Introdução
Diferentemente do senso comum, que costuma situar o luto como uma reação pontual e imediata à perda de uma pessoa amada, para a psicanálise esse é um processo moroso e complexo, que incide sobre qualquer situação de perda de um objeto ou de um ideal intensamente estimado. Nesse contexto, o luto é definido como a elaboração de uma perda que torna possível o reinvestimento da libido em outros objetos e, consequentemente, a restituição da homeostase psíquica (Freud, 1917/2010c). Decorre daí que a presença de obstáculos duradouros à realização do luto pode acarretar em um significativo estreitamento das potencialidades subjetivas de resposta a adversidades psíquicas. Por isso, a importância de reconhecer que a realização do luto é um fator determinante para a manutenção da saúde mental (Kehl, 2012) em todas as fases da vida, da infância à velhice.
Tomando essa questão da perspectiva do atual contexto brasileiro, no qual, em um momento de arrefecimento da pandemia, avaliam-se os impactos da covid-19 e as medidas necessárias para dirimir os danos infligidos à população, verifica-se a urgência de se criar condições mais favoráveis e dignas de acolhida dos relatos de perdas de amigos e familiares próximos falecidos. É necessário pôr em relevo as mais de 684 mil mortes de pessoas diretamente vitimadas pela pandemia5 e as consequências dessas perdas no campo sociopolítico-econômico. Trata-se de uma discussão que o governo federal, mesmo no auge da crise pandêmica, descredibilizou e evitou, fato que exigiu um esforço redobrado dos municípios, estados e da sociedade civil. Tem-se em vista aqui as recusas de ofertas de vacinas que seriam direcionadas a ações de imunização, as denúncias de superfaturação na compra de vacinas, a insistência na indicação de tratamentos sabidamente ineficazes, sem contar as inúmeras manifestações públicas do presidente da República, nas quais afirmou que a pandemia era apenas “uma gripezinha”, que ele não é coveiro e que o vírus apenas encurtou em algumas semanas a vida de pessoas com comorbidades.6
Com base no resgate desses acontecimentos e fundamentado no trabalho de Ferenczi, (1934/1992), é possível situar os obstáculos ao luto nas atitudes e falas do outro que desautorizam e desqualificam vivências de dor e perda. Daí o caráter intersubjetivo do trauma, que perturba a capacidade de pensar, resistir e reagir diante uma situação psíquica adversa. Por isso, a ênfase de Butler (2019) no caráter político do trabalho de luto, que, embora seja em grande parte vivido como um processo intrapsíquico, necessita de reconhecimento e lastro social e simbólico para acontecer. Butler denuncia então a constituição da figura de pessoas indignas de serem enlutadas, cuja memória é tratada como não merecedora da atenção social.
Esses apontamentos corroboram o papel estratégico no atual contexto brasileiro da criação do memorial Inumeráveis (Dourado, Stengel, Silva & Machado, 2021), que almeja contar a história das vítimas da covid-19, sob o pressuposto de que cada número nas estatísticas da pandemia refere-se a uma pessoa, que é dotada de singularidades e diferenças e que deixou para trás familiares, amigos e companheiros. Se para muitos destes não foi possível vivenciar um velório ou uma situação coletiva de despedida, pelo menos os seus entes queridos vítimas da pandemia terão a sua história contada e lembrada, o que não deixa de constituir uma forma de reconhecimento da dignidade do luto dessa perda.
Do exposto, este trabalho propõe falar da crônica, enquanto gênero literário, como uma forma possível de elaboração do luto por meio da escrita. Nela, o escrever constitui um esforço de deslindar as intrincadas camadas de lembranças, em um relato muitas vezes não-linear que transita entre a ficção e a realidade objetiva. Partindo da narrativa de um evento cotidiano, a crônica pressupõe uma implicação subjetiva do escritor na observação e análise do real, criando um enodamento entre a sua realidade psíquica e os acontecimentos concretos e atuais (Gutiérrez, 2019; Ramos, 2018)
Comenta-se o livro Quase memória, de Carlos Heitor Cony, que é interpretado como uma bricolagem de crônicas sobre as lembranças de seu pai morto. Tais crônicas são ligadas pela narrativa de um evento recente, que atualiza e faz avançar o trabalho de luto. Além das já citadas referências a Freud, Ferenczi e Butler, este trabalho apoia-se no comentário que J. Lacan (1966/1998) realiza do conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe. Dessa forma, a proposta central deste artigo é explorar as reverberações clínicas e políticas da analogia criada por Cony: o luto como a recepção inesperada de um pacote despachado por alguém já falecido que chega então ao seu destinatário após um longo extravio; o desembrulhar do pacote como um processo que acompanha a elaboração das memórias do escritor vinculadas ao remetente.
