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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.24 

SBPSP 70 anos

ERA UMA VEZ… UMA HI(E)STÓRIA COM BASE EM MEMÓRIAS1

Thais Rosenthal2 

2Membro associado e monitor de ensino da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo


Meu relato aqui será baseado em dois olhares: de fora da instituição, vivenciando e ouvindo fatos como filha de analistas; e pertencendo à Sociedade, anos mais tarde. Esta Hi(E)stória será contada por meio da figura do meu pai, Gecel Luzer Szterling, por ele ter pertencido ao grupo dos primeiros analistas da nossa Sociedade.

Meu pai formou-se médico em 1946 pela fm-usp. Sua ideia inicial era atuar na área de gastroenterologia. Em um dos plantões como clínico, no Complexo Hospitalar do Juquery, tendo faltado o plantonista da ala feminina da psiquiatria, o dr. Mario Yahn pediu que ele fosse cobrir essa ala. Como se saiu bem na tarefa, o dr. Mario o incentivou a atuar no setor de psiquiatria e fazer sua formação psicanalítica. Lembro-me do meu pai contando que, ao perguntar que livros precisaria ler, o dr. Mario Yahn teria dito: “Leia os pacientes”. E assim começou seu percurso em direção à psicanálise. Iniciou sua formação no ano de 1955, fazendo a análise didática com a dra. Adelaide Koch (como todos os pioneiros), a primeira supervisão oficial com Theon Spanudis e a segunda supervisão oficial com a profa. Lygia Amaral.

Nossa casa passou a ser frequentada por psicanalistas ou pessoas em formação que eu, criança, sentia muito acolhedoras, amorosas, transmitindo a possibilidade de liberdade de ser, até mesmo para contar piadas picantes ou falar palavrão. Isso nos anos 1950. Com eles sim, mas não na presença dos tios, avós, ou outros adultos. Criança sabe das coisas. Desse início, estão muito vivos na minha memória a dra. Elza Barra, que trabalhava no Instituto Ache e atendia crianças em psicoterapia infantil, Mario Yahn, Silvio Barbosa, Breno Ribeiro, Durval Marcondes, Pedro Figueiredo Ferreira, psicanalista, baiano, morando no Rio de Janeiro e que vinha muito a São Paulo nos finais de semana (hoje suponho que viesse para fazer ou dar supervisão, ou análise pessoal). Dr. Pedro tinha uma relação quase de avô comigo e minha irmã mais velha, Raquel Szterling Nelken, hoje também psicanalista. Desde os primeiros contatos, ele guardava os desenhos que fazíamos para ele e costumava nos mostrar a cada vez que nos encontrávamos.

O título do livro Álbum de família, editado pela Casa do Psicólogo em 1994, fruto de uma ideia iniciada por Leopoldo Nosek e componentes da revista Ide, que passou a ser o chamado Projeto Memória, reflete bem o que era no início a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo: uma família. Família unida em torno do amor pela psicanálise.

Dessa família vejo “Os três mosqueteiros” na secretaria da sede na Rua Itacolomi: Adele Pagni Lacotis, Maria de Lourdes Polido de Souza e Darcy Lopes. Sempre a postos. Da Maria de Lourdes, excelente pintora, tínhamos alguns quadros em casa, comprados pelos meus pais.

Posso dizer que a Adele, que iniciou sua jornada na SBPSP em 1/10/1961, quando a sede era na Rua Araújo, estando todo esse tempo em contato com o funcionamento da nossa instituição e seus membros, além de ser uma fonte de ajuda inestimável, desenvolveu uma refinada capacidade de percepção das pessoas, tendo observações dignas de um bom psicanalista.

Essa família tem passagens muito divertidas. Ouvi que o Durval Marcondes, em uma roda de conversa com alguns colegas analistas, dizendo que todos os garotos passavam por uma fase homossexual, com brincadeiras corporais com outros meninos, contou da sua experiência. Ao questionar os outros, todos negaram terem tido qualquer brincadeira do tipo.

Outra passagem sobre o Durval Marcondes é sobre a admiração e espanto causados por sua virilidade, ao se tornar pai aos 75 anos de idade. E, lembrem-se, nessa época não havia o Viagra e similares.

Em conversa com sua filha Paula Marcondes, ela contou que se lembra do seu pai muito lépido, subindo e descendo as escadas da casa onde moravam, além do seu bom humor.

Nas férias de inverno era frequente irmos para Campos do Jordão, desfrutando-as em caminhadas matinais na companhia do Armando Ferrari, a esposa Bárbara e as três filhas; do Ferrão, a esposa Helena, a filha e os dois filhos. Em uma das estadas, Virgínia Leone Bicudo também estava presente, hospedada no mesmo hotel que nós, o Grande Hotel. Ela estava sempre muito elegante e não abria mão dos sapatos com um pequeno salto, mesmo nas caminhadas em que o percurso era de terra. Em um dos passeios, a Virgínia ficou encantada com uma flor flutuando no meio de um lago. Uma vitória-régia? Não sei precisar. Meu pai não teve dúvidas. Tirou a bota, ergueu as calças e foi buscar a flor no meio do lago.

