Agradeço com alegria o convite de Anne Lise para fazer a apresentação deste número da revista Ide, com um tema tão bem escolhido no momento atual, em que o mundo se vê envolvido em tantos conflitos de natureza bélica, e vários outros de caráter interpessoal, também bastante belicosos, que nos tomam de assalto, desafiando nossa compreensão! Aliás, não me parece um tema apenas atual, pois acompanha a humanidade desde seus primórdios!
Acredito que o desafio esteja em poder abordar o tema “Guerra e Paz” do ponto de vista psicanalítico, pois sabemos que a guerra tem suas raízes em questões econômicas e políticas que requerem outras lentes, que nós psicanalistas não temos à disposição em nosso trabalho cotidiano.
No entanto, vemos como vários de nossos pioneiros se debruçaram sobre o tema, trazendo contribuições preciosas!
Freud, por exemplo, estudou o “enigma” da guerra e das neuroses de guerra em várias oportunidades (1915/2010a e 1919/2010b), enfatizando a desilusão provocada pela guerra e a mudança de atitude diante da morte que as guerras provocam. Freud atribui a desilusão à perda de padrões éticos e civilizatórios entre indivíduos e estados, que acabam perpetrando atos de crueldade, fraude, traição e barbárie, incompatíveis com seu nível de civilização. Fala em instintos primitivos, amor e ódio e enfatiza a impossibilidade de se erradicar o “mal”, equiparado aos instintos egoístas, que podem ser transformados em altruístas, dependendo de fatores internos (inatos) e externos, que Freud ligava esperançosamente à educação e à cultura. Em seguida, reflete que tudo isso não passa de ilusão, que o ser humano se parece mesmo com o homem primitivo, que nega a própria morte, mas é capaz de matar o estranho, e desejar a morte de alguém amado e odiado ao mesmo tempo. E termina com este ditado:
“Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte”.
Na carta “Por que a guerra?”, em resposta a Albert Einstein, que lhe escrevia a pedido da Liga das Nações, sobre a possibilidade de evitar-se a guerra que se delineava, Freud (1932/2010c) mostra-se bastante descrente: discorre sobre direito e violência, sugerindo que, no fundo, o direito é fruto de uma “violência intelectual” que tem força e poder, instituindo desigualdades entre os grupos sociais, de acordo com essas valências. Mas mostra que esse sistema é frágil, sofrendo conquistas e fragmentações, e levando cada vez mais a guerras maiores, e a uma constante luta pelo poder. Menciona os instintos humanos - preservar e unir, Eros, e destruir e matar, Tânatos - como elementos básicos que determinam as ações humanas, embora elas sejam de natureza complexa como a “bússola de motivos” de Lichtenberg. Segundo ele, o ser humano não pode escapar desse instinto destrutivo, podendo apenas, por meios indiretos, favorecer os vínculos emocionais entre os indivíduos, fortalecendo Eros, e promovendo o desenvolvimento cultural, que Freud acreditava trabalhar contra a guerra! Para mim, esse texto expressa a desilusão do próprio Freud diante do ser humano!
No entanto, como apontam alguns artigos da revista, seria simplificador reduzir o tema ao conflito entre as pulsões de vida e morte. E vários dos nossos antecessores procuraram investigar essa questão por outros ângulos, também psicanalíticos. Alguns viveram os horrores da guerra, e de alguma maneira manifestaram seu repúdio a ela.
