Acho que mais me imagino do que sou ou o que sou não cabe no que consigo ser e apenas arde detrás desta máscara morena que já foi rosto de menino.
…
Só disponho do meu corpo para operar o milagre esse milagre que a vida traz e zás
dissipa às gargalhadas.
(Gullar, 1987, p. 39)
O eu sendo em mim
Ter um nome é o primeiro movimento em direção a Ser. Passamos toda a vida para vir a ser o nome que recebemos. Viver é um esforço para ocupar o dentro do nosso nome.
O ritual cristão do batismo é um modelo interessante desse caminho. Sem nome, habitamos a geografia imprecisa, incerta e indefinida do não-ser: o limbo. As almas não batizadas estão afastadas da presença de Deus. Deus é o amor que passa a nos habitar quando recebemos um nome. O primeiro passo para vir a ser é ter um nome. Viver e expandir a mente é aumentar mais e mais a sintonia entre mim e a minha identidade: o eu sendo em mim.
Para existir um bebê, é preciso haver duas pessoas férteis; para haver um batismo, é preciso uma pessoa que batiza e outra que é batizada; para haver uma psicanálise ontológica (Ogden, 2020), é preciso considerar-se o objeto psicanalítico como a dupla - analista e analisando - que busca o acesso à mente e a expansão do Ser pelo viés intersubjetivo. Vincular é cativar, e cativar é criar laços (Saint-Exupéry, 1943/1986, p. 68).
O laço de amizade, amoroso ou psicanalítico, para ser efetivo, tem de ser afetivo. O afeto cria um continente vital para que se possa conviver e interferir nas pulsões amorosas e violentas do humano. Já que não podemos livrar-nos do mal e da violência, podemos desenvolver recursos para conviver e interferir em sua ação destruidora.
Para ser psicanalista, preciso ser capaz de laços afetivos que cativem e sustentem movimentos humanos de amor e de ódio. Falso-self (Winnicott, 1960/1983) não produz laços verdadeiros.
O complexo de Édipo, pilar estrutural da psicanálise, foi desenvolvido por Freud em diferentes momentos da construção da teoria psicanalítica. A consolidação de suas ideias a respeito está principalmente nos trabalhos de 1923, “O eu e o id”, e de 1926, “Inibição, sintoma e angústia”. Ambos dão forma singular ao que Freud apreendeu como “complexo de Édipo” e sua “dissolução”, desenvolvendo e destacando aí, até mesmo, aspectos qualitativos e funcionais que repercutem dentro do eu, da estrutura mental da pessoa, e de sua possibilidade de expandir-se na vida e no trabalho psicanalítico.
Esses aspectos geram, ou não, a possibilidade de se desenvolver uma mente flexível, capaz de conter e buscar expansões; ou uma mente rígida, cruel, incapaz de apresentar esses desenvolvimentos, pois, imersa em sentimentos ameaçadores e rigorosos, tolhe o desenvolvimento e patrocina uma conduta mental repetitiva, não criativa, e marcada por dor mental paralisante (Perrini, 2017a, p. 142).
Em suma, surge na mente que pode se desenvolver, a possibilidade de um superego mais amigo e regulador da autoestima, a internalização de uma identidade de gênero e a perspectiva de um desenvolvimento do Eu no sentido do ser, da ética e da apreensão estética.
O eu sendo no mundo
Ser permite uma realização emocional cujo norte passa a ser a busca do outro, diferente de mim. Fora dessa perspectiva, o Eu permanece na dimensão do narcisismo.
É o que Bion propõe quando assinala o movimento da mente no sentido do narcisismo => social-ismo como um dos elementos de psicanálise (Bion, 1963). A possibilidade desse movimento permite a realização mental da presença do outro em nós, e abre espaço para a possibilidade efetiva da fertilidade, que Bion chama de “Trindade cognoscível” (Bion, 1965/2004, p. 183).
Se algo não existe sozinho, e pede companhia, temos um par. Se há fertilidade nas partes desse par, temos um casal. E só o casal tem a possibilidade misteriosa de inaugurar na mente, e concretizar na vida, um terceiro. É o segredo da trindade: pais, um filho e o milagre do espírito. A alma nasce do par que pode se transformar em casal (Perrini, 2021, p. 118).
Um dos últimos trabalhos de Freud (1937/2018) - “Análise terminável e interminável” -, escrito muito próximo de sua morte, alerta para a questão da relativa finitude, em relação à análise pessoal.
Há uma finalização para a análise pessoal, para a formação institucional, mas não para a busca, admiração e curiosidade pelo saber, pelo viver experiências que nos levem cada vez mais para perto de nós mesmos.
Sofia, personagem de O mundo de Sofia (Gaarder, 1991/2001, p. 30), afirma que o filósofo (e eu digo também o psicanalista) só pode ser e continuar sendo psicanalista se não perder a capacidade de se admirar.
