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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.17 

Ateliê

O HUMANO NAS CORRENTEZAS DA VIDA1

Silvana Bressan2 

2Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Valinhos


Estamos aqui para dar vida ao emocionante encontro com Carla Madeira. Percebi que o mecanismo da criatividade da escrita da autora provoca um certo suspense na obra que envolve e segura o leitor. É como numa sessão de análise em que o próprio processo analítico faz o analisando querer mais e mais uma sessão, porque libera uma criatividade que o analisando quer ver aonde vamos chegar com toda aquela conversa. Isso cria um paralelo significativo com o nosso movimento emocional analítico, tanto que quando encerramos uma sessão dizemos: “continuamos na próxima”.

Acredito que suas obras apresentam uma escrita que segue um modelo literário que é como um rio psíquico, cuja corrente percorre curvas que se desmembram em outros sentidos, seguindo por afluentes e desaguando no mar sem desaparecer, mas expandindo-se e transformando-se em outras águas, assim como a psicanálise.

Quero contar sobre a minha experiência de aprendizagem como analista e leitora do humano nas correntezas caudalosas da psicanálise e da literatura, mergulhada na obra dessa autora, e abordar isso de uma perspectiva um tanto pessoal, já que esse campo é vasto e está presente desde quando o criador da psicanálise empreendia seu trabalho pioneiro. A articulação entre as áreas da literatura e psicanálise é antiga. Com postura investigadora, Freud encontrou na literatura importantes chaves em termos de expressão de nossa interioridade e compreensão do inconsciente. Ainda que existam limites que demarquem e distingam esses dois campos com conhecimentos próprios, é fato que, sem a existência da literatura, a psicanálise como a conhecemos não seria tudo o que é.

Quero destacar três pontos que são compartilhados por essas duas áreas da produção humana: o primeira é a matéria-prima de cada uma dessas áreas, que é a vida e suas paixões; o segundo é a função da palavra como vínculo nas relações humanas para apontar a vida e, por último, o mistério do inconsciente.

Entendo que o mistério do inconsciente é mais fundante e enigmático para inspiração artística. Muitos se perguntam de onde vem essa condição para criar algo? Como um psicanalista pode ter acesso ao estado de alma, ao infinito desconhecido dentro de nós mesmos que é o inconsciente, ou a subjetividade de seus analisandos, se não percorrer os labirintos que se manifestam nas narrações dramáticas da literatura? Não seria essa a potência literária para a psicanálise ou para o psicanalista?

Em 1908, Freud escreveu sobre os escritores criativos com suas obras literárias e nesse texto pergunta: “Será que devemos procurar já, lá na infância, os primeiros traços de atividade imaginativa?” (Freud, 1908/1976, p. 149). Ele entendeu que a ocupação favorita e mais intensa da criança é o brincar. E nessa busca, ele encontra a fantasia, o devaneio ou sua realização como uma produção artística do adulto, correspondente à brincadeira. Assim, perguntamos: a literatura pode dar voz ao inconsciente?

A psicanálise foi criada para dar continência ao sofrimento por meio de um método próprio de escuta clínica. Já a literatura é uma das ferramentas que o psicanalista utiliza, e qualquer pessoa tem livre acesso a ela, sem necessitar da interação com um analista.

É a narrativa literária dos livros de Carla que nos une aqui. Essa alquimista de palavras é escritora plena, de primazia poética, cujo fio condutor é a natureza humana. Freud (1914/2012b) afirma que experimentamos, pela vivência escrita do poeta ou escritor, uma sensação de algo que, de algum modo, já escutamos, vivenciamos ou sentimos, uma sensação de déjà vu.

Quando pequena, vivi algo que iluminou meus pensamentos. Visitando uma fazenda de familiares, atravessei um rio por uma pinguela, debulhei milho no paiol e andei pelo caminho da roça ouvindo dos primos histórias dos bichos da mata. Margeávamos o rio e chegávamos aonde ele descia com mais força, bem no meio desse trecho estava o moinho d’água. Era lá que levávamos o milho para ver aquele mistério de o grão virar farinha. A força da água descendo entre as rodas de madeira, o moinho em movimento, os grãos derramados entre as pedras girando e a mágica acontecendo. Tudo depois se transformava em bolo quente de fubá. Creio que essas foram experiências de representações no meu aparelho psíquico, que encheram a minha infância de recursos para o meu sonhar de hoje. O que será que posso pensar entre o caminho da roça na beira do rio, o grão transformado em bolo e o caminho do psicanalista?

O segundo afluente desse tema é a função da palavra como um vínculo de comunicação com o outro. Essa vivência emocional entre duas pessoas é comunicação.

A nossa primeira apreensão de algo sonoro é a atenção dada a um som que ainda não se pode diferenciar. O bebê está em busca de alguém que possa lhe oferecer uma mente tradutora para, quando aprender a falar, imitar aquele que lhe fala. A palavra é a entrada no reino da linguagem e o que nos conecta com o outro. Penso que é esse universo de vivências que pode aparecer como base da experiência que alicerça o vínculo do vir a ser.

Ao explorar a questão da humanização, com base na literatura, é impossível não lembrar Fernando Pessoa. Sabemos que esse autor, ao escrever, outrava-se, do verbo outrar-se, que ficou conhecido por ser atribuído a esse método de criação literária da heteronomia. Nessa arte de ser muitos Fernandos, ele se pergunta pela vida, por si próprio e por seus heterônimos: “Quem sou eu? Perguntas bem, mas não sei responder” (citado em Cavalcante Filho, 2011, p. 236).

“Biá é meu nome de louca. Biá, e não Bia, note a diferença - insistiu, bem-humorada…” (Madeira, 2022a, pp. 18-19). A autora apresenta uma pluralidade de personagens que utilizamos como modelo para nossas identificações e devaneios, seja naquilo que em nós se guarda e se desnuda, seja no exercício clínico quando escutamos e silenciamos para o outro falar.

Há momentos em que só o silêncio dá contorno para metabolizar os pensamentos e emoções. “Tenho em mim mais este silêncio a ser defendido… acredito no silêncio, não no esquecimento” (Madeira, 2022a, p. 223).

Tudo isso é ler Carla Madeira. Algumas vezes fui arrebatada pelo impacto da narrativa fazendo aflorar os meus sentimentos mais incômodos de abandono, desamparo, tristeza e angústia, mas também de amizade, amorosidade, confiança e esperança.

A obra traz a transgeracionalidade representada pelo bordado no forro do vestido de noiva de Dalva. O que estava ali marcado, registrado como objeto bom que ela pôde reconhecer e sentir de sua origem?

Lavou o forro relendo com a ponta dos dedos cada nome, lembrando cada história abordada ali … lavou o vestido como um ritual de passagem, uma boa ensaboada no passado queria ir embora … se comoveu, começava a dar conta de não desprezar a parte boa do que viveu. Se entregou demorada à permissão de reconsiderar as coisas boas como um pertence que se deve levar na mala, brincou de ter um pouco da sua vida de volta. (Madeira, 2022b, p. 169)

Aprendi que no campo da psicanálise temos, como unanimidade de nosso fazer, a ideia de que o analista se forma na sua própria análise, que o analista é capaz de analisar alguém até o ponto em que analisou a si mesmo. Só podemos ver no outro aquilo que já pudemos ver em nós mesmos. Ainda que haja algo de desnorteador sobre o impacto da natureza humana, não escapamos de nós mesmos. “O pior de nós tem seus encantos. Somos feitos do bom e do ruim em porções imprevisíveis” (Madeira, 2022b, p. 129).

É grande demais o que nos torna humanos, nunca nos daremos conta de nossa interioridade. Aliviamos a angústia do inominável dentro de nós quando expressamos algo ainda sem nome, com palavras novas.

O terceiro e último afluente para conversarmos aqui é a vida e suas paixões. A vida do ser humano é a matéria-prima desses dois campos, psicanálise e literatura, que se interessam pelo enigma da vida. “É sobre isso que resultou a descoberta da psicanálise. Freud considerou o complexo de Édipo como uma das principais descobertas da psicanálise, e o uso que Freud fez deste mito lhe permitiu descobrir a psique humana” (Bion, 1992/2000, p. 236).

A escrita de Carla é uma entrega. Em puro estado de imersão somos provocados em cada personagem. Todos podem, então, oferecer um exercício de escuta analítica, de um movimento de sonho como força de realização (Bion, 1962/1963/2021) e como representação onírica, chave para esse enigma da vida. A vida é isso.

“As palavras permitem todo tipo de realidade” (Madeira, 2021, p. 272). Aprendemos a construir um sentido que não é uma orientação, mas uma espécie de linha do tempo complexa, difusa, estratificada. Penso que se pode dizer aqui que esse é o efeito Carla Madeira. Assim como um rio que segue adiante, num determinado ponto, abre-se em lagoa, afunila-se em estreitos afluentes, noutros cai do alto outrando-se em cachoeira num bordado de espuma não para um fim, mas para continuar a outrar-se em foz, em rio, e tudo outra vez.

Muitos pontos abertos para conversarmos, nenhum fechado, mas muitos pontos tecidos da urdidura de minhas memórias e experiência de vida como analista, leitora, educadora, sendo eu mesma.

Referências

Bion, W. R. (2000). Cogitações. Imago. (Trabalho original publicado em 1992) [ Links ]

Bion, W. R. (2021). Aprender da experiência (1ª ed.). Blucher. (Trabalho original publicado em 1962/1963) [ Links ]

Cavalcante Filho, J. P. (2011). Fernando Pessoa: uma quase biografia. Record. [ Links ]

Freud, S. (1976). Escritores criativos e devaneio. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 9, pp. 147-158). Imago. (Trabalho original publicado em 1908) [ Links ]

Freud, S. (2012b). Sobre o “déjà reconté” (déjà vu) no trabalho psicanalítico. In S. Freud, Obras completas (Vol. 11, pp. 364-372). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914) [ Links ]

Madeira, C. (2021). Véspera (1ª ed.). Record. [ Links ]

Madeira, C. (2022a). A natureza da mordida (1ª ed.). Record. [ Links ]

Madeira, C. (2022b). Tudo é rio (10ª ed.). Record. [ Links ]

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Webinar SBPSP 20/5/2023: Comentários sobre o livro Tudo é rio (Madeira, 2021). Mesa-redonda composta por Carla Madeira, Marina Ramalho Miranda e Silvana Bressan.

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