Método
O foco da análise deste artigo recai no tempo subjetivo de elaboração do luto, que encontra na crônica um espaço narrativo de articulação. Seu processo de escrita implica em uma estratégia de autofiguração do escritor na história, por meio da qual ele se torna muitas vezes o próprio objeto da crônica. Valendo-se de sua própria subjetividade, o cronista tenta expressar a experiência complexa, caótica, multifacetada e até mesmo indecifrável de viver. A crônica retrata o íntimo e o particular do escritor como ponto central da narrativa, ao mesmo tempo que agrega diferentes pontos de vista sobre a sua própria experiência, que lhe serve de ponto de partida (Gutierrez, 2019). Assim, o ato de escrita e leitura de crônicas permite ao escritor e, por extensão, ao leitor: “explorar os interstícios silenciados, os segredos escondidos, que lhe acenavam em todas as palavras não ditas e situações não esclarecidas” (Marinho, 2008, p. 136). Dessa forma, a crônica é tomada como uma modalidade ficcional de testemunho, como uma importante ferramenta de observação e interpretação da realidade vivida (Ramos, 2018).
Quase memória, de Carlos Heitor Cony (2003), é aqui analisado como uma coletânea de crônicas que tratam do luto do pai. Salienta-se que esse livro não possui uma classificação literária definitiva. O próprio autor diz que nele a sua escrita “oscila desgovernada, entre a crônica, a reportagem, e até mesmo a ficção. Prefiro classificá-la como quase-romance” (Cony, 2003, p. 07). A escolha por analisá-lo como uma coletânea de crônicas se justifica pelo seu caráter testemunhal, que presentifica ao leitor o longo processo de desenodamento das lembranças, que é descrito como análogo ao desempacotamento de um embrulho enviado pelo pai, então já falecido havia dez anos. Esse período de extravio da encomenda é tomado como uma metáfora do tempo necessário para a elaboração subjetiva dessa perda. Trata-se de um esforço de escrita marcado por uma ética própria, que põe em questão os limites entre o descritivo, o fictício e o literário. Assim, parte-se de uma aproximação entre o relato do luto no texto de Cony e a estrutura do testemunho, que para Seligmann-Silva (2008): “impõe uma crítica da postura que reduz o mundo ao verbo, assim como solicita uma reflexão sobre os limites e modos de representação” (p. 1).
Para respaldar esta abordagem, é pertinente uma rápida comparação de Quase memória com outro livro de Cony (2011), Eu, aos pedaços, no qual o autor retoma 15 anos depois o tema do luto do pai. A diferença desse texto reside no fato de que nele o formato do gênero da crônica é assumido de forma inequívoca. Além disso, os assuntos dos quais as crônicas tratam são diversificados. Não menos importante, falta-lhe a imagem do embrulho extraviado como recurso de enganchamento dos capítulos, que permanecem separados em episódios desconectados.
O nome do livro, Eu, aos pedaços, também não deixa de remeter a uma abordagem do luto, na medida em que, para Freud (1917/2010c), apesar de o Eu surgir da internalização, simbolização e integração da imagem do próprio corpo (Freud, 1923/2011), no curso do desenvolvimento sua estrutura torna-se pouco a pouco um mosaico das identificações amealhadas de traços de amores vividos e abandonados. Daí a sua natureza heterogênea e alteritária.
Como aporte teórico para a análise de Quase memória, utiliza-se como base “Luto e melancolia”, de Freud (1917/2010c) e outros textos do mesmo autor que abordam temas como o narcisismo, a identificação e a memória (Freud, 1914/2010a, 1923/2011, 1930/2010d). Também são feitas referências a artigos e livros de pesquisadores que estudam o luto, da perspectiva da psicanálise, e a crônica, no campo da teoria literária. As contribuições de Butler e Lacan também são trazidas à baila para destacar a dimensão política e social do luto e fundamentar a articulação entre o extravio do pacote no relato de Cony e o tempo subjetivo de elaboração do luto.