Empresto de Freud, e do seu texto “Análise terminável e interminável”, a ideia que persigo neste trabalho: criar laços - eu sendo no mundo - é desenvolver uma identidade, atingir a dimensão da fertilidade, estudar e viver psicanálise sem perder a capacidade de se admirar, buscar e suportar sempre o vir a ser e desenvolver uma generosa provisão de compaixão, ternura e gratidão. Eis a difícil travessia, nossa tessitura terminável e interminável.
Os pontos cardeais da tessitura para o vir a ser
A ideia de travessia ajuda a adicionar ao modelo a presença do que são pontos cardeais (Perrini, 2017b).
É estimulante pensar nesses pontos de referência pela função que eles têm de orientação, e pela sua relação com o que seja principal, fundamental ou cardinal, até mesmo lembrando que a palavra “cardinal” deriva do latim, de cardo, que significa eixo.
Temos um eixo, uma bússola do que pode ser a travessia rumo ao vir a ser eu mesmo, e ao vir a ser psicanalista: a possibilidade de ir na direção do Outro, diferente de mim.
O eixo norte
No norte está a análise pessoal do analista, as supervisões, os estudos rumo à formação pessoal e institucional, e a influência marcante de pessoas sensíveis, artistas, poetas, músicos e analistas.
O psicanalista carrega na alma sua personalidade trabalhada, sua “intuição psicanaliticamente treinada” (Bion, 1965/2004), em muitos anos de análise pessoal, muitíssimas horas de supervisão, seminários, estudos teóricos, exercícios clínicos, e uma gama de pessoas, artistas, poetas, músicos, alguns analistas também, que nos tocaram profundamente.
A soma dessas influências é essencial para o desenvolvimento de nossa própria função analítica, e para a preservação de valores como a criatividade, a coerência, a simplicidade e a ética.
Na impossibilidade de ser justo com todas as contribuições viscerais que me permitem ser o que posso ser, quero destacar a memória de Odilon de Mello Franco Filho, com quem experimentei uma fértil experiência de “análise de supervisão”, expressão que empresto de Fédida (2001), e a emprego como ele a desenvolveu. Destaco também as presenças analíticas em mim de Sérgio Trunci e de Maria Cecília Andreucci Pereira Gomes, meus sempre companheiros internos e presentes analistas.
Sublinho ainda a espetacular experiência que vivi com a leitura de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Esse pequeno grande livro de 568 páginas começa com a palavra “nonada” e se encerra com a palavra “travessia”, o que em si já diz muito. Internalizar que a vida se inicia no “nonada” e não termina no “notudo”, mas simplesmente se desenrola em travessia terminável e interminável que nos aproxima de uma tessitura amorosa de nós mesmos, e do vir a ser o psicanalista que buscamos, é a contundente vivência dessa obra-prima.
Tal experiência nos oferece a possibilidade de conviver com pessoas diferentes que podem auxiliar na emergência do que temos de melhor. Se pudermos tolerar essas diferenças, temos o caminho que nos permite discriminar, de verdade, o que seja o Eu do Outro.
Construir um continente mental para acolher o que somos, o que são os outros, e o que nos nasce e passa a ser nosso com base no vínculo com os outros são as partes vivas dessa travessia-norte.
O eixo sul
O vir a ser psicanalista, apesar de tantas com-vivências, é essencialmente uma experiência pessoal. Eis o eixo sul de nossa travessia: buscar incansavelmente o ser genuíno, o ser original.
Max Raphael, citado no livro As origens da forma na arte (Read, 1965/1981, p. 11), iluminou o sentido de originalidade com a seguinte constatação: “originalidade não é o desejo de diferenciar-se dos outros, de só produzir o que é totalmente novo; é perceber (no sentido etimológico) a origem de nós mesmos e das coisas”.
Genuíno, segundo o Dicionário Houaiss, deriva da palavra latina genuinus, que significa inato, nativo, autêntico, verdadeiro, efetivo e real.
Está no trabalho analítico de nossas origens o caminho para o Ser original e genuíno, não apenas para conhecer esse ser original e genuíno.
No respeito ao genuinus do nosso analisando está o compromisso com a verdade que precisamos perseguir, acolhendo e trabalhando toda a dor e todo o prazer que esse caminho possa trazer para o analisando, para o analista e para a dupla analítica.
A busca dessa verdade original é que vai permitir - quando trabalhada intensamente na sala de análise - que desenvolvamos recursos essenciais para podermos Ser, até mesmo analistas.
Ser capaz de tolerar o não saber. Sentir-se humano. Acolher toda a carga da qual fomos feitos, até mesmo o ódio, a inveja, a voracidade, a rivalidade e todas as emoções compromissadas com as forças desagregadoras da mente. E ainda assim ser responsável, ser capaz de sonhar, desenvolver a fé em nós mesmos para poder desenvolver a fé no método psicanalítico.
