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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.19 

Ateliê

FRAGMENTOS DO QUE NÃO SE PODE TER POR INTEIRO1

Carla Madeira2 

Jornalista, publicitária e autora das obras Tudo é rio, A natureza da mordida e Véspera

2Jornalista, publicitária e autora das obras Tudo é rio, A natureza da mordida e Véspera. Belo Horizonte


Talvez, ao me ler, você possa acabar o que comecei. Entrego meus rascunhos.

Eu escrevo.

Aceito essas palavras juntas que, ao serem ditas, abrem parágrafos.

Fragmentos de um processo criativo que não se deixa dissecar.

Eu e escrevo.

Duas palavras enormes, dois rios que nascem no mar,

percorrem a medida dos acontecimentos

e desaguam na fonte de minha vida.

Imaginar é sempre revelar um pouco de si mesmo.

Às vezes, na agônica escolha, as palavras pesam como se fossem um dicionário

completo, capa dura, em letras mínimas, sem ordem alfabética.

Todo o significado possível está lá. Não sei onde.

Antes da palavra, o nome de todas as coisas é desamparo.

As nuvens também me rondam, e eu só posso chovê-las se estiverem encharcadas.

Precipito-me.

Onde não há borrachas ou teclas delete, conjugo verbos hostis:

abandonar, rasgar, rasurar, desistir.

Mas se levo adiante as águas, não há quem me impeça de lavrar.

Lavrar é bordar (descobri há pouco esses sinônimos-contrários, um quer minhas mãos

pesadas, o outro, as quer leves).

Eu quero a linha que atravessa do direito ao avesso das coisas - enxada,

que cirze o oculto ao visível - raiz.

Essa linha que nos mantém a salvo das coisas separadas.

Luz e sombra: minha árvore frutífera.

No exato instante em que escrevo,

sou o Atlas que carrega o firmamento, e não a terra.

Todas as estrelas sobre meus ombros,

mas só posso avistá-las na escuridão da luz que não me alcança.

Sim, o escuro é uma luz distante. Está vindo.

Eu escrevo.

Aceito esse tempo presente indicativo de um ato contínuo.

Os acontecimentos me mordem anárquicos, o acaso me inspira.

O fugidio me pesa uma carreta de minério sobre o peito.

Montanhas inteiras dentro dela. Meu quintal se esvai sobre rodas.

Todo aquele que escreve vem de alguma infância - a palavra mais antiga de todas.

Mal a reconheço, tanto tempo eu não a via.

Escrevo saudade todo dia.

Do nada, vou sendo feita.

Meu sistema nervoso é tecido em dedos de prosa.

Tenho a plasticidade de ser o que digo. De ser o que ouço. De ser os sons de todas as

vozes que vieram antes e viraram corpo.

Meu corpo.

Por vezes, a voz que o ouvir me deu desafina: eis a perturbação.

Piaba que a água profunda cospe.

Eu a persigo.

Ela escorrega.

Eu a noto.

A fenda.

A falha.

A louça lascada.

Meu espaço de manobra é a imperfeição.

Eu escrevo com o assombro de que homens batem em mulheres há séculos,

mais de milênios e ainda.

Quando querem chamá-los de monstros, eu escrevo homens.

Quero dar a eles nome, e a mim, esperança.

Contra monstros, nada posso.

Eu escrevo para reiniciar meus olhos quando se acostumam com a penumbra.

Mas também para passar o tempo.

Experimentar vidas.

Fazer rascunhos com o tédio.

Rituais de pajelança e peleja.

Oração,

desperdício.

O que eu escrevo

não bate pregos.

Não recicla lixo.

Não água plantas.

Não acerta contas.

O papel repleto de palavras

não é sequer mais útil do que o repleto de rasuras.

Insisto descobrir se creio.

Luto com Deus e perco.

E que tudo mais vá pro inferno, menos o belo.

Aprendi a cantar antes de escrever.

O som é a alma da palavra.

O Ritmo, minha correnteza.

Vou

e fico presa.

Busco a virada:

naipes, repeniques, ar.

(Sem samba, não dá)

Eu escrevo porque li, leio e lerei.

E os que mais amo e amarei são os que vi tomarem liberdade por escrito.

Fizeram o melhor e o pior de nós se abaixar até vermos nossas entranhas.

A mim inspira olhar com olhos que não são meus.

Outros olhos que tiram a poeira do que vi ontem e me fazem ver pela primeira vez.

Outra vez.

O ovo novo de novo.

(Sons de Arnaldo Antunes que sonhei uma noite dessas).

Nem tudo depende de mim quando escrevo.

Procuro a palavra enquanto durmo.

Meu único silêncio possível é encontrá-la

Noites viram dias, e eu me viro.

Dou de cara com ela,

e ela explode um frescor inesperado em mim.

Sei que achei a bendita porque meu corpo fala.

A carne se fez verbo.

Meu tormento murcha como um balão ao calor da mínima chama

Constato: não se pode escrever sem um corpo incendiado.

Uma nesga de luz entra pela janela e se deita sobre o lençol.

Faço amor com o sol.

Se me perguntam como nasce uma história, lembro-me de uma mulher que me veio

à mente enquanto o desejo de conhecê-la me tomou o coração.

Nasço com ela.

O rapaz desajeitado, alto e magro, com pernas desencontradas e mãos suando fala

do

beijo que cometeu.

Eu o escuto

e escrevo sobre borboletas triscando o néctar de um amor que começa.

E assim vou indo.

Quando menos espero, bateio um diamante entre pedras.

E por um instante, minha vida está completa.

PS. Nasci em 1964, em Belo Horizonte. Filha de um erudito matemático e de uma mulher sábia, de olhos e mãos encantadas, que mal completou o fundamental. Cresci entre razão e emoção, entre cidade grande e interior, entre crer e questionar. Enquanto fazia um curso superior de matemática na Universidade Federal de Minas Gerais, embora tivesse facilidade e interesse, fui ficando triste. As linguagens artísticas me faziam falta: cantar, compor, escrever, pintar. Mas ser artista, assim de verdade, no oficial da palavra, era algo perigoso para meus pais religiosos e enorme demais para mim. Ainda é imenso, sempre me soa pretensioso. Fui ser publicitária. Larguei a matemática, sem trancar matrícula, movimento radical para uma libriana, e trouxe a alegria das linguagens artísticas para perto. Há 35 anos faço a direção criativa da Lápis Raro, uma agência de Comunicação da qual sou uma das sócias. Em 2014, já mãe de dois filhos e no terceiro casamento, publiquei meu primeiro romance, Tudo é rio, depois veio A natureza da mordida e Véspera. Se dependesse de mim, eu gastaria mais do que sete dias para criar o mundo, levaria, de propósito, a vida inteira.

1

Texto publicado na Revista Brasileira da Academia Brasileira de Letras e apresentado no Webinar SBPSP 20/5/2023: Comentários sobre o livro Tudo é rio (Madeira, 2021). Mesa-redonda composta por Carla Madeira, Marina Ramalho Miranda e Silvana Bressan.

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