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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.25 

RESENHAS

INSTANTES DE DENTRO

Gina Khafif Levinzon1 

Doutora em psicologia clínica (USP), professora de técnica psicanalítica do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica Ryad Simon (CEPSI)

1Membro efetivo e profa. assistente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em psicologia clínica (USP), professora de técnica psicanalítica do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica Ryad Simon (CEPSI). São Paulo

Ciero, Helena Cunha Di. INSTANTES DE DENTRO. Paraquedas, São Paulo: 2022.


Instantes de dentro é composto por crônicas, poemas e reflexões que revelam o interior de Helena Di Ciero. É uma espécie de radiografia da psique composta por palavras e sonhos compartilhados com o leitor. Ela descreve o livro como “um desenho de meu coração, onde estão costuradas minhas elaborações, perdas e memórias, os livros que me marcaram, as canções que cantarolo silenciosamente e os poemas que levo sempre no bolso - de tal maneira que nunca estou realmente só” (1922, p. 7, nota). Nós a acompanhamos por essa viagem de leitura fácil, inspirada, num deslizar suave pelos sonhos da autora.

No poema “Andorinha” Helena descreve seu processo de criação:

Não é a gente que acha o poema.

Ele nos persegue como uma luz no canto da sala.

Domina um pensamento de um jeito suave.

Como um beijo de boa noite de mãe

Quando se está quase adormecendo

Estampa a pele

Estala no coração

E se aloja no peito feito andorinha.

Vira uma asa saindo de dentro para fora

E então passeia pelo universo suave

ao se transformar em letra

Como a melodia de uma canção

que não para de tocar.

Quem tem poesia no peito

vê a vida de outro jeito:

Aprende a contemplar.

Na alegria e na tristeza,

Na saúde e na doença.

Amando com esperança

Cada instante que está para chegar.

(p. 9)

Ao longo do livro vemos que as ideias de fato saltam de modo espontâneo e vivo. Elas não são buscadas, simplesmente encontram um caminho de expressão.

Os temas são variados. Em vários momentos abordam as sensações relativas à fase da epidemia da covid-19, seu horror diante das mortes, da necessidade de confinamento e de isolamento, suas saudades da vida normal e cotidiana, em que as pessoas têm um contato mais próximo. Em certos trechos suas preocupações ficam mais contundentes:

As notícias são assustadoras, e a iminência de que algo terrível está para acontecer nos assombra. Dizem que o pico está para chegar, vejo as curvas da pandemia em ascensão e me lembro da Noviça Rebelde subindo a montanha, com seus sete enteados, fugindo do nazismo. Ela que me acolheu em tantas tardes na infância. Acolhe hoje meu terror, quando olho a curva de infectados subindo e penso em “Climbing the mountain” tocando no fundo, um horizonte azul se anunciando e a promessa de liberdade. (p. 107)

Apesar dos sentimentos perturbadores, Helena termina essa crônica com “I’m, still alive”, que significa “Ainda estou viva”. Ela reafirma que seguirá cantando enquanto tiver voz e continuará procurando pelo sonho. “Hoje não, sr. Corona. Hoje estou ocupada, hoje não posso te atender.” Para nossa sorte, por podermos continuar a saborear seus escritos…

A maternidade ocupa um espaço privilegiado em vários momentos dessa obra. Mãe de dois filhos, a autora divide conosco alegrias e preocupações em relação a eles. Ela nos mostra o quanto a experiência de ser mãe é especial, iluminada. Quando a filha pequena está assustada, ela a acolhe com carinho: “Filha, seu cocô é lindo, amor, parabéns!” (p. 125). Em outro trecho ela revela o encantamento com o filho: “Meu bebê foi meu oásis. Uma amiga me disse que eu me sentiria assim com ele. Contemplá-lo me fazia de fato sentir o paraíso bem pertinho” (p. 134). Por outro lado, o medo de perdê-los e de vê-los sofrer aparece como uma sombra constante:

Eu não vou conseguir proteger vocês para sempre, meus filhos. Mas eu queria. Então, enquanto posso faço esses paranauês, que no fundo não adiantam muito, mas me dão a ilusão de que nada de mal vai chegar perto de vocês. Eu queria ter certeza de que ninguém vai quebrar o coração de vocês. Que vocês nunca vão ver no canto de uma festa o amor de vocês gargalhando e jogando a cabeça para trás com outro alguém. Queria também que vocês nunca fossem traídos, maltratados, excluídos. Que nunca sofressem um assalto. Um assédio. Que nunca recebessem a notícia de que alguém que vocês amam está morrendo. (p. 52)

Há também textos que trazem um ponto de vista psicanalítico sobre adolescência, desejos, sonhos, fantasias, dor. Personagens de livros, filmes, letras de músicas fazem parte das reflexões da autora. Como uma criança que brinca com seus bonecos, ela brinca com os personagens e suas histórias, como neste trecho:

E eu fiquei pensando sozinha. Como seria lindo se alguns personagens pudessem se conhecer e se encaixar um no outro. Tipo se o Meursault do O estrangeiro encontrasse a Amélie Poulain ou se a Úrsula de Cem anos de solidão conhecesse o Holden Caulfield - ela o ajudaria a se questionar menos? Ou se o Nino Sarratore encontrasse uma boa analista, será que daria paz para Lila e Lenu? (p. 86)

Em O brincar e a realidadeWinnicott (1971/1975) descreve o brincar como uma experiência criativa inserida na continuidade espaço-tempo. Ele ressalta que o brincar é em si mesmo uma terapia e que “é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança e o adulto fruem sua liberdade de criação” (p. 79). A escrita de Helena traz de forma contundente esses traços de criatividade, e ao mesmo tempo parece permitir-lhe elaborar sentimentos, dores e especialmente o luto pelas perdas de pessoas queridas.

O tema da morte tem uma presença importante ao longo de todo o livro. Helena desnuda seus sentimentos carregados de dor acerca do falecimento de seu pai, de amigos, do ex-namorado. As lembranças do pai, que morreu precocemente quando ela estava grávida de nove meses de seu primeiro filho, flutuam ao longo de muitos dos textos escritos, como nos trechos a seguir:

Toda semana meu pai comprava flores para a nossa casa. Lírios para minha mãe, cravos para mim. De mocinha, adorava chegar da escola em casa e ver aquele vaso enorme na sala, lírios brancos, imponentes. Minha mãe sempre escolhia um vaso que combinasse com a decoração, e eles sempre acabavam brigando, pois meu pai também queria escolher o vaso, palpiteiro que era. E no meu quarto havia sempre um vaso pequeno, com uma dúzia de cravos bem delicados. Na quinta-feira, eu tinha certeza de que nós duas éramos muito amadas. Prova disso era o perfume que invadia nossa casa nesse dia e durava por uma semana toda. (p. 16)

Depois que meu pai morreu, ele virou silêncio - apenas no mundo exterior. Dentro de mim, a voz dele ecoa dia após dia. Lá eu o encontro, e então conversamos outra vez. São as lembranças que dançam em minha mente quando estou só, quieta, antes de dormir. Ou quando estou num impasse, diante de uma escolha: dou um passo para trás e ouço-o falar. Respeito essa voz, que agora mora em mim, na minha quietude. O único lugar em que ele continua vivo, onde é imortal. É minha herança preciosa, com a qual dialogarei enquanto existir. (p. 88)