Uma encomenda chega ao seu destinatário
Quase memória conta as lembranças revividas por ocasião do recebimento de um pacote, em uma tarde bucólica, enquanto o escritor almoçava. O remetente era o próprio pai, falecido havia 10 anos. Desconcertado e instado pela surpresa, Cony põe-se até o final do dia a fazer associações espontâneas entre os detalhes do pacote e as recordações do pai. Cada minúcia da encomenda e, por extensão, de suas próprias memórias, é acompanhada pela descrição detalhada dos cheiros, sensações, sentimentos e afetos evocados no autor.
A primeira reação de Cony foi de espanto: “sentia um calor estranho, a cabeça latejando, sentia até mesmo um início de suor na testa” (Cony, 2003, p. 11). A partir daí, diz que só quis ficar sozinho, não necessariamente para abrir e ver o conteúdo do pacote, mas para pensar a seu respeito. O início do livro possui, portanto, o tom de perplexidade e ceticismo diante de uma realidade ao mesmo tempo evidente e improvável. À medida que os detalhes do embrulho eram analisados, contudo, traços do remetente deixavam-se reconhecer de forma inequívoca: a dobradura do pacote, o nó, a letra indicando o nome e a ocupação do destinatário, bem como a forma por meio da qual foi entregue: uma pessoa encarregada, e não o correio normal.
Freud, em “Luto e Melancolia” (1917/2010c), comenta que o luto é uma reação psíquica à perda de um objeto intensamente investido libidinalmente, de forma que esse processo não incide apenas sobre pessoas amadas, mas também sobre ideias abstratas e anseios intimamente valorizados. No início do trabalho de luto, ocorre um abatimento. A dor psíquica é a primeira reação da pessoa enlutada, muito compreensível, principalmente quando analisada do ponto de vista econômico. A realidade mostra que o objeto em que se investiu intensamente não existe mais, exigindo que toda a libido que lhe era destinada seja canalizada para outros destinos. A dor do luto é, portanto, resultado da tensão entre os afluxos libidinais que buscam conservar os mesmos investimentos e as frustrações impostas pela prova de realidade, que indica a impossibilidade de manutenção do estado atual do circuito pulsional. Surge daí uma dissonância simbólica extremamente pesarosa que precisa ser lentamente reequacionada a fim de restabelecer novamente a homeostase psíquica.
O livro não foca a sua narrativa nas primeiras acomodações subjetivas logo após a morte do pai. No entanto, instigado pela rememoração de algumas lembranças evocadas na recepção do pacote, Cony (2003) compara o impacto desses primeiros momentos do trabalho de luto às suas angústias e fantasias infantis:
Levei anos para me habituar. Em criança, quando se falava em viajar, minha primeira reação era de angústia, imaginava a gente no trem ou na barca esperando o pai, o trem e a barca partindo e a gente sem ele. Como iria ser a nossa vida sem a sua presença, seus truques, suas técnicas? (p. 56)
Essa citação demonstra que no início do trabalho de luto a perda vivida ainda não possui uma valência psíquica. O objeto continua presente na realidade psíquica na forma de um excesso de representação e investimentos, o que gera frustrações recorrentes no confronto com a realidade objetiva. O trabalho do luto inicia-se com essa quase insuportável exigência de desinvestimento das representações e recordações mais corriqueiras e cotidianas relacionadas à pessoa morta (Freud, 1917/2010c).
Coutinho Jorge (2010, p. 149) afirma que o processo do luto é uma tentativa de reorganização psíquica, que busca constituir uma nova homeostase por meio da rearticulação entre o simbólico e o imaginário - as palavras e as imagens -, uma vez que os arranjos psíquicos já consolidados tornaram-se fragmentados e desarticulados em consequência desse encontro faltoso com o real. Tratase, de acordo com Freud (1917/2010c), de um lento e gradual processo de reacomodação, uma vez que a libido resiste a se desligar dos investimentos já consolidados. Isto é, mesmo quando a realidade mostra que o objeto de amor não existe mais ou encontra-se inacessível, a libido insiste em retornar a seu estado anterior, ignorando todos os indícios contrários.