Desse período tenho comigo a vivência de uma infância privilegiada e rica, por ter podido desfrutar de um ambiente familiar atípico para a época, com liberdade de comunicação e acolhimento, assim como por estar na companhia de pessoas muito interessantes.

Ainda sobre a Virgínia Bicudo, tínhamos uma paixão em comum: a dança, mais especificamente, o balé. Já crescida, agora uma jovem mulher, admirava seu espírito de vanguarda, explorando o novo. Estudo de física quântica, Popper. Ao acompanhar a construção de Brasília, tem a ideia de criar um núcleo de psicanálise na capital do Brasil, que resultou na Sociedade de Psicanálise de Brasília. Isto só foi possível em função da sua disponibilidade para fazer as análises didáticas de um grupo de médicos, de ministrar seminários na Universidade de Brasília, e de contar com o Instituto da SBPSP, que encampou a ideia e enviou seus professores, todos os finais de semana, para darem os cursos de formação. Entre eles, estava meu pai, além do Armando Ferrari, Cesar Augusto Ottalagano e Félix Gimenes, que exerceu funções didáticas de 1978 a 1985.

Até 1970 os candidatos - atuais membros filiados - da SBPSP não podiam participar das reuniões científicas. Nesse ano, exercendo o cargo de diretora do Instituto Durval Marcondes, Virginia modifica essa norma, abrindo para a participação dos candidatos nas reuniões científicas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Nos anos 1990, iniciei minha segunda análise com ela. Deitada no divã, à minha frente, vi na sua estante a lembrança do meu casamento que foi dada para os convidados. Durante o período da análise, iria haver uma festa de confraternização em que ela estaria presente, e eu falei do meu desejo de participar. Eu já era membro associado. Ao que ela respondeu: “Você quer uma analista ou uma amiga?” Tinha muito claro o enquadre do setting analítico. Essa situação vivida com ela me faz pensar sobre quais os elementos fundamentais para se criar o enquadre do trabalho psicanalítico.

O enquadre analítico nos dias atuais

Atualmente, em minha observação, destacamos que, acima de tudo, o setting está na mente do analista (com o que concordo plenamente), não sendo dada tanta relevância aos aspectos externos.

No dia 17 de agosto último tivemos a presença do psicanalista francês Christophe Dejours, que expôs a comunicação “O corpo na psicanálise”. Nesse trabalho ele questiona a atividade online, trazendo vários fragmentos clínicos em que aparecem comunicações corporais, existe um agir sem palavras, e que levam o analista para um trabalho que seria impossível online, uma vez que esses sinais não são detectáveis ou não produzem o mesmo efeito em função da distância física. Destaco duas situações, entre outras: um paciente que exala um odor muito desagradável, outro que tira uma faca do bolso de sua calça.

Ele fala da importância do setting, citando o artigo “Psicanálise do enquadre psicanalítico”, de José Bleger, escrito em 1966 para o Congresso da Fepal e que se encontra na Revista da Fepal de 2002, cuja tema é “Mudanças e permanências”. O artigo de Bleger aparece como um clássico. Bleger define o enquadre como as invariáveis que formam a moldura dentro da qual se dá o processo analítico. Aí estão incluídos o papel do analista, o conjunto de fatores temporais (ambiente) e parte da técnica (na qual se inclui o estabelecimento e a manutenção de horários, honorários, interrupções acordadas etc.). Citando José Bleger: “Um enquadre é a parte mais primitiva da personalidade, é a fusão Eu-corpo-mundo, de cuja imobilidade depende a formação, existência e discriminação (do Eu, do objeto, do esquema corporal, do corpo, da mente etc.). Os pacientes com acting in ou os psicóticos trazem também ‘o seu próprio enquadre’ - o que foi instituído de sua relação simbiótica primitiva -, mas também a trazem todos os pacientes”.

Assim, o analista deve aceitar o enquadre que o paciente traz (que corresponde ao “meta-Eu” deste), pois aí se acha a simbiose primitiva não resolvida. Aceitar o “meta-Eu” (enquadre) do paciente não significa, porém, abandonar o próprio enquadre, pois é o que permite analisar o processo e o próprio enquadre transformado em processo. Enfatiza que a relação analista-paciente fora do enquadre rigoroso, tanto quanto as relações “extra-analíticas”, possibilita o encobrimento da transferência psicótica e permite o “desenvolvimento” do “caráter analítico”. Salienta que o enquadre do analista não deve ser ambíguo, nem cambiante, nem alterado, para que se possa entrar em contato com os aspectos mais dependentes e com a organização psíquica mais primitiva da personalidade.