O dizer de Lou Andreas Salomé resume nossa travessia-sul: “Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o passar do tempo, permanecer objeto de amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser entendido como uma força vital” (citada em Ferreira, 2000, p. 189).
O eixo leste
O eixo leste contempla o nascer do sol, o lado de onde, diariamente, emerge a luz que nos ilumina. A poeta Helena Kolody diz em poema antológico:
Para quem viaja ao encontro do sol, é sempre madrugada. (Kolody, 1985, p. 45)
No caminho analítico, o leste está ligado ao vínculo, à possibilidade intrínseca de haver psicanálise quando há um par criativo trabalhando, os dois juntos em busca de uma sintonia.
Eis a força do estar em comunhão à espera de momentos de cesura (Bion, 1977/1981), em que o par poderá adentrar e construir suportes e continentes para novas e desconhecidas dimensões da mente, em meio às fortes ameaças e turbulências psíquicas que uma análise propicia.
Os índios tupis-guaranis criaram uma palavra que tem muito a ver com esta expressão da força do vínculo: Itaipu.
“Ita” significa pedra, e “ipu” significa “que canta” (Bueno, 1987): Itaipu é a pedra que, recebendo nela o impacto da água, canta.
Não existe canto na pedra se não existir a relação dela com a água, como não existe “canto analítico”, em analisandos ou analistas sozinhos.
Criar laços é construir uma intimidade ética no setting analítico que precisa ser acompanhada de cuidados e renúncias. Abrir mão, por exemplo, da vida social e da verticalidade que estabelecem limites entre analista e analisando, para se construírem limites-continentes com base na assimetria da vivência analítica, e no respeito ao setting que contém o encontro e a intimidade dentro da sala de análise.
São esses os caminhos que estabelecem e viabilizam a construção de uma continência efetiva e afetiva para a energia potencial que emerge da mente e a expande, quando há um processo criativo de análise.
Ética e vínculo são as a palavras que resumem a nossa travessia-leste
O eixo oeste
Se o oeste é o local geográfico onde o sol se põe, vamos encontrar no oeste psicanalítico as emoções que são produtos de nosso desenvolvimento e de nossa expansão mental. Não nascemos com elas, mas podemos desenvolvê-las: empatia, consideração, compaixão e gratidão.
O tempo e as experiências burilam nossa “pedra que canta”, e ela pode trazer algumas emoções sofisticadas que funcionam como sustentação à vivência analítica.
Com empatia, nos pomos de verdade no lugar do outro. Ganhamos condição de sentir o sofrimento que a pessoa não consegue acolher, e que se transforma em sintomas e atos.
Com empatia, analista e analisando são responsáveis pelos laços construídos, e pela possibilidade preciosa de se trabalhar, em comunhão, sobre estruturas mentais cada vez mais primitivas.
Apreendemos o dizer de Freud (1923/2012, p. 53), em “O eu e o id”, de que o ódio é o precursor do amor. Internalizamos a sugestão de Klein (1957/1975) segundo a qual a inveja trabalhada analiticamente é a precursora da gratidão.
Consideração é estar no mesmo plano, na mesma região espacial de um astro, ou de uma estrela. Esta é a origem etimológica da palavra “consideração”: fazer parte do mesmo espaço sideral.
Considerar inicia-se com base em uma experiência, viva e humilde, de não saber quem é o outro, de não ter planos pré-determinados em relação ao outro, mas ir conhecendo-o a partir do “nonada”, do silêncio necessário e suportado para que o desconhecido possa emergir, única condição de se aproximar, e conhecer aquele que é diferente de mim.
Respeita-se o outro quando se desenvolve consideração.
“Compaixão é fortaleza”, diz Renato Russo (1989), em “Há tempos”. E confirma, em seguida, dizendo que “lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa”.
Compaixão é produto de água que viajou muito, que desistiu de esperar a vida emergida apenas de águas limpas.
Compaixão é produto das ressacas de um mar lunático, das águas que são sujas porque se movimentam. Compaixão nada tem a ver com remanso.
Empatia, Consideração e Compaixão desembocam na possibilidade da Gratidão. A dedicatória de Grotstein (2007/2010) para o seu analista, em seu livro Um facho de imensa escuridão, diz de forma incisiva: “A Wilfred Bion, minha gratidão por Me permitir reencontrar-me comigo mesmo - e por encorajar-me a brincar com as suas ideias, bem como com as minhas próprias”.
Para finalizar
Este texto pretende ser um testemunho de fé e amor no método psicanalítico.
É preciso estar presente no que se diz e no que se faz para ser reconhecido, de verdade.
A integração é possível quando se podem criar laços. O eu sendo em mim e o eu sendo no mundo são os nossos desafios.
Os pontos cardeais mencionados podem ser decisivos na construção dessa caminhada e na possibilidade de haver uma tessitura sintônica com a nossa voz.
Da integração viva de nossas diferenças, surgem homens e mulheres vitalizados e vitalizadores, artífices de uma psicanálise possível e fértil, porque viva.