A perda do objeto é vivida como uma perda narcísica, o que exige um esforço de cicatrização psíquica para que a pulsão sexual possa ser novamente reinvestida (Nasio, 2005), haja vista que o Eu é o grande reservatório da libido: trata-se do lugar para onde ela reflui quando o caminho para um investimento objetal na realidade está obstruído (Freud, 1914/2010a, 1923/2011). Dessa forma, algumas das reações mais frequentes que se seguem à perda de um importante objeto de investimento são o apego às reminiscências da pessoa amada, o desinteresse pela realidade e, consequentemente, o afastamento dela (Freud, 1917/2010c).
Decorre daí a necessidade de distanciamento de toda forma de laço social que não tenha relação direta ou indireta com a memória do falecido (Freud, 1917/2010c). Freud compara essa situação psíquica à doença orgânica, citando uma frase de um humorista austríaco famoso por sua ironia e humor cáustico: na dor de dente todo o mundo cabe no buraco da cárie. Assim, todo o interesse do Eu se retrai para ele mesmo com o intuito de curar uma ferida narcísica que não para de jorrar libido.
Essa descrição reverbera claramente o relato do livro, cuja redação é impulsionada pela necessidade de se afastar do mundo. Assim, após receber a encomenda e lhe escrutiná-la a distância, Cony inicia o trabalho de desempacotamento do embrulho, ao mesmo tempo que mergulha de corpo e alma na conjuração das lembranças do pai:
Na saleta de espera, que antecede a minha, o telefone tocou, a secretária atendeu, ela sabe que, quando me fecho, a ordem é dizer que não estou e que não sabe quando vou chegar. Pode parecer desculpa, ou mentira, mas é uma verdade que consegui produzir: não estou, nem sei quando vou chegar. (Cony, 2003, p. 35)
Esse conflito entre a viscosidade conservadora da libido e o princípio da realidade é vivido com intensos pesar e sofrimento, fazendo necessário que cada lembrança seja revivida em cada uma de suas ramificações e afetos. Assim, os investimentos podem ser deslocados gota a gota, pedaço por pedaço, para outros alvos. Tal trabalho ocorre, via de regra, pela incorporação por meio da identificação de traços da pessoa amada ao próprio Eu (Freud, 1914/2010a). Dessa forma, vários traços associados à memória da pessoa falecida transformam-se em parte integrante do próprio ao Eu, e o caminho da libido objetal para a libido narcísica é facilitado. Trata-se de uma ação que prepara e mobiliza a libido até então desconectada para que ela possa ser reinvestida novamente em outros objetos da realidade.
A complexidade dos processos psíquicos acima explanados corrobora a presença de um período de latência entre a morte do pai e a escrita de seu luto no livro de Cony. O autor demonstra com isso que o tempo dessa elaboração não é cronológico, mas subjetivo. Em consonância com o relato do autor, a experiência clínica também atesta que, frequentemente, a realização do luto não ocorre imediatamente à vivência da perda. Faz necessário um tempo próprio, que varia substancialmente de pessoa para pessoa, para que a elaboração das lembranças associadas ao ente perdido e a redistribuição da libido investida nele possam ocorrer.
É possível verificar na leitura do livro que o trabalho do luto mobiliza uma considerável quota de ambivalência em relação à pessoa falecida, fato que pode acarretar em dificuldades adicionais para o andamento desse processo. Percebe-se que não apenas as lembranças amorosas e ternas precisam ser remanejadas, mas também as recordações que mobilizam sentimentos de ódio, inveja, raiva e ressentimento, uma vez que tendências agressivas compõem, em maior ou menor medida, qualquer forma de laço social (Freud, 1930/2010d). Além disso, há uma sutil e complexa dinâmica psíquica que une amor e ódio que permeia todas as relações afetivas (Freud, 1915/2010b).
Cony começa a se referir ao pai como um homem de manias e técnicas excepcionais. Tais características estão materializadas na encomenda. Cada detalhe contém uma história: o aperfeiçoamento da técnica do nó perfeito, a caneta de tinta ideal, os cheiros de alfazema, manga e brilhantina que exalavam de sua pessoa e que impregnam o embrulho, além do possível itinerário do pacote, que é então reconstruído na imaginação do escritor com base no resgate dos percursos preferenciais do pai pela cidade.