Melanie Klein atendeu Richard em Pitlochry durante 4 meses em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, lidando o tempo todo com angústias de morte e destruição, que se expressavam em inúmeras imagens e desenhos bélicos que o menino fazia. Esses acontecimentos externos, como a guerra, exacerbavam as angústias de ambos, como Klein explicita em seus escritos. Viajava várias vezes a Londres (para onde afinal retornou), para atender seus pacientes (entre os quais, Paula Heimann e John Rickman), num período particularmente tenso, com o bombardeio contínuo de Londres, mas procurando pensar e analisar seus pacientes, e ao mesmo tempo vivendo e contendo sempre o medo de que os alemães invadissem a Inglaterra (Grosskurth, 1992, pp. 284, 285 e 286). Em outro momento, Klein alerta-nos para nosso “Hitler interior”, ou seja, para a destrutividade de cada um de nós, o que eu considero uma observação arguta e preciosa, que pode ser muito útil para alcançarmos um estado mais pacífico dentro e fora de nós (Frank, 2019). Além disso, como lembram alguns artigos desta Ide, Klein cunhou o termo “reparação possível”, quando a mente alcança a posição depressiva, reconhece a própria destrutividade e culpa, e configura o objeto total, novo, pois amado e odiado! Temos aí um momento em que a paz é possível, pelo menos transitoriamente, pois o movimento continua. Aliás, achei muito interessante como alguns autores deste número se aprofundaram sobre o tema da paz, tão pouco estudado e considerado! Bion precisou escrever sobre suas vivências aterrorizadoras nas duas guerras mundiais, de que participou, deixando relatos de forte sofrimento emocional em seu War memories, e sugerindo a necessidade de podermos “pensar sob um bombardeio” (interno e externo) como única forma de sobrevivermos psiquicamente. Bion descreve o sofrimento de ter sobrevivido presenciando tantas mortes e mostra assim a dor como elemento de psicanálise. Suas memórias de guerra podem ser pensadas como a “possibilidade de sonhar” e elaborar a dor “que não pode ser sonhada”, “uma tentativa de construção de si mesmo”, “o terror do abandono psíquico, e a necessidade da presença de outra mente para sobreviver psiquicamente” (Souter, citado em Scappaticci & Hardt Jr., 2020), ou ainda de transformar a crueza da guerra numa experiência emocional capaz de digerir o indigesto e pensar o impensável, como sugerem Scappaticci e Hardt Jr., em suas reflexões sobre o War memories (2020).
Rezze (2005) procura investigar a natureza do trauma de guerra, debruçando-se sobre a experiência e os relatos de Bion a respeito, bem como sobre uma vivência pessoal. Suas aproximações ao “terror sem nome” nos levam além (ou aquém?) do trauma, em direção a uma área indiscriminada e compacta entre mente e corpo, ao sistema protomental, que talvez possamos nomear hoje como “mente primordial”. O autor faz a conjectura imaginativa de que essas ideias evoluíram possivelmente das experiências de guerra de Bion, ou seja, são originárias desse trauma de guerra. Essas investigações trazem novos desdobramentos, que também dizem respeito ao funcionamento grupal, em que o sistema protomental pode ser observado.
Os estudos de Bion sobre grupos de supostos básicos (luta e fuga, dependência, acasalamento), que expressam os aspectos inconscientes da parte psicótica da personalidade (ou ainda da mente primordial, não nascida?), também esclarecem em grande medida as questões de ódio à realidade, ao crescimento e à alteridade, embora deixem a pergunta, apontada por Ney Marinho: quais as ansiedades básicas do grupo de trabalho, em que podemos encontrar alguma paz e dar lugar a uma atividade construtiva?
Money Kyrle (1936/1996b) escreveu “O desenvolvimento da guerra: uma abordagem psicológica” procurando investigar os motivos inconscientes que levam o ser humano à guerra. Elenca três teorias explicativas, teoria sexual, teoria edipiana e teoria paranoica, concentrando-se nesta última, que aponta para fatores muito profundos, ligados a fantasias de destruir o objeto amado, projetar sobre ele seu sadismo, e sentir-se perseguido por ele, num círculo vicioso interminável de projeções e introjeções, vivências maníacas e delírios persecutórios, que parecem ser para ele o “protótipo da psicologia da guerra” no adulto. Como esse processo é mútuo, isso desperta respostas semelhantes no “inimigo”, transformando em real um perigo imaginário. Com uma questão tão complexa, contudo, apenas temos aproximações à verdade. Acho muito importante termos essa noção de aproximação à verdade sempre em mente, para evitarmos, na medida do possível, a arrogância dos dogmas e das certezas, que nos assolam a todo momento. Money Kyrle (1934/1996a) argumenta que as origens da agressão são obscuras, que não se satisfaz cientificamente com a hipótese freudiana da pulsão de morte como explicação para a destrutividade, retomando a hipótese da agressão como resposta à frustração. Compara os grupamentos animais e humanos, chegando à conclusão de que há um enorme abismo entre eles. Os humanos se dividem entre deuses e demônios e são bons com o próprio grupo e maus com os estrangeiros, cheios de malignidade: “Os perigos externos podem ser manejados com mais facilidade, os demônios da tempestade podem ser aplacados ou expulsos, e os estrangeiros podem ser mortos” (p. 171).
