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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.20 

Ateliê

liBertha A FORÇA CRIATIVA DA MATERNIDADE

Caroline Burle1 

Cofundadora da liBertha e mestre em Relações Internacionais

1Cofundadora da liBertha e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). LinkedIn: carolineburle. São Paulo


Eu havia me preparado para o parto: do início da gestação até a hora que meu filho escolheu nascer, eu fiz tudo o que podia para ter um parto normal. Passei por três obstetras, pois na primeira eu percebi que era cesarista, na segunda eu não tinha total confiança no início, mas depois de passar pela terceira percebi que desenvolvemos uma relação afetiva e transparente. Minha análise era basicamente sobre o parto e o nascimento do meu filho, fiz yoga, fisioterapia do períneo, viajei muito a trabalho e de férias, tive uma gestação extremamente saudável, amorosa e alegre. Consegui o parto normal que eu tanto queria. Meu filho nasceu saudável e foi muito bem acolhido pela obstetra e pela pediatra, que logo o colocou no meu peito para mamar.

O que eu não me preparei foi para o puerpério e todas as mudanças que ocorreriam no meu corpo, mas especialmente na minha alma. Psiquicamente eu estava destroçada. Não fazia sentido receber visitas, muito menos aquela quantidade de pessoas no hospital, quando eu me sentia tão frágil e vulnerável. A partir daí, foi uma enxurrada de emoções não controladas, uma depressão pós-parto não diagnosticada, enquanto eu renascia como mulher e nascia como mãe.

Tive todo o suporte do meu marido, pai do meu filho, e da minha família, especialmente da minha mãe, da minha irmã, da minha avó e do meu pai. Não me preparei, porém, para o pós-parto. Ninguém me disse a realidade sobre o que era o puerpério, sobre a intensidade daquele momento, sobre a profundidade dos sentimentos e a enxurrada de emoções. Eu cuidei muito do meu filho, consegui amamentar após uma dificuldade inicial e foi um dos momentos mais prazerosos com o meu recém-nascido.

Assim como não me preparei para o pós-parto, também não me preparei para a introdução alimentar. Não me sentia segura, só conheci a nutricionista infantil adequada quando meu filho já tinha 1 ano e 2 meses e começava com uma restrição alimentar. Na mesma ocasião em que ele começaria a introdução alimentar, eu voltaria a trabalhar. Embora eu fizesse análise havia onze anos, já tendo passado por quatro sessões semanais, tivesse uma excelente estrutura familiar e apoio, eu me sentia completamente à deriva. Estabeleci como meta continuar amamentando meu filho, mesmo após voltar a trabalhar.

Tive apenas quatro meses de licença-maternidade, mas emendei dois meses de férias. Negociei com o meu chefe uma volta híbrida, ia de manhã ao escritório e voltava para casa após o almoço para amamentar meu filho. Isso numa época em que o trabalho remoto era muito longe da realidade, embora fosse totalmente possível. Essa volta ao trabalho, no meio de um turbilhão de emoções e inseguranças, foi concomitante à introdução alimentar do meu primeiro filho, que hoje tem 5 anos.

Meu marido também não conseguia estar em casa na hora do almoço para alimentá-lo, e ele ficava com a babá nesse momento tão importante de seu desenvolvimento psíquico. Eu conseguia dar o jantar, mas com uma depressão não diagnosticada e toda a minha rigidez, ele foi restringindo cada vez mais a sua alimentação.

Somado a isso, eu me sentia totalmente deslocada no trabalho. Havia seis anos que eu estava trabalhando em uma boa empresa, liderava projetos que faziam sentido e me realizavam. Mas, ao voltar da licença-maternidade, o ambiente que antes era conhecido e fazia parte do meu dia a dia de repente se tornou um lugar distante, sombrio e nada acolhedor. O trabalho em si, de que eu sempre gostei e exercia com excelência, não fazia mais sentido. Tive a sorte de contar com a colega da equipe que me substituiu na licença-maternidade, e continuou na equipe por mais quatro meses após meu retorno, tanto para dividir as tarefas do trabalho comigo quanto para me dar um apoio emocional ali. Mas isso não era suficiente, pois as mudanças que ocorreram comigo eram muito maiores.

Toda essa dor, angústia e falta de propósito no trabalho após a maternidade me ajudaram a ressignificar o meu propósito de vida e enxergar como contribuir para melhorar a nossa sociedade e incluir as mães no mercado de trabalho. Ajudá-las a crescer em suas carreiras.

Esse ressignificado não veio de uma vez só! Aos poucos fui percebendo, escrevendo, falando, enquanto abraçava o ser mãe, o maternar, e aprendia como ser a tal mãe suficientemente boa. Quase dois anos se passaram após a volta ao trabalho, e engravidei novamente, dessa vez de uma menina. Ao engravidar dela, já estava decidida a sair daquela empresa, ter uma vida laboral mais flexível, poder participar mais de perto da introdução alimentar dela e de todos os momentos do dia a dia que somente estando ali fisicamente seria possível.

A saída estava sendo organizada, quando veio a pandemia! O mundo foi revirado, nosso emocional foi invadido por uma enorme insegurança e muito medo de morrer. Ainda grávida da minha filha, tive o privilégio de ir para o interior e ser acolhida junto com o meu marido e com o meu filho de então 2 anos, na casa dos meus pais. Voltei a São Paulo para o nascimento da minha filha, e retornamos ao interior quando ela estava com 15 dias de vida. Lá permanecemos até os 5 meses dela. Diferentemente da licença-maternidade do meu primeiro filho, eu me sentia muito mais segura como mãe, mais acolhida e pude entrar na concha que eu tanto quis, mas não havia sido possível após a primeira gestação.