Percebe-se que, a escrita de Cony torna possível que algumas tendências agressivas direcionadas ao pai sejam reconhecidas, nomeadas e fundidas às ternas, o que permite restaurar no pai uma dignidade que talvez ele não gozasse em vida. O autor lembra as dificuldades financeiras que fizeram o pai explorar áreas até então impensadas, como vender rádios. Mesmo diante dos fracassos, ele é descrito como uma pessoa que solucionava os problemas e sempre procurava uma novidade:
No fundo, o pai nunca ligou para a arte ou a necessidade de ganhar dinheiro. Viver era mais importante para ele. E ele descobrira que as coisas boas (ou que ele considerava boas) podiam ser conseguidas com pouco ou com nenhum dinheiro. (Cony, 2003, p. 64)
É importante salientar que o luto não é um processo linear, o que pode ser verificado na ordenação das memórias do autor no livro. A escrita de Cony encadeia diferentes momentos cronológicos de sua vida, atualizando-os, às vezes os fundindo, e, em alguns momentos, reinventando-os. Daí a ironia do título: quase memória, quase romance.
Kehl (2009) afirma que o enlutado inicialmente procura engendrar alguns momentos de alívio acerca de sua perda para depois se debruçar mais intensamente sobre as lembranças mais dolorosas e íntimas, o que acarreta oscilações ou ciclos de desligamento e resgate das lembranças da pessoa perdida. Freud (1917/2010c) corrobora essa tese, afirmando que o trabalho do luto não é automático. É preciso que cada recordação relacionada à pessoa à qual a libido se encontrava ligada seja reinvestida e ressignificada, de modo que possa adequar-se às indicações da prova de realidade.
É importante demarcar aqui o interesse do fantasiar na elaboração do luto, haja vista que o retraimento da libido no Eu e o desinvestimento das lembranças dolorosas apoiam-se na plasticidade da realidade psíquica e em sua capacidade de reviver as marcas mnêmicas constituídas pelas experiências de satisfação do passado, ao mesmo tempo que as transforma e as reinventa. Daí a importância de um endereçamento que sirva de suporte a essa irrupção brusca de sentimentos e memórias que mesclam prazer e dor, ficção e realidade.
Luto, trauma, memória e testemunho
Pode-se dizer então que, enquanto no luto a perda é passível de ser circunscrita, delimitada e significada; na melancolia, ela permanece opaca e enigmática (Freud, 1917/2010c). O melancólico sabe que perdeu algo que lhe é de extrema importância, mas não sabe exatamente o quê. No dizer de Freud, a sombra do objeto recai sobre o Eu. Dessa forma, a melancolia é caracterizada pela impossibilidade radical de realização do trabalho de luto (Freud, 1916-1917/2014).
Cabe então nesse ponto tentar alinhavar um problema que é crucial para este artigo: se a melancolia pode ser definida como uma impossibilidade estrutural de realização do luto, o que pode então ser dito sobre algumas circunstâncias contingentes e acidentais que, todavia, são capazes de retardar, obstaculizar ou mesmo impedir o luto? Para responder a essa questão, acredita-se que o conceito ampliado de trauma explicitado por Ferenczi é de extrema importância.
Para Ferenczi (1934/1992), o trauma é a “aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa de si mesmo” (p. 109). Sua consequência instantânea é a angústia, que representa um sentimento de incapacidade de adaptar-se diante de eventos potencialmente disruptivos. Daí que todo acontecimento traumático precisa que seu impacto seja efetivado posteriormente por meio de uma desautorização do outro, que engendra no sujeito a descrença em suas próprias capacidades simbólicas de resolução das crises. Partindo dessa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a desautorização da dor do luto pode desencadear efeitos traumáticos duradouros e consequências graves para a saúde dos enlutados (Martins & Rabêlo, 2020).
Aqui a discussão adentra o debate proposto por Butler (2019), de que existe uma hierarquização do luto no campo político. Para a autora, não há dúvida de que há no ser humano uma condição de vulnerabilidade primária - nos termos de Freud (1930/2010d), um desamparo estrutural - que produz uma dependência radical do outro. Como consequência disso, todas as formas de sociedade deveriam envidar todos os esforços para dirimir os efeitos dessas vulnerabilidades. No entanto, percebem-se discrepâncias extremas: a depender de fatores econômicos, culturais e geográficos, algumas vidas são mantidas, apoiadas, protegidas e pranteadas, enquanto outras, além de marginalizadas e invisibilizadas em vida, são tratadas após sua morte como não passíveis de luto.
