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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.26 

RESENHAS

DO NIILISMO AO AMOR À VIDA SER OU NÃO SER

Adriana Maria Nagalli de Oliveira1 

1mnagalli@gmail.com

Trinca, Walter. Do niilismo ao amor à vida. Blucher, 2022.


A presente obra sintetiza as concepções de Walter Trinca sobre a clínica psicanalítica, integrando ideias experimentadas em outros volumes, com base nas noções de realidade e imaterialidade. Suas ideias chegaram até mim com uma penetração impressionante. Diria que nasceram em mim como nascem nossas histórias clínicas, cada uma tocando uma parte de nós que não podemos nomear. Para medir seu alcance, é preciso deixar-se levar pela leitura.

Em uma primeira reflexão, os pensamentos de Walter me trouxeram liberdade, abertura. Logo reconheci a filosofia e o pensamento de Bion, nas proximidades das apreensões de Winnicott. Mas esses autores são como laços constituídos de identificações, sem interferências em sua alteridade.

Experimentei, inicialmente, inquietação ao captar os sentidos daquilo que fundamenta a perspectiva de mundo do niilismo, uma ânsia por ressuscitar pesadelos, em especial, quando as ideologias que matam o significado das experiências dominam o mundo, evidenciando a imoralidade dos fatos. O mal e a dor, que jamais se esgotam, são discutidos por Walter, em uma perspectiva metapsicológica, com maestria e clareza.

O autor elabora uma hipótese para vivermos plenamente o que somos. Trata-se da psicanálise compreensiva, que parte do entendimento sobre o ser humano em sua totalidade, valorizando o trabalho psíquico para que sejamos nós mesmos, com respeito à singularidade e com base em uma tradição ética aberta. Com movimentos amplos e estéticos, suas construções científicas são ferramentas em busca do equilíbrio psíquico; ele lida com o sofrimento criando símbolos para os sentimentos e para o ato de conhecer. Penso que suas elaborações constituem-se como expressão de amor pelo humano e pela psicanálise.

A obra inicia com um apanhado histórico de correntes de pensamento que poderíamos descrever com os termos niilismo, pessimismo e tragédia, da Antiguidade clássica ao século 20. Na primeira parte, Trinca aborda a filosofia sofística, a escola do ceticismo, além das filosofias epicurista, estoica e cínica, em um panorama que abrange pensadores gregos e romanos. Em comum, eles falam de um mundo pleno de desolação, marcado pela indeterminação dos fatos e pela eventualidade dos fenômenos. Para alguns desses pensadores, o suicídio é a saída mais lógica, dada a impossibilidade de o homem livrar-se dos sofrimentos. Nem todos, porém, chegam a tais extremos. Como Walter muito bem descreve, alguns filósofos até mesmo iluminam o caminho com possibilidades valiosas.

Na sequência, a obra apresenta o desenvolvimento dos mesmos temas na modernidade e na idade contemporânea, avaliando as obras de Montaigne, Pascal, Freud, Sartre e Camus, e finalizando com o mais emblemático dos pessimistas: Schopenhauer. Em comum entre os autores, o destaque à dimensão trágica de mundo, agora com a perspectiva de ideias modernas, em especial, a noção de que o ser humano é a medida de representação de todas as coisas. O self, para esses autores, é impermanente, e nele não podemos confiar, pois trata-se de uma dimensão incapaz de estabelecer critérios válidos para lidar com a verdade. Nessas correntes de pensamento, o acaso predomina sobre os fatos e a morte se sobrepõe à vida. O ser humano é dirigido pela força cega da vontade, dos impulsos, em um mundo que se descortina como um palco de horrores. Como estabelece Camus, “o mundo é absurdo” (p. 47). Schopenhauer complementa: “tudo acaba na morte, após sofrimentos inauditos” (p. 53).

As tendências niilistas e pessimistas dominaram a modernidade e a pós-modernidade, mas encontramos, mesmo em seus mais fervorosos defensores, saídas e caminhos alternativos. É o caso da solidariedade em Camus ou da experiência estética em Schopenhauer. Ainda na Antiguidade, o epicurismo já fornecia respostas para os dramas da existência: “habituar-se às coisas simples” (p. 59). Já o estoicismo valorizava a coragem e a habilidade sobre o temor e a passividade. A cultura oriental também trouxe respostas poderosas, como aquelas contidas nos trabalhos de Lao-tsé, ou ainda as importantes ideias do budismo. Em comum, essas tentativas de responder ao lado sombrio da existência consideram que é essencial repensar a forma como lidamos com a mente. Nesse ponto, Trinca encontra uma chave central para as análises que desenvolve no restante da obra.