Ao contrário da primeira licença-maternidade, cuja volta ao trabalho foi extremamente angustiante, dessa vez eu resolvi adiantar o meu retorno. Fui promovida antes do término da licença e, com tudo funcionando de forma remota, me organizei para trabalhar de casa e participar do crescimento diário do meu filho mais velho e da introdução alimentar da minha bebê.

Quando chegou o momento de voltar ao escritório, minha filha já estava com quase 1 ano e meio. Ao chegar lá, porém, eu só conseguia chorar. Não fazia sentido para mim perder tempo no deslocamento e ficar longe das crianças para realizar um trabalho que eu poderia fazer de maneira remota, e produzia melhor remotamente. A equipe já estava toda alinhada e os processos instaurados para o trabalho remoto fluir. A hipocrisia de ir ao escritório desencadeou a depressão não diagnosticada há anos e precisei me afastar do trabalho.

Após dois meses sendo devidamente tratada, medicada, consegui voltar a trabalhar, mas com a condição de realizar o trabalho somente de forma remota. O que não fez sentido, porém, na volta da minha primeira licença-maternidade nessa ocasião fazia ainda menos. Mesmo trabalhando remotamente, o meu propósito era outro. Emocionalmente eu ainda estava muito abalada. Decidi, então, finalizar aquele ciclo. Consegui fazê-lo de maneira gentil e respeitosa comigo mesma e com a equipe que dependia de mim. Foi nesse momento de decisão que conheci a minha atual sócia.

Ela estava em uma situação muito parecida com a minha a respeito do trabalho, e tínhamos a mesma dor em relação à volta da licença-maternidade. Com filhos de idades bem parecidas, passamos pelas mesmas angústias e incertezas na mesma época, em lugares distintos.

A partir de nossa dor, resolvemos fazer uma breve pesquisa junto às mães de nossas redes e perguntar “O que você sentiu mais falta de ter após o término da licença-maternidade para voltar ao trabalho?”. Setenta mulheres responderam, e as respostas foram quase unânimes: faltou tempo para dar conta de tudo - cuidar do bebê e das demandas no trabalho -, e faltou empatia da equipe.

Começamos, então, a criar possíveis soluções para sanar essas dores tão comuns às mães recém-nascidas. Entendemos que para ajudá-las seria necessário mudar a cultura na qual estamos todos inseridos. Nas famílias, cujos cuidados com a casa, com os filhos e, especialmente, toda a carga mental de organizar, pensar e na maioria das vezes realizar fica sob a responsabilidade das mulheres. No trabalho fora de casa, dedicar-se à capacitação e à empatia dos gestores e da equipe para receber essas mulheres tão transformadas após o nascimento dos filhos. Proporcionar redes de apoio efetivas, assim como uma infraestrutura física adequada como salas de amamentação e lactação, e também flexibilidade nos horários de trabalho.

Compreendemos, porém, que, para de fato “atacar” a dor, teríamos de trabalhar com políticas públicas. Decidimos, então, criar uma ong com o objetivo de influenciar a formulação de políticas e a alocação dos recursos públicos.

Escolhemos o nome liBertha inspiradas em Bertha Lutz. Ela foi a primeira deputada federal do Brasil (1936) e lutou pela mudança da legislação referente ao trabalho da mulher e dos menores de idade, propondo a igualdade salarial, a isenção do serviço militar feminino, a licença de três meses à gestante, sem prejuízo de vencimentos, e a redução da jornada de trabalho, então de 13 horas.

Além disso, essa escolha nos traz a inspiração de “ler” a Bertha para conseguirmos avançar no trabalho de advocacy junto às empresas, ao terceiro setor e, principalmente, ao setor governamental. E também nos estimula a ter liberdade para atuar e ajudar todas as mulheres a serem de fato livres: em suas escolhas, em sua atuação profissional e em seu maternar.

A liBertha nasceu com o propósito de curar a nossa dor e de tantas outras mulheres que, ao se tornarem mães, sentiram-se excluídas do mercado de trabalho. Entendemos, porém, que a participação dos pais no cuidado com a casa e com os filhos é fundamental para mudar o cenário de divisão desigual dos cuidados e atingir uma maior igualdade de gênero, dar mais oportunidade às mulheres, e também para ampliar as chances de os pais estarem mais tempo junto aos filhos e de criarem vínculos afetivos.

Começamos a atuação da liBertha com a empreitada de ampliar a licença-paternidade no Brasil e lutar pela instituição de uma licença parental. Embora a licença-maternidade seja de 120 dias, podendo ser estendida para 180 dias nas empresas que adotam o Programa Empresa Cidadã, atualmente, a lei ainda segue a Constituição Federal de 1988, cujo direito à licença é de apenas 5 dias úteis para os pais. Em 2016, houve alteração no Programa Empresa Cidadã, ampliando a licença-paternidade de 5 para 20 dias, somente para os empregados das empresas que adotam o referido programa.

Convido você, leitor(a), a conhecer nosso trabalho e nos ajudar a construir uma sociedade mais igualitária e inclusiva! Veja nosso site e entre em contato conosco: http://libertha.org/.

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