Na história brasileira, percebe-se que vários traumas coletivos não tiveram suporte e reconhecimento suficientes, o que impediu os sujeitos afetados de alcançar uma elaboração adequada de suas vivências penosas. Sabe-se que tal conjuntura tende a produzir uma reedição da cena traumática inicial, o que acarreta em mais culpa, apatia e vergonha. Assim, por essa via, perpetua-se e até mesmo intensifica-se a ferida narcísica que o trabalho de luto em outras circunstâncias mais favoráveis seria capaz de sanar (Martins & Rabêlo, 2020).
Do exposto, destaca-se aqui a importância do teor testemunhal de uma escrita diante do trauma. De acordo com Antonello (2019), a literatura do testemunho caracteriza-se como a necessidade de compartilhar com o outro, pela escrita, os traumas sofridos. Seligmann-Silva (2008) afirma que o testemunho possui dois fatores fortes em sua escrita: a literalização, que se concentra em tentar traduzir as experiências vividas em imagens ou metáforas, e a fragmentação, que literaliza a psique do trauma e a apresenta ao leitor. No entanto, por estar ligada ao trauma, existe na escrita uma certa impossibilidade de representação do vivido, como também acontece na narrativa oral na clínica. Há, porém, uma confiança no testemunho, no endereçamento ao outro e na resolutividade dos recursos simbólicos que o sujeito traumatizado possui. Daí a aposta na escrita como forma de tratamento do real: “o escritor ou o paciente tentará narrar aquilo que é impossível de ser narrado” (Antonello, 2019).
No livro de Cony, a incompletude da experiência do luto orienta a escrita do autor. Nesse caso, quase alcançar a memória seria a constatação de que o real é também ficcional, impossível de ser simbolizado ou imaginarizado por completo. Cabe aqui retomar a relação entre memória, ficção e realidade subjetiva da perspectiva do ensino de Lacan (1953-54/1986). No Seminário, livro 1, ele afirma que a verdade do sujeito só é posta em causa depois que sua história é revivida com base nos hiatos, incongruências e inconsistências que surgem na fala graças a um endereçamento transferencial. Assim, toda memória sofre os efeitos da censura psíquica, o que quer dizer que ela mente ao mesmo tempo que enuncia parcialmente a verdade.
Seligmann-Silva (2008) em seu artigo, narrando sinteticamente a história da Shoah, fala da literatura de testemunho, que encontra na escrita uma possibilidade de “suportar a desproporção entre a imaginação e o fato” (p. 04), nos registros relatados da experiência dos prisioneiros nos campos de concentração e extermínio nazistas. O autor comenta que a descrição do trauma sempre é parcial, pois ele nunca poderá comunicar a experiência em si. Do contrário, ele concretizaria a singularidade absoluta da catástrofe. Na escrita da lembrança traumática, o que não é simbolizado pode, no entanto, ser margeado por uma escritura literal, que faz litoral com o real. Ainda que tal esforço não consiga preencher a carência da representação intrínseca à irrupção do real traumático, o trabalho de escrita do passado possui uma potência que se desdobra no infinito, criando novas possibilidades de vida: “Onde não existe túmulo, o trabalho de luto não se encerra” (Seligmann-Silva, 2008, p. 6).
Kehl (2012) reitera que por mais que o enlutado sofra, que se sinta incapaz de se ligar a outros objetos libidinais e que tenha seu Eu empobrecido, o que está em causa no trabalho do luto é da ordem da produção da saúde psíquica. Trata-se de um esforço gradual de desligamento da libido em relação aos objetos de prazer e à satisfação narcísica que foram perdidos. A autora acrescenta: “Ter sido arrancado de uma porção de coisas sem sair do lugar: eis uma descrição precisa e pungente do estado psíquico do enlutado” (Kehl, 2012, p. 14). Sustenta-se que tal afirmação pode ser interpretada da seguinte forma: além de perder a pessoa amada, o enlutado perde também a posição que ocupava junto a ela: o lugar de amigo, amado, irmão, filho etc.
