu filho e por outro criado, então por que o reconhecimento por Euricleia foi capaz de gerar efeitos tão poderosos e preciosos? Ogden (2010) diz que o analista é aquele que auxilia o paciente a sonhar seus sonhos não-sonhados e seus sonhos interrompidos. Por sonhos não-sonhados e sonhos interrompidos, o autor compreende como experiências emocionais que não puderam ser elaboradas de forma satisfatória. Não consistiria justamente no papel exercido por Euricleia?
Sugerimos que Euricleia, assim como as mulheres/analistas negras no contexto brasileiro, ocupava o lugar de objeto-a. Na condição de criada/ escrava que cuidou de Odisseu em sua infância, de objeto de desejo interditado do pai e confidente dos segredos familiares, ela ocupava a posição de causa de desejo e de rebotalho, tal como Lacan (1998) situou o objeto-a e, consequentemente, o lugar do analista. Essa complexa posição que ela ocupava na fantasia de Odisseu - e de outros personagens na trama - foi o que a permitiu auxiliá-lo a retomar seu nome próprio, de reconhecer seu passado, sua genealogia e seu poder. Em outras palavras, de reatualizar seu passado frente às dificuldades do presente (Da Silva, 2018). Não aconteceria algo análogo em uma análise?
Cogitações
Ao longo deste breve ensaio clínico, observamos questões fundantes da psicanálise contemporânea no Brasil que se articulam: à história do território - ao conjecturarmos sobre o papel da mulher negra na constituição da subjetividade brasileira e seus efeitos na produção de um saber inconsciente. Bem como à produção literária que fundamenta parte das narrativas criadoras da psicanálise - as tragédias e mitos gregos, desde o início utilizadas por Freud para elaborar aportes teóricos sobre a subjetividade no ocidente.
Essa articulação entre história brasileira e suas ressonâncias na chamada história geral, apontam para algo que se estrutura na psicanálise no que nomeadamente chamamos de “papel/lugar do analista”. Esse lugar é capaz de apontar um sentido ao sujeito sem que participe ativamente dele, possibilitando uma caminhada singular rumo ao desejo e às condições materiais de sua efetivação. Notadamente, esse lugar, tanto na história geral quanto na história do Brasil é ocupado por mulheres escravizadas. O que isso quereria dizer da função do analista e seus efeitos?
Na dialética do senhor e do escravo apresentada por Hegel (1992) o escravo é aquele detentor do saber e aquele que trabalha, sendo o valor de seu trabalho imputado ao seu senhor. Essa passagem, analisada por um viés psicanalítico, é o que viabiliza a produção da transferência, imputando ao analista o seu suposto saber (Lacan, 1992). No entanto, para que uma análise ocorra efetivamente, essa suposição de saber atribuída ao analista (escravo) deve cair, sendo realocada ao inconsciente, processo que acontece ao longo de uma análise.
Esse processo ocorrerá por meio das mais variadas operações clínicas. Aqui apresentamos algumas delas: os sonhos não-sonhados (Ogden, 2010), o segundo e o terceiro umbigo dos sonhos apresentados por Kaës (2014), que evidenciam de que modo as representações e fantasias agem potencialmente no inconsciente, favorecendo transferências e ressignificações históricas e, podendo ser sonhadas e pensadas pelo analista, privilegiam a assunção do saber inconsciente por parte do analisando. Esse processo só pode ser viabilizado a partir do momento em que reconhecemos, historicamente, quem realizou o exercício dessa função ao longo dos séculos no ocidente: as mulheres e, no caso do Brasil principalmente, as mulheres negras.
A aposta neste reconhecimento produziria um efeito ético em nossa escuta, no que tange a compreensão experienciada da posição do analista como objeto-a. Para que essa posição de fato se torne uma função, ela precisa ser historicizada, compreendida em sua estrutura, sabendo, assim, dos efeitos da cultura nas análises que conduzimos. Negritar a nossa escuta (Paulon & Barbosa, 2023) é, portanto, uma aposta ética e política de ressituação do campo das subjetividades ocidentalizadas: que ouçamos a via da desigualdade das produções de sentido para que, um dia, alcancemos a possibilidade de escutar a verdadeira diferença.