Em “Luto e melancolia” Freud (1917/1980) discutiu o trabalho de luto e os estados de melancolia. O luto é a reação natural à perda de um ente querido ou de algo muito importante. Ele é superado após certo tempo. Aos poucos a ligação com o objeto perdido vai sendo transferida para outras relações, e com isso o trabalho de luto se realiza. Dependendo da importância do objeto perdido, esse trabalho se realiza por um período maior ou menor, e deixa marcada dentro do sujeito a presença daquele que se foi. A melancolia, por sua vez, também é uma reação à perda de alguém ou de algo que tem valor grande para a pessoa. Ela apresenta, no entanto, uma dificuldade maior para aceitar a perda ocorrida. Os traços melancólicos podem predominar em certos casos, chegando a afetar o humor da pessoa, sua vitalidade e em situações mais graves até sua autoimagem. Vemos em Helena uma força grande para que esse trabalho de luto possa ser realizado, e em alguns momentos encontramos uma certa melancolia. Ela fala disso por meio dos personagens: “No filme Manchester à beira-mar a dor da melancolia foi tão claramente exposta, que a cena nunca saiu de mim” (p. 60). Por outro lado, há um movimento no sentido de elaborar a dor e a perda e refletir sobre a transitoriedade:

não há o que fazer senão resignar-se com o fato de que a morte é inevitável e sempre nos alcança… Resignar-se à dor é não temê-la. Emprestamos nosso corpo a ela para que, depois de um tempo, ela nos abandone. O corpo fica mais forte assim. Cheio de vivências, finalmente a luz volta, poderosa, insistindo para o tempo passar. (p. 22)

Agora adulta, sem pai e com minha mãe bem idosa, fico pensando que naquele dia entendi algo que divã nenhum de análise me ensinou: a transitoriedade.

A questão de que o tempo passa, e há uma necessidade de vesti-lo na hora certa. Abraçá-lo nem que ele esteja parado numa arara, num cabide. E ousar desfilar com todas as suas cores, cabendo na estação que a vida te oferece. (p. 26)

É essa vitalidade que Helena nos oferece, um mundo interno cheio de cor e em constante movimento!

No meu artigo “Frida Kahlo: a pintura como processo de busca de si mesmo” (Levinzon, 2009) comentei que os autorretratos da artista tinham uma função primordial em sua vida, a de funcionar como um espelho vivo de sua alma. Eles lhe davam um espelho próprio, um olhar que tinha a função de autossustentação e reconhecimento de si mesma. Para ela a arte se converteu em uma busca de um sentimento de integração, ao lhe permitir representar aquilo que era mais genuíno dentro de si. Seu trabalho artístico lhe possibilitou expressar e elaborar sentimentos e emoções profundas. Identifico um processo parecido na escrita de Helena. Suas crônicas e poemas não são apenas descrições do cotidiano, algo escrito para divertir ou para ser admirado. São expressões de seu ser, suas reflexões, medos, pensamentos íntimos, sua relação com os lutos. Poderíamos dizer que são autorretratos de sua alma, que criam um espaço em que ela se encontra e se organiza. O leitor tem acesso a esse espelho psíquico e é o interlocutor com quem ela conta nesse processo que é ao mesmo tempo curativo e criativo. O que ela escreve é arte, e também terapia. Para ela e para todos nós que nos identificamos com o clima que exala de suas palavras…

Instantes de dentro é um autorretrato de Helena Di Ciero. A leitura do livro é agradável, encanta pela sensibilidade e pelas ressonâncias afetivas. Nada melhor do que as próprias palavras da autora para descrever de forma sensível o que ela nos transmite com profundidade ao longo dos capítulos:

Escrevo porque não me caibo.

Escrevo para ser livre.

Escrevo para me proteger, para me vacinar, para entender, para elaborar.

Escrevo para não deixar de caminhar.

Escrevo para respirar.

Escrevo para não me isolar.

Escrevo para raiar.

Escrevo, pois, é o que vai ficar.

(p. 54)

Referências

Freud, S. (1980). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14). Imago. (Trabalho original publicado em 1917) [ Links ]

Levinzon, G. K. (2009). Frida Kahlo: a pintura como processo de busca de si mesmo. Revista Brasileira de Psicanálise, 43(2), 49-60. [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975). O brincar: a atividade criativa e a busca do eu (self). In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971) [ Links ]

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