Freud (1917/2010c) comenta que é difícil explicar por que o processo do luto se mostra tão doloroso. Uma vez que ele é consumado, todavia, o Eu torna-se novamente livre e capaz de se ligar a outros objetos de amor. Em Quase memória, esse trabalho é demonstrado, passo a passo, em muitas de suas etapas. A esse respeito, Cony escreve:
Acho que o pai me mandou esse embrulho para isso mesmo, para que eu abrisse espaço e ficasse pensando nele - embora eu nunca tenha deixado de nele pensar, de forma fragmentada, a partir das pequeninas coisas da minha vida e da vida dos outros. (Cony 2003, p. 179)
No último capítulo, após ter sido absorvido por um longo período pelo trabalho de escrita, o autor sai de seu escritório e passeia de carro pela cidade nos pontos que seu pai passou ou gostava de frequentar, lembrando novamente os acontecimentos, mas dessa vez de uma outra posição subjetiva:
A sensação é que agora estou sozinho, sobrevivendo em um mundo que acabou. Só não sei ainda, se eu acabei. Talvez o embrulho do pai tenha vindo apenas para me dar lucidez, a consciência da lucidez que substitui a fome que eu deveria sofrer, o sono que eu deveria sentir, a memória que eu deveria esquecer.
…
E tudo enfim nessa noite que não termina nunca, enseada escura onde a memória é âncora e luz, noite que vai adormecer todas as coisas que ele assinou, mas só por algum tempo, até que chegue o amanhã, onde as grandes coisas são feitas. (Cony, 2003, pp. 222-223)
Pode-se pensar o embrulho de Cony com base em uma analogia com “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe. Nesse conto, um detetive é incumbido de investigar o destino de uma carta furtada da rainha. Sabe-se quem a roubou, mas não onde a missiva foi escondida. É necessário, contudo, que o conteúdo da carta seja mantido em discrição, pois este revela informações estratégicas sobre a rainha: “o papel confere a seu possuidor certo poder em certa esfera na qual tal poder é de imenso valor” (Poe, 1949/2017, p. 40). No final do conto, seu paradeiro é descoberto, e ela é devolvida a seu destinatário. O detetive revela então que, por estar em cima da mesa, à frente dos olhos de todos, como um documento de menor importância, a carta passou despercebida à revista dos policiais.
Lacan (1966/1998), em seus Escritos, faz a associação do extravio da carta com o percurso necessário à elaboração simbólica que conduz à assunção de uma verdade subjetiva. Daí a analogia entre a carta, a memória e a escrita do luto proposto neste artigo.
Para concluir: o luto em tempos de negacionismo
Defendeu-se que o luto, em sua essência, constitui uma reação não patológica à perda de um objeto de amor. Apesar disso, sublinhou-se que ele não é uma reação automática, que se faz necessário um tempo próprio a sua consecução, um tempo que é variável, subjetivo e particular. Reconheceu-se ainda que seu andamento pode ser obstaculizado ou mesmo interrompido pela influência de processos intersubjetivos, sociais e políticos. Acentuou-se daí a importância do luto como um mecanismo psíquico estratégico de promoção da saúde.
Quando se parte dessas pontuações para avaliar o contexto brasileiro atual, sobretudo quando se tem em vista as perdas ocorridas durante a pandemia, percebe-se o enorme desafio pela frente que se impõe aos brasileiros. O tema da saúde mental e do luto ganha ainda mais relevância quando se consideram as atitudes intencionalmente assumidas nesse período por muitos governantes, de desautorização da dor do outro e banalização da morte.
Do exposto, pontua-se que o objetivo deste trabalho foi explorar a escrita como uma ferramenta que corrobora o reconhecimento da dignidade do trabalho de luto e que promove o testemunho de seu trabalho. Nesse sentido, a escrita se mostra uma forma de trabalhar e significar coletivamente as perdas, haja vista que muitas vezes um trauma decorrente de uma experiência de luto não elaborada pode persistir silenciado e desautorizado por décadas.
Acredita-se, portanto, que os próximos anos serão marcados pelo retorno de diversas cartas ou embrulhos extraviados, que chegarão a seus destinatários. Tal fato exigirá que estes estejam preparados para acolher e elaborar algumas lembranças e recordações deixadas em suspenso nos últimos meses, ainda que estas se apresentem como dolorosas e difíceis de suportar em um primeiro momento. É necessário deixar claro que essas pessoas não estarão sozinhas, que elas possuem um lugar de endereçamento.