Esse texto me levou a pensar sobre como estamos lidando com o setting, ainda mais no momento em que fomos lançados ao atendimento online em função da pandemia. Também fiz uma associação com o artigo de André Green de 1995, por ocasião da comemoração do aniversário de Freud, intitulado “Sexualidade tem algo a ver com a psicanálise?”. Nesse trabalho Green aponta o fato de que, a partir da teoria kleiniana em que o modelo mãe-bebê ganha relevância, o tema da sexualidade desaparece da maioria dos trabalhos psicanalíticos. As interpretações são dirigidas para as relações de objeto de natureza supostamente mais profunda, e a esfera da sexualidade é apenas tangenciada ou considerada uma defesa.

Com o desenvolvimento das novas teorias psicanalíticas, assim como com as mudanças no tempo, precisamos estar atentos para não deixarmos de refletir ou banalizar certos pressupostos da psicanálise. Não no sentido de evitar mudanças, mas de termos claro o que as sustenta.

Uma homenagem especial

Após esta digressão sobre técnica e teoria, com base na experiência como analisanda da Virginia Bicudo, volto para minhas memórias afetivas, agora mais diretamente da minha observação e vivência com meu pai como psicanalista. Diria que ele era eminentemente um clínico da psicanálise, e não um teórico. Apesar de muito estudioso, seu forte era a clínica. Evidentemente não sei nada dele atuando no consultório, a não ser por colegas que foram seus analisandos. Mas, no dia a dia, sua disponibilidade para o outro, sua empatia e sensibilidade sempre foram características muito fortes da sua personalidade. Na família mais ampla, sempre era procurado para algum tipo de escuta e ajuda. Sem sombra de dúvida, o número de psiquiatras, psicólogos e psicanalistas na família é resultado da sua influência como pessoa. Havia nele um prazer genuíno de acolher e ajudar.

Tínhamos um sítio próximo a Jarinu, num distrito de Atibaia. Ele era conhecido por cuidar e ajudar desde o dono da farmácia, açougue, até os que trabalhavam no supermercado… As portas estavam sempre abertas, não importava o horário. Duas situações exemplificam muito o que estou falando. Uma foi comigo. Estava com uns 18-19 anos e ia me apresentar em um espetáculo de balé. Durante o ensaio da tarde, o palco havia sido encerado, e eu escorreguei. Ele foi atrás de comprar breu e passou um bom tempo espalhando o breu no palco para evitar novos escorregões. Uma capacidade extraordinária de cuidado.

O segundo episódio foi no nosso sítio. Estávamos ali passando um final de semana prolongado, e estavam conosco uma prima mais velha, com o marido e uma filha adolescente e o namorado da filha. Não lembro o episódio em si, mas essa prima chamou a atenção da filha e do namorado. O rapaz reagiu se deitando no chão de terra e pedregulhos que era o caminho de saída dos carros. Tentamos de todas as formas tirá-lo daquela situação, dizendo que estava tudo bem etc…., mas o rapaz não respondia. Resolvi pedir ajudar para meu pai. Ele chegou perto e disse: “Você acha que o que você fez foi tão grave assim?” Imediatamente o rapaz se levantou e abraçou meu pai, agradecendo muito. Aqui vi o psicanalista em ação. Foi direto à angústia e culpa.

Quais as características de personalidade necessárias para ser um psicanalista?

Existe a preocupação a respeito de quais características ou qualidades uma pessoa precisa ter para vir a ser um psicanalista. Não se encontrou até o momento uma resposta fechada. Mas, para mim, a disponibilidade para o outro, além da sensibilidade e empatia, é fundamental.

O que fazemos quando contamos Hi(E)stórias?

Recebi um vídeo de uma atriz e contadora de estórias argentina, Victoria Siedlecki, que responde à pergunta acima:

Quando contamos uma história, não contamos nunca sós. Contamos com nossa linhagem, nossos ancestrais infinitos que são o resto dos seres humanos que habitam ou habitaram este planeta. Algum dia todos seremos palavras, histórias, que as pessoas que sobrevivam a nós seguirão contando, para não esquecerem, e, quem sabe, para dar mais sentido a suas próprias vidas.

E segue:

O que se passa depois que morremos? Seguimos vivendo na memória dos que nos amaram. Enquanto houver alguém que conte para outra pessoa como éramos, como sentíamos, que sonhos tivemos na vida, que sonhos abandonamos, e que sonhos conseguimos conquistar, seguiremos vivendo.

Este meu texto é como mantenho viva parte da minha história e da SBPSP que tanto amo.

1

Meus agradecimentos a Ana Maria Vanucchi, em nome da diretoria científica, pelo convite para participar do Segundo Simpósio dos 70 anos da nossa Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, instituição a quem sou profundamente grata por tudo o que recebi e muito me enriqueceu. Celebrações como essas são uma das formas de mantermos viva nossa história, nossas origens e percursos, que fazem parte de nossa identidade psicanalítica.

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