A começar pela segunda parte do livro, durante a qual descreve um modelo de psiquismo capaz de promover a expansão da consciência rumo ao amor à vida. Walter trabalha com os conceitos de self e ser interior. A dinâmica patológica, nesse modelo, decorre do distanciamento de contato com o ser interior, acarretando duas consequências principais: a fragilidade e a sensorialidade saturada, em geral motivadas por força da constelação do inimigo interno. A primeira pode materializar-se como enfraquecimento ou esvaziamento do self. Já a sensorialidade acaba sendo saturada de quatro formas principais: (1) básica, com excesso de ênfase concretista, como nos ciúmes patológicos; (2) preenchimento substitutivo, quando o self infla-se de produtos diversos, a exemplo dos jogos compulsivos; (3) por corte e exclusão, em processos de corte de vínculos, como na psicose branca; e (4) produção por ataques, quando o self investe características malignas a objetos internos, a exemplo das depressões por culpabilidade neurótica.

Em oposição à dimensão patológica - que se liga, na experiência clínica, às vivências de pessimismo e niilismo antes debatidas (conforme Walter aborda na terceira parte de sua obra) -, está o contato com o ser interior, que faz prevalecer a harmonia. Tudo começa com a conscientização da noção de si mesmo, em graus progressivamente maiores. Desse modo, o self passa a sofrer influência cada vez mais acentuada do ser interior. O divisor de águas é o conceito de emoção não-sensorial, que franqueia as portas para o amor à vida e a humanização. No início, o self reconhece a presença do ser interior não-sensorial. Depois, advém um “estado líquido” (p. 96), em que o sujeito está aberto a flutuações, com aumento da mobilidade psíquica. Sobrevém, por fim, a experiência da imaterialidade, ligada à contemplação do mundo, “face a face com o mistério” (p. 97).

No horizonte, temos a psicanálise compreensiva, calcada nas ideias de capacidade de amar e de libertação do entulho mental por intermédio de sua transformação em conhecimento. Nas várias situações clínicas em que o paciente é dominado pelas forças do niilismo, do pessimismo e da tragédia, em que impera o distanciamento de contato, é preciso buscar uma experiência legítima de si, aprofundando o contato com o ser interior, para que o sujeito se sinta no comando de sua vida. Em oposição à destrutividade, “há o sentido íntimo e indestrutível de inteireza, organização e harmonia”, que responde “pela tendência à ordem, à beleza e à construtividade” (p. 151).

Nas últimas duas partes da obra, Trinca descreve a experiência de contato consigo mesmo, que favorece a criatividade e o crescimento. O fato é que, no frigir dos ovos, a vida impera sobre a morte, e essa percepção tem início na constatação simples de que o sujeito tem um corpo, experiência que se expande na presença de contato consciente consigo mesmo, que, por sua vez, produz potência e resolutividade. Assim, chegamos ao conceito central de ser interior, uma instância independente caracterizada por unidade, coesão, singularidade, constância, indivisibilidade e harmonia. O ser interior emerge da realidade coletiva, mas torna-se individualizado na medida em que evita cair prisioneiro dos objetos. Nesse processo, poderá ser reconhecido pelo que é: espaço livre na mente, o que possibilita ampla mobilidade interna. O querer viver passa a ser marcado pelo princípio de individuação, e assim o sujeito encontra o amor vitae, amor à vida, e o amor fati, amor ao destino.

As experiências com os sentidos profundos são inúmeras, entre as quais, Trinca destaca: mundo como sonho; imagética artística; presença da vida como alegria; percepção da própria pequenez como motor de expansão; primordialidade, atemporalidade e mistério; silêncio que leva à integração psíquica; realidade profunda pelas vias da experiência estética. A resposta que o autor oferece às agruras da vida implica uma busca pela fruição possível, em posição de enfrentamento sem escapismos, por meio da liberdade de ser no viver criativo, em busca da melhor forma de existência.

Para terminar, concluo com uma conceituação de Walter: “A mente livre, solta e ampla flexibiliza-se para receber a realidade e apreender o que antes parecia ser inapreensível, indo da petrificação à mobilidade, da inexistência à existência, da concretude à imaterialidade” (p. 238). Dessa ideia, talvez brote uma resposta: seguir o curso da realidade à semelhança das flutuações de um rio, em que a correnteza indica o curso necessário. Trata-se de entender o fluxo da vida, para que possamos deixar que o Ser siga seu caminho, ancorados na fonte que dá vida e alimenta a criação.

Assim, a mente abre-se à experiência de imaterialidade, constituída por um grau avançado de não-sensorialidade no seio dela mesma. Quanto maior o contato do Ser com o mundo, mais refinada será sua apreensão da imaterialidade. Quando a mente se expande, os fatos encontram um largo horizonte como plano de fundo, e dessa forma a receptividade abre-se ao desconhecido. Desfeitos os sistemas mentais mais rígidos, os fenômenos aparecem com novas fisionomias.

O antídoto mais eficaz contra o niilismo, o pessimismo e o catastrofismo é a relação vital com a própria vida, pois ela é o que há de mais importante. Liga-se à vida aquele que se experimenta vivo em si mesmo. Penso que essa leitura implica uma ação contemplativa. Eu a fiz na posição de analista, humana e em desenvolvimento, sonhando, consciente e inconscientemente, para dar continuidade à criação.

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