Com o advento da modernidade, diz ele, matar deixa de ser um assunto particular e passa a ser razão de Estado. Surge a moralização da guerra e a ideia de causas justas e guerras justas, defendidas até mesmo pela própria Igreja Católica, em causa própria ou da segurança coletiva, assim como a perpetuação das guerras, pelo jogo projetivo cruzado das paranoias das nações envolvidas, como vemos hoje em dia. No pós-escrito Money Kyrle fala da capacidade reparatória do ser humano para lidar com o sentimento inconsciente de culpa, e recupera a esperança num mundo mais pacífico, o que, aliás, sentimos com a leitura deste número da Ide: em vários artigos a esperança da possibilidade de um mundo mais pacífico e igualitário se faz presente!
Winnicott (1940/1989) dedicou-se a pensar os fins da guerra, em um artigo intitulado “Discussão dos objetivos da guerra”. Neste artigo lúcido e corajoso, escrito durante a Segunda Guerra, ele diz que “lutamos para existir”, e que, se isso é verdade, não podemos nos julgar melhores do que nossos inimigos, porque essa ideia não tem justificativa. Ele propõe que o único parâmetro simétrico da bondade seja a maldade, e que, se a maldade for posta no inimigo, podemos ser bons. Fala no risco das certezas, na cobiça, agressão e embuste que podem ser da responsabilidade de todos nós. Menciona o medo da liberdade e, consequentemente, as dificuldades da democracia, propondo a noção de democracia interna, em que o inimigo pode ser transformado em adversário, e dialogar em igualdade de condições com outros interlocutores internos, como apontou Boraks em recente palestra na SBPSP (2023). Ao mesmo tempo, traz a ideia de que existe gratificação corporal e excitação contidas nas ideias de escravidão e crueldade, claramente ligadas às guerras. E afirma: “Nossa tarefa fica imensamente simplificada se aceitarmos o fato de que, em nossa natureza, somos basicamente iguais aos nossos inimigos” (p. 218). Sabemos também que Londres estava sendo bombardeada enquanto Winnicott estava apresentando suas ideias na Sociedade Britânica de Psicanálise, no dia 3/03/1943, conforme consta em ata. Literalmente, pensando sob um bombardeio, como sugere Bion!
Hanna Segal (1987/1998b) também se ocupou do tema, com o trabalho “O silêncio é o verdadeiro crime”, em que levanta as consequências nefastas de uma guerra nuclear, retomando os mecanismos projetivos e a paranoia, quando a agressividade humana é negada e projetada, transformando o inimigo em monstro ou demônio, que é desprezado e deve ser eliminado, configurando um aspecto francamente psicótico: “Podemos amar um ao outro, desde que haja estranhos a quem odiar” (p. 157). Afirma que a explosão atômica destrói a possibilidade de sobrevivência simbólica, intensificada pela sedução da onipotência e da morte, e pela exclusão da empatia, e da compaixão, elementos também mencionados neste número da Ide. Além disso, menciona a fragmentação da responsabilidade, que tem como corolário a falta de culpa, e a passagem de uma postura defensiva para uma agressiva, num círculo vicioso de desamparo, onipotência e terror. Termina o texto de forma esperançosa, lembrando a fusão instintiva proposta por Freud: “No desenvolvimento normal, a autopreservação e o amor (Eros) podem integrar a pulsão de morte e transformá-la em agressão promotora de vida” (p. 165). E termina com um alerta forte para a guerra interna de cada um de nós: “Somos iguais a outros seres humanos, com os mesmos impulsos destrutivos e autodestrutivos. Usamos as mesmas defesas. Estamos propensos às mesmas negações e podemos nos esconder atrás do escudo da neutralidade psicanalítica” (p. 165). Em outro artigo, “De Hiroshima à Guerra do Golfo” e depois em “Expressões sociopolíticas de ambivalência” (1995), ela volta aos mesmos argumentos, convocando-nos a lutar pela paz e pela vida. Penso que é esse o chamado de Annelise neste número da Ide e convoco vocês para se envolverem nessa luta, lendo, refletindo e discutindo os textos apresentados!