Talvez, ao me ler, você possa acabar o que comecei. Entrego meus rascunhos.
Eu escrevo.
Aceito essas palavras juntas que, ao serem ditas, abrem parágrafos.
Fragmentos de um processo criativo que não se deixa dissecar.
Eu e escrevo.
Duas palavras enormes, dois rios que nascem no mar,
percorrem a medida dos acontecimentos
e desaguam na fonte de minha vida.
Imaginar é sempre revelar um pouco de si mesmo.
Às vezes, na agônica escolha, as palavras pesam como se fossem um dicionário
completo, capa dura, em letras mínimas, sem ordem alfabética.
Todo o significado possível está lá. Não sei onde.
Antes da palavra, o nome de todas as coisas é desamparo.
As nuvens também me rondam, e eu só posso chovê-las se estiverem encharcadas.
Precipito-me.
Onde não há borrachas ou teclas delete, conjugo verbos hostis:
abandonar, rasgar, rasurar, desistir.
Mas se levo adiante as águas, não há quem me impeça de lavrar.
Lavrar é bordar (descobri há pouco esses sinônimos-contrários, um quer minhas mãos
pesadas, o outro, as quer leves).
Eu quero a linha que atravessa do direito ao avesso das coisas - enxada,
que cirze o oculto ao visível - raiz.
Essa linha que nos mantém a salvo das coisas separadas.
Luz e sombra: minha árvore frutífera.
No exato instante em que escrevo,
sou o Atlas que carrega o firmamento, e não a terra.
Todas as estrelas sobre meus ombros,
mas só posso avistá-las na escuridão da luz que não me alcança.
Sim, o escuro é uma luz distante. Está vindo.
Eu escrevo.
Aceito esse tempo presente indicativo de um ato contínuo.
Os acontecimentos me mordem anárquicos, o acaso me inspira.
O fugidio me pesa uma carreta de minério sobre o peito.
Montanhas inteiras dentro dela. Meu quintal se esvai sobre rodas.
Todo aquele que escreve vem de alguma infância - a palavra mais antiga de todas.
Mal a reconheço, tanto tempo eu não a via.
Escrevo saudade todo dia.
Do nada, vou sendo feita.
Meu sistema nervoso é tecido em dedos de prosa.
Tenho a plasticidade de ser o que digo. De ser o que ouço. De ser os sons de todas as
vozes que vieram antes e viraram corpo.
Meu corpo.
Por vezes, a voz que o ouvir me deu desafina: eis a perturbação.
Piaba que a água profunda cospe.
Eu a persigo.
Ela escorrega.
Eu a noto.
A fenda.
A falha.
A louça lascada.
Meu espaço de manobra é a imperfeição.
Eu escrevo com o assombro de que homens batem em mulheres há séculos,
mais de milênios e ainda.
Quando querem chamá-los de monstros, eu escrevo homens.
Quero dar a eles nome, e a mim, esperança.
Contra monstros, nada posso.
Eu escrevo para reiniciar meus olhos quando se acostumam com a penumbra.
Mas também para passar o tempo.
Experimentar vidas.
Fazer rascunhos com o tédio.
Rituais de pajelança e peleja.
Oração,
desperdício.
O que eu escrevo
não bate pregos.
Não recicla lixo.
Não água plantas.
Não acerta contas.
O papel repleto de palavras
não é sequer mais útil do que o repleto de rasuras.
Insisto descobrir se creio.
Luto com Deus e perco.
E que tudo mais vá pro inferno, menos o belo.
Aprendi a cantar antes de escrever.
O som é a alma da palavra.
O Ritmo, minha correnteza.
Vou
e fico presa.
Busco a virada:
naipes, repeniques, ar.
(Sem samba, não dá)
Eu escrevo porque li, leio e lerei.
E os que mais amo e amarei são os que vi tomarem liberdade por escrito.
Fizeram o melhor e o pior de nós se abaixar até vermos nossas entranhas.
A mim inspira olhar com olhos que não são meus.
Outros olhos que tiram a poeira do que vi ontem e me fazem ver pela primeira vez.
Outra vez.
O ovo novo de novo.
(Sons de Arnaldo Antunes que sonhei uma noite dessas).
Nem tudo depende de mim quando escrevo.
Procuro a palavra enquanto durmo.
Meu único silêncio possível é encontrá-la
Noites viram dias, e eu me viro.
Dou de cara com ela,
e ela explode um frescor inesperado em mim.
Sei que achei a bendita porque meu corpo fala.
A carne se fez verbo.
Meu tormento murcha como um balão ao calor da mínima chama
Constato: não se pode escrever sem um corpo incendiado.
Uma nesga de luz entra pela janela e se deita sobre o lençol.
Faço amor com o sol.
Se me perguntam como nasce uma história, lembro-me de uma mulher que me veio
à mente enquanto o desejo de conhecê-la me tomou o coração.
Nasço com ela.
O rapaz desajeitado, alto e magro, com pernas desencontradas e mãos suando fala
do
beijo que cometeu.
Eu o escuto
e escrevo sobre borboletas triscando o néctar de um amor que começa.
E assim vou indo.
Quando menos espero, bateio um diamante entre pedras.
E por um instante, minha vida está completa.
PS. Nasci em 1964, em Belo Horizonte. Filha de um erudito matemático e de uma mulher sábia, de olhos e mãos encantadas, que mal completou o fundamental. Cresci entre razão e emoção, entre cidade grande e interior, entre crer e questionar. Enquanto fazia um curso superior de matemática na Universidade Federal de Minas Gerais, embora tivesse facilidade e interesse, fui ficando triste. As linguagens artísticas me faziam falta: cantar, compor, escrever, pintar. Mas ser artista, assim de verdade, no oficial da palavra, era algo perigoso para meus pais religiosos e enorme demais para mim. Ainda é imenso, sempre me soa pretensioso. Fui ser publicitária. Larguei a matemática, sem trancar matrícula, movimento radical para uma libriana, e trouxe a alegria das linguagens artísticas para perto. Há 35 anos faço a direção criativa da Lápis Raro, uma agência de Comunicação da qual sou uma das sócias. Em 2014, já mãe de dois filhos e no terceiro casamento, publiquei meu primeiro romance, Tudo é rio, depois veio A natureza da mordida e Véspera. Se dependesse de mim, eu gastaria mais do que sete dias para criar o mundo, levaria, de propósito